segunda-feira, 22 de setembro de 2008

ENTREVISTA COM SOBREVIVENTE DO MASSACRE EM PANDO

Em um testemunho dilacerante uma mulher indígena de 44 anos (a quem chamaremos Rosa por razões de segurança) conta os momentos de pavor que viveu ao escapar do massacre de camponeses no último dia 11 deste mês.

O genocídio, um dos fatos apavorantes das últimas décadas na história da Bolívia, ocorreu no povoado de Porvenir, proximidades da localidade de Tres Barracas. "Rosa" é uma líder rural da comunidade Santos Mercado, a mais distante de Pando. Entre lágrimas, ela diz que salvou-se "por milagre" ao jogar-se numa vala de esgoto a céu aberto, onde já havia outra mulher que a ocultou com sacolas, aros de pneus queimados e lixo.

A sobrevivente relatou ainda que os paramilitares atiravam nos pés e pernas das vítimas para descobrir quem era os líderes da marcha que se dirigia a Cobija. Os camponeses, segundo Rosa, não estavam armados.

Veja:


Como aconteceram os fatos que culminaram na luta sangrenta?

Nós saímos da comunidade rural e nos dirigíamos a uma manifestação pacífica em Cobija. Eles nos enfrentaram primeiramente às 2 horas da manhã e nós não quisemos reagir porque não estávamos armados. Já eles tinham bombas, foguetes, dinamites e lançaram tudo isso na gente. Assim, decidimos voltar para Puerto Rico. Só paramos um automóvel Pampa e tomamos as bombas de três pessoas que estavam dentro. Em Porvenir já nos encontraram duas caminhonetes lotadas de pessoas armadas com armas novinhas, metralhadoras, e com isso nos balearam. Isso por volta das 11 da manhã (quinta-feira) mais ou menos.

E vocês nesse momento se entregaram, escaparam, o que fizeram?

Muitos dos meus companheiros escaparam pela mata, eles (os assassinos) o seguiram pelo rio e lhes balearam como fossem animais.

Quem eram os assassinos? E a senhora, como salvou a sua vida, já que eles procuravam exatamente líderes rurais?

Todos eles trabalham no Governo, inclusive havia brasileiros entre o meio... Eu escapei porque me joguei em uma valeta e me cobri com lixo. Uma senhora (vizinha do lugar) me ajudou. Desse ponto eu vi tudo o que fizeram eles até as cinco da tarde (desde as 11 horas da manhã) estive aí na vala até que acabasse o tiroteio. Mas todos são funcionários do Governo, eu os conheço porque sempre viajei para Cobija e os via. Servidores do Governo, engenheiros, doutores etc.

Houve mulheres maltratadas e assassinadas?

Eles chicotearam as companheiras. Algumas se lançaram à água para cruzar o rio a nado e aí lhes deram tiros. Em seguida mataram as companheiras, algumas delas, grávidas.

Como foi a morte do engenheiro do Governo Departamental?

Esse engenheiro estava numa caminhonete vermelha que por chocar o caminhão onde nós éramos transportados, freou de repente e entrou numa vala comum. Esse engenheiro estava na carroceria, sentado, mas os assassinos para tentar nos incriminar lhe deram um tiro na cabeça, a sangue-frio. Foi isso o que aconteceu.

E a Polícia, como agiu? Tentou impedir que os enfrentamentos, enfim, o que fez?

Quando chegamos em Porvenir, a Polícia na tranca avisou que iria nos revistar para ver se encontravam armas. Aí respondemos: "Tudo bem, podem revistar porque não temos nada. A única coisa que temos são esses paus que agarramos para nos defender, porque eles estavam jogando bombas em nós". E contamos toda a situação. Dissemos: "Como já chegamos em Porvenir vamos dialogar, vamos conversar, companheiros". Nós estávamos parados no meio do sol quente. Tínhamos crianças, senhoras fatigadas, sufocadas que estavam sem café da manhã, nem nada. Nem água tínhamos tomado. Uma policial feminina veio para nos revistar e quando estávamos no meio dessa operação começamos a ouvir um tiroteio próximo. Os policiais fugiram todos. Nem mesmo disseram: "Alto aí!", nada disso. Eles fugiram e nos deixaram sozinhos.

Então a polícia não ficou com vocês, mas fugiu?

Sim, eles fugiram primeiro. Aí começou o massacre. Alguns de nós fomos baleados e vendo isso os companheiros fugiram por onde puderam. Alguns se jogaram no rio, pulando da ponte, mas os atiradores os alcançaram e largaram os balaços já das metralhadoras.

Como a senhora salvou-se disso tudo?

Eu me joguei numa valeta próxima. Havia uma poça de lama, onde também eram jogados alguns restos e detritos de uma oficina próxima. Por isso tinha vários pneus de caminhão, alguns já somente com aqueles rolos de arames queimados. Então eu me agarrei a isso e também com papel e lixo para me cobrir. Uma senhora, esposa do dono de uma dessas oficinas me ajudou a me disfarçar melhor, colocando sacolas velhas com mais lixo e pneus velhos sobre mim. A partir daí eu comecei a observar tudo o que aconteceu durante o tiroteio. Como eles pensaram que era só lixo, não acharam que tivesse alguém ali dentro. Por isso escapei. Mas ouvi tudo o que disseram e vi o que fizeram.

O objetivo deles era mesmo prender os líderes rurais?

Eles diziam assim: "Vamos pegar os dirigentes deles primeiro, eles são os cabeças!". E tinha ainda alguns brasileiros, que falavam: "Vamos matar de uma vez, rápido!" e então começavam a chicotear os companheiros. Chicoteavam e gritavam: "Fala, quem são vocês, de onde vêm, quem lhes trouxe, o governador lhe deu dinheiro, o prefeito [de Cobija, "Tiquitín Flores", aliado de Evo Morales] te deu dinheiro? Os outros diziam: "Não! Ninguém nos trouxe, nós viemos para outra coisa, não estamos nisso!" Aí eles comentavam entre si: "Não querem falar!", e davam tiros nos pés dos companheiros.

Se a senhora encontrasse o governador Leopoldo Fernández, o que lhe diria?

Que talvez seja pecado ser pobre ou camponês. Por que nos assassinaram assim, com tanto ódio? Essa seria a primeira coisa que eu poderia dizer a ele.

Por que a senhora participou da marcha?

Sou líder da minha comunidade rural, da última comunidade do município, na verdade. Caminhei muito por um lugar que sequer de bicicleta dá pra entrar. Tive que caminhar mais de 12 horas para chegar à minha comunidade. Desta vez, carreguei alguns mantimentos na costas e vim para cá. Sofro muito como mulher, mesmo carregando o meu alimento próprio alimento, pois a comunidade é distante e recém-criada. Além disso tenho 44 anos, oito filhos e sete enteados que criei. É para esses filhos que eu tenho que buscar o pão de cada dia.

Fonte: ABI


Comentário pessoal: Para comparar as declarações da sobrevivente com a versão dada pela imprensa local (leia-se: com a versão do governador Leopoldo Fernández) aos jornais locais, clique aqui.

Nenhum comentário: