segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NIETZSCHE x MARX

Motivado pela leitura da biografia de Domenico Losurdo sobre Friedrich Nietzsche, há duas postagens eu venho tratando deste filósofo, um dos grandes da escola alemã. A discussão com o blogueiro Cleomilton Filho, um nietzscheano convicto, acendeu uma viva polêmica depois que botei Karl Marx, também alemão e também filósofo, na berlinda. Minha síntese provisória - na forma de cartas, como faziam os antigos filósofos - é a que se segue:

Na verdade, nem Marx nem Engels definem a sua teoria como “socialismo”. Eles estavam interessados na análise da história presente, ou seja, do capitalismo. A definição “marxismo” surgiu sob os protestos do próprio Marx, e a definição “comunismo” surgiu como necessidade de se demarcar a luta política de 1844, quando foi publicado o Manifesto do Partido Comunista.

A sua questão de que o socialismo seria uma ponte para o comunismo está equivocada nas premissas. Primeiro porque não é possível passar de socialismo para comunismo em um Estado – comunismo é um sistema-mundo, tal qual o capitalismo. Segundo porque - contrariamente aos demais, daí porque a crítica não vale - o socialismo aí é a destruição do Estado, por meio dos próprios trabalhadores organizados em conselhos. O objetivo é exatamente substituir o conceito de Estado-Nação pelo de Nação-Mundo.

Por que, então, esta primeira fase recebe o nome de “socialismo”? Simples: porque os trabalhadores estão associados, eles participam do processo. Os indivíduos é que conduzem a estrutura e tomam as decisões. Esta é a única similaridade entre socialismo utópico (Fourier, Blanc, Owen, Babeuf etc) e “socialismo marxista”: o princípio da associatividade. No primeiro visando uma ação afirmativa. No segundo, visando uma ação iconoclasta.

Você deveria saber disso.

Mas vamos adiante. Vamos supor – o que me parece plausível – que Nietzsche imaginasse que esta organização também tenderia a limitar ou mesmo tolher a vontade de potência do indivíduo.

Nesse caso podemos pensar se as necessidades de abolir os Estados nacionais, participar de assembléias deliberativas locais, regionais ou mundiais e transformar meios de produção de riquezas, hoje privados (fábricas, indústrias etc) em bens dessa coletividade mundial, poderiam contradizer interesses individuais.

Eu penso que podem. Mesmo que esse modelo eliminasse o desemprego, produzisse uma sociedade mundialmente mais justa e dinamizasse a sobrevivência, e com isso a criatividade das pessoas, penso que algumas poderiam se sentir no direito de não participar de nada disso.

Mas imagino que até nesses casos os indivíduos deveriam imaginar-se na condição de seres que têm necessidades, ou seja, fome, sede, necessidade de vestir, de calçar etc. Se é assim, então não há impedimento em agir para satisfazer tais interesses. Tanto no capitalismo quanto em um comunismo isso pode ser feito obtendo bens que não são produzidos pelos indivíduos, mas por outra pessoa. Ou seja, são obtidos por meio de outras pessoas, que ali investiram sua criatividade, sua capacidade, seu trabalho.

Então, ou muito me engano, ou não há como escapar dessa dinâmica do trabalho socialmente produzido. Ou se satisfaz necessidades individuais em troca de bens produzidos coletivamente ou se renuncia ao imperativo do próprio corpo, simples assim.

Veja que esta organização não requer que todos “sejam iguais”. Requer apenas que os indivíduos sejam o que são na medida das suas limitações, mas que tenham mesmo assim o direito de atender livremente as suas necessidades trocando-as pelo resultado do trabalho de outras pessoas. A “igualdade comunista” é justamente que os indivíduos possam igualmente realizar esse imperativo biológico, ou mesmo psicológico (já que nem todas as nossas necessidades são físicas).

E aqui chegamos a um ponto complicado. Nietzsche sabia dessa relação de mútua dependência entre indivíduo e sociedade? Eu penso que sabia. No entanto, sua conclusão é clara: o indivíduo deve, para ser livre, rejeitar tais promessas de redenção social para viver a sua própria vida, que é toda indeterminação em comparação com o indivíduo e que, por isso, deveria ser gozada e não idealizada ou como faz a religião - no que concordo – transcendida.

Eu tenho a impressão que essa filosofia é capenga, pelas razões que demonstrei acima. O Ludwig Von Mises monta toda a sua teoria sobre liberdade partindo da mesma definição de indivíduo: um ser livre no mundo, que realiza o melhor em benefício de si mesmo, da sua individualidade.

Uma das grandes questões da Sociologia clássica, você sabe disso, é descobrir quem veio antes: o ovo ou a galinha; o indivíduo ou a sociedade.

Polêmica inútil. Indivíduo e sociedade sempre estiveram juntos, por determinação biológica, necessidade de criação simbólica e de trocas materiais. Mas não há um mísero momento na história em que o indivíduo não represente para a coletividade humana uma necessidade para a sua reprodução, gerando-se daí leis, códigos, valores etc. E vice-versa: toda a criatividade do indivíduo é perpassada por linguagens, hábitos, inventos, descobertas, ideologias, limites jurídicos, crenças filosóficas que não pertencem a ele, mas são introjetados até inconscientemente.

Os maiores gênios da humanidade, como Da Vinci, Einstein, Mozart etc, em suas vidas, não escaparam dessas limitações que são determinantes: elas se impõem por razões históricas. Apesar de terem sido geniais e avanços consideráveis, o tempo mostrou que todas as idéias de Da Vinci, por exemplo, precisaram de reformulações devido aos materiais existentes na época ou à sua compreensão inexata dos efeitos da gravidade e da biologia ainda incipiente. O mesmo pode-se dizer dos demais.

Nessa briga isolacionista, a Sociologia já embarcou em ambas. Em Durkheim e Comte, por exemplo, a proeminência é da sociedade em detrimento do indivíduo. Na nossa época a proeminência foi para o pólo oposto e passou a ser do indivíduo, gerando as teorias bizarras do pós-modernismo. Paradoxalmente, ambas se explicam pelo contexto: em Comte e Durkheim havia a preocupação romântica de criar uma sociedade justa e fraterna por meio de uma teoria política totalizante, com o protagonismo marcado de seus líderes. Na nossa época, o pós-modernismo nasce dentro de um capitalismo que necessita isolar o indivíduo e suas necessidades da óbvia conexão com o resto da sociedade – sua pobreza, injustiça, violência etc.

Penso que devemos superar esse cabo-de-guerra. O melhor conceito para isso é considerar o indivíduo um ser social, isto é, simultaneamente individual e social. Se isso for verdade, imagino que a teoria de Nietzsche, com tudo o que ela nos revela de um dos lados da moeda – e a sua virtude é exatamente esta – não deve ser tomada como verdade única, uma vez que não explora todos os meandros.

Veja o caso do comunismo: em todas as revoluções antigas houve guerras. O que é até meio óbvio. As guerras durante a expansão do Império Romano, as guerras medievais, a Revolução Francesa e Americana, as mortes provocadas durante as revoluções no Brasil. Aqui no Acre tivemos o exemplo de Plácido de Castro: ninguém contabiliza a quantidade de bolivianos e brasileiros mortos em emboscadas e conflitos abertos.

Mas quando uma revolução se propõe socialista ou comunista, imediatamente os números são convertidos em justificativas para demonstrar “a crueldade do coletivo contra o indivíduo”, o “genocídio das idéias coletivistas” ou “a identidade próxima entre nazismo e comunismo”.

Todas as idéias podem se tornar histerias e todas as revoluções podem ser transformadas em genocídios. Basta que a máquina de propaganda seja suficientemente legitimada socialmente para operar esse transformismo ideológico.

Um exemplo claro disso é “O Livro Negro do Comunismo”, onde se afirma que o comunismo matou 100 milhões de pessoas e o nazismo 10 milhões.

Afirmar que um regime é pior que outro com base no número de vítimas é algo sem sentido. Execuções sumárias são sempre um crime, independente de quantos sejam mortos. Mas o número de 100 milhões de vítimas do comunismo é simplesmente absurdo: segundo o cálculo desses autores, Stalin matou 30 milhões de pessoas na URSS. Este número é um disparate; a população soviética então era de bastante menos que 200 milhões - matar 30 milhões de pessoas equivaleria a exterminar mais de 15% de toda a população do país, o que é simplesmente impossível. Claro que, se Stalin tivesse matado tantas pessoas antes da Segunda Guerra Mundial, teria sido impossível a vitória soviética.

Além disso, todos os historiadores russos sérios de hoje, que não têm a menor simpatia por Stalin, concordam que o número de suas vítimas foi de não mais que 4 milhões: uma cifra imensa. Stalin foi, indubitavelmente, um dos tiranos mais brutais e violentos de todos os tempos. Simplesmente não há necessidade de exagerar o número de suas vítimas, com o propósito único de propaganda.

No entanto, isso é feito e é aceito como ciência! Da mesma forma que é aceito como ciência, ou mesmo como filosofia, dizer que o comunismo sacrifica o indivíduo em benefício da coletividade para encaixá-lo na crítica nietzschena, miseana, popperiana e outros. Na verdade a soma da sociedade é produzida pela interação dos indivíduos, não só na economia, mas também na circulação de valores afetivos, jurídicos, religiosos, lingüístico-literários etc. É evidente que o cerne do nazismo, por exemplo, foi a submissão do indivíduo aos valores coletivos, aos interesses “do todo” etc, mas isso não se aplica ao comunismo porque este se baseia na interatividade que já existe hoje. Na verdade, o materialismo histórico aposta todas as suas fichas exatamente na diferenciação entre “necessidades” e “capacidades” dos indivíduos, reconhecendo aí – socialmente - o mérito, a capacidade individual.

O que o comunismo combate é a desigualdade, não a diferença. Uma sociedade de iguais só se move por diferenças. Mas uma sociedade onde impera a desigualdade só pode gerar indiferentes.

A idéia é então maximizar as oportunidades por meio da igualdade de oportunidade para todos os diferentes, para que todos os diferentes possam ter iguais chances de dinamizar as suas capacidades e com isso elevar os indivíduos a novos estágios de vivência.

Isso, repito, está inteiramente fora da crítica nietzscheana, exatamente porque ela é isolacionista. Parte do indivíduo como uma mônada, quando isso não é possível, nem mesmo idealmente.

O livro do Domenico Losurdo traz exatamente esta reflexão, dentre outras. A plataforma isolacionista de Nietzsche, dado o seu caráter irrealizável e por isso mesmo ideológico (já que é uma idealização do indivíduo), torna-se exatamente o que ele combatia: uma proposta de vir-a-ser. É uma tentativa de recrutamento para uma concepção que é filosoficamente fraca, mas politicamente poderosa: a atomização do homem.

Leia, e, se você discordar, conversamos mais. Como cidadãos ou como cidadões (depende de como a sociedade estiver grafando este vocábulo, transformando-o, independentemente dos manuais de regras metalingüísticas que possamos adotar com a nossa larga e douta erudição).

Saudações de um indivíduo humano.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

CLEOMILTON

Recebi do blogueiro Cleomilton Filho, mencionado por mim na postagem "Nietzsche e a bipolaridade", o comentário que segue. Meus comentários estão logo após:


Josafá,

Grato por alertar acerca do equívoco cometido por mim quanto à data da Revolução Bolchevique. Entretanto, cumpre-me esclarecer que trabalho num netbook, cujo teclado reduzido, por vezes, atrapalha-me. Ao digitar rapidamente o que pensei ser o "1", bati no "2" sem querer. Por tal motivo, estava "1927".

Como dificilmente reviso o que escrevo, o erro formal permaneceu. Não obstante, já procedi à correção.

Já quanto à data da publicação de "Humano, demasiado humano", jamais afirmei que teria ocorrido em 1886. O que afirmo, ipsis litteris, é que:

"...Nietzsche tece duras críticas ao socialismo e alerta, ainda em 1886, para o perigo totalitário que o ideal socialista representava (e ainda representa)..."

Destarte, foste desonesto. Tomo a data da publicação da 2ª edição (1886), derradeiramente revisada e reformulada por Nietzsche, inclusive com novas inserções de aforismos e prólogo.

A primeira publicação fora realmente em 1878. Entretanto, tomo por base a data da segunda publicação, devidamente revisada, para fundamentar minha afirmação - não há nada de errado nisso.

Por fim, quanto à suposta dubiedade em Nietzsche, levantada por você, concernente ao que ele pensava sobre "socialistas" e "comunistas" (como se o primeiro não fosse tão-somente um meio para o segundo), é tão risível quanto a tese daqueles que afirmam que Nietzsche não era ateu.

Aconselho-o a não ler o que escreveram sobre Nietzsche em biografias póstumas, mas o que ele mesmo escrevera sobre ele. Leio e estudo Nietzsche há 10 anos, tenho todos os seus livros. O filósofo alemão possui sua autobiografia, Ecce Homo, você deve conhecer. Leia e veja como ele compara a moral de rebanho cristã ao socialismo, como ele traz similaridades entre ambos ao seu discurso.

Toda a filosofia de Nietzsche é justamente o contrário do comunismo, da vontade de potência individual à crítica imponderável ao "homem ideal" e a tudo o que é antinatural, anti-humano, como os ideais planificadores comunistas.

Acho engraçado pessoas como você, que defendem com unhas e dentes gente da estirpe de Hugo Chavez, Evo Morales, Fidel Castro et cavera (sic), vir falar de "adaptar fatos e autores para interpretações pessoais..."

No mais, não mais.

Saudações liberais capitalistas.


Meu comentário: Cleomilton, fica frio. Mas se você estiver certo, Nietzsche não sabia que no Comunismo não há Estado, o que é terrível para um filólogo de tal envergadura. E sim, li Ecce Homo há bem mais de 10 anos e conheço bem a elevada imagem que o filósofo tinha de si mesmo (como qualquer um tem). E nem assim acho algo risível.

Não duvido que a moral de rebanho cristã seja comparável ao socialismo. Nietzsche está certo. A crítica comunista ao socialismo funda-se exatamente na forçada submissão dos indivíduos à administração de um modo de produção que os produz enquanto classe. É uma forma de disciplinar os espíritos.

A crítica comunista, por sua vez, não é a um devir, a um objetivo formal futurístico. Se o fosse, estaria objetivamente no raio da crítica nietzscheana. Mas a crítica comunista dirige-se à época atual, isto é, ao modo de produção que impede que o indivíduo realize a sua vontade de potência ou que arranja as vontades de potência de forma que um grupo de pessoas obtenha o máximo de realização às expensas das tentativas frustradas de outros.

O comunismo é a ação viva e libertária contra uma situação que se impõe sobre as vontades, não um projeto de futuro. Uma sociedade sem classes, isto é, comunista, é simplesmente o resultado óbvio da anulação desse princípio (e aqui reside o que significa o conceito de "igualdade" comunista; uma igualdade formal).

Ou muito me engano, ou esse conflito foi o que levou Nietzsche a não criticar o Comunismo, apenas o Socialismo. Diferente de hoje, esses conceitos tinham definições e plataformas políticas - logo, filologicamente demarcadas - bem claras no final do século XIX e começo do XX. Basta estudar sem querer transformar uma teoria política em credo religioso, no qual se crê pela fé e pela fé fundamentar a superioridade de uma teoria. Conhecimento não é igreja.

A propósito, sua dificuldade com o teclado do notebook o levou a grafar "et cavera" em vez de "et caterva"...

sábado, 11 de dezembro de 2010

SEXO E LIBERDADE



Segundo Michael Foucault, o sexo converteu-se na nossa própria essência. A própria filosofia ainda não investigou a fundo esse mito, pois ela mesma sofre das diferenças entre os gêneros. Neste vídeo, a filósofa Marcia Tiburi aborda os principais momentos da história da filosofia e mostra que em sua quase totalidade discutir idéias foi atividade masculina. Isso só foi quebrado com Freud e a psicanálise, que passou a ouvir a voz das mulheres. Daí descobriu-se um novo gênero de pensar: o dizer o que não podia ser dito.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

MERCADO DA VIOLÊNCIA

Nessa entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato a socióloga Vera Malaguti analisa o futuro dos morros do Rio de Janeiro ocupados pelas Forças Armadas, as causas que levaram esse modelo de combate ao crime à falência e a perigosa tendência de se agravar os problemas sociais que deram origem ao próprio tráfico.

Vera Malaguti é Secretária-Geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes e membro do Conselho Superior do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito (ILANUD). É doutora em Saúde Pública pela UFRJ.

A entrevista:


Temos hoje uma política pública de segurança no Rio de Janeiro e no país?

Vera Malaguti - Existe uma política articulada de segurança pública no Rio e no país. Sempre existiu, a ditadura tinha, o governo João Goulart tinha. Mas esta que existe agora, que está coordenada entre governo federal e estadual, tem característica diferente das outras. Acabamos de ter uma evidência aqui no Rio de que essas políticas estão articuladas.

E quais as características dessa política?

O controle totalizante sobre as comunidades pobres dentro do paradigma bélico, que é um modelo muito usado pelos Estados Unidos nas ocupações que promove. E também é um modelo usado por Israel no tratamento do Estado Palestino. Isso significa que existe um atropelo das garantias, as áreas pobres ficam transformadas em territórios de exceção, onde não regem direitos e as garantias são completamente supérfluas porque trabalham com a ideologia da segurança nacional. É o que o grande jurista argentino Raúl Zaffaroni chama de direito penal do inimigo. O governo do Rio tem a polícia que mais mata do mundo, tem toda a ideologia do confronto. Eu pensava que a política do governo federal era diferente, apesar de ter críticas a ela também. Mas agora eu percebo que as políticas estão coordenadas mesmo, o paradigma bélico é comum, inclusive com o uso das forças armadas na segurança pública, que é uma coisa muito controvertida na discussão nas escolas superiores de guerra, por exemplo. As forças armadas norte-americanas jamais entram como polícia. A não ser em casos muito especiais, como numa situação em 1993, muito pontual, e saem imediatamente. Mas eles gostariam muito que as forças armadas da América Latina entrassem nessa função porque isso faz com que desmoronem, como é o caso do México, onde essas ações das Forças Armadas são um fiasco completo, como é um fiasco completo a guerra contra as drogas. Mas é um fiasco em relação aos objetivos a que ela se propõe, porque na indústria da guerra ela é um espetáculo: vende tanques e armas para os dois lados. O capitalismo é completamente alimentado pelas guerras. Se olharmos toda a história do capitalismo, a própria história dos Estados Unidos, percebemos que nas crises econômicas a guerra levanta a economia. E nós aqui estamos incorporando esse modelito, que é um modelo fracassado. Os Estados Unidos se retiraram do Iraque fracassados, estão se retirando do Afeganistão sem possibilidade de vitória, mas a indústria bélica e seus serviços são vitoriosos. E é essa indústria bélica que agora está sendo mimetizada para as políticas de segurança pública, porque política de segurança pública não tem nada a ver com o que está acontecendo, com a guerra. Tanto que o Nelson Sá, aquele jornalista da Folha de São Paulo, compara a cobertura da Globo sobre o que aconteceu no Complexo do Alemão com a cobertura que a Fox News deu sobre a guerra do Iraque. Então, é uma grande mercadoria, tanto que na véspera de transmitir o dia inteiro aquele horror, a Globo anunciou o noticiário do dia seguinte como Tropa de elite 3 . Há todo um mercado da violência e do controle da violência. Para o grande público, telespectadores de programas policiais, colocar as forças armadas nisso seria o ápice, mas para os estudiosos, para quem não está querendo aparecer muito, isso é uma coisa muito perigosa, muito controversa e acho que inclusive é irresponsável .

Quais as relações desta política de segurança com o projeto de cidade que se tem?

Tem tudo a ver com o projeto da cidade do Rio de Janeiro. Existe agora no Rio um conjunto de forças privadas, de negócios esportivos transnacionais, que irão ocupar a cidade. Tanto a prefeitura do Rio quanto o governo estadual estão nessa ocupação. O choque de ordem, por exemplo, é um eufemismo para uma contenção truculenta da pobreza e para as estratégias de sobrevivência da pobreza, por isso eu digo que me surpreende o governo federal ter embarcado nessa.

Que assuntos ou aspectos devem ser levados em conta na elaboração de uma política de segurança pública?

A questão é o que quer dizer segurança pública para nós. Para mim, é transporte coletivo não monopolizado, de boa qualidade, escola pública de boa qualidade – o Rio é o penúltimo estado em termos de educação pública. Segurança é decorrência de um conjunto de políticas públicas; é assim que nos sentimos seguros: quando temos políticas urbanas, políticas de iluminação, de cultura, de lazer. Numa cidade que precisa de tanta polícia, de exército, marinha, aeronáutica, cercando um quilombo, ou um Canudos ou uma favela, alguma coisa está fora da ordem, como diz o Caetano Veloso. E essa cena que estamos vendo é recorrente na história do Brasil. Na República, Canudos foi a chacina fundacional: naquele tempo todo mundo achava que aqueles eram os monstros, os demônios que ameaçavam a República. Tem aquela frasesinha de Euclides da Cunha [no livro Os Sertões, que retrata a guerra de Canudos] que dizia que, no final, “eram apenas quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”. Estamos assistindo a isso: primeiro houve aquela coisa heróica da tomada do morro e agora já começamos a assistir situações de morador que foi roubado: aquilo que já conhecemos há tantos anos, que é a entrada violenta da polícia numa comunidade pobre, com roubo e pilhagem – que são os crimes de guerra.

Se formos a uma cidade tranqüila percebemos que tem pouca polícia. Em Buenos Aires, por exemplo, você entra num restaurante, aí aparece um velho policial gordo e pergunta: ‘boa tarde, está tudo bem?’ Essa é a figura daquilo que um dia já se sonhou no Rio de Janeiro: ter um policial ligado ao bairro. Mas essa estratégia bélica de ocupação, as próprias UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora] não passam de uma ocupação militar das favelas. Mesmo que a capitã seja doce, seja uma mulher, seja ótima, uma gracinha – como ela deve ser mesmo, eu não a conheço -, é de apenas uma comunidade, que está aí na peça publicitária, que foi vendida como a grande solução mágica. Mas continua a matança no Rio pela polícia. e então, a UPP não é um programa alternativo, é mais uma estratégia. Há dois especialistas israelenses que estão dizendo que o que ocorre aqui é igual ao que ocorre em Israel. Toda essa ideia de reconquista do território, que vários sociólogos estão aplaudindo, é coisa do paradigma bélico, as pessoas estão incorporando já o vocabulário da guerra para a segurança pública. Isso é um fiasco para mim que acredito que segurança é uma outra coisa, mas há quem goste de ver tanque virado para a favela, a favela ocupada pela polícia, os moradores pedindo licença para tocar uma música – músicas que a policia não gosta, como o funk, não pode tocar.

Do ponto de vista da guerra, então, é um sucesso?

Não é um sucesso, é um sucesso de vendas, tanto para a mídia quanto para os armamentos que estão sendo anunciados . Eu não vi ainda o sucesso do outro ponto de vista. Não tinha não sei quantos homens armados? Eu vi uns ferrados correndo armados, mas cadê o sucesso da operação? Porque a finalidade explícita era o sucesso da operação, mas a implícita é vender a guerra, a ode à polícia. O subsecretário da polícia civil estava vestido como os soldados se vestiam no Iraque. A Folha de São Paulo está dizendo que a Globo, que foi sócia na empreitada, já tinha sido avisada antes. Polícia civil é polícia investigativa, mas o cara está lá vestido de rambo, com colete, todo orgulhoso. E do lado de lá está Canudos. É aquilo que conhecemos há 500 anos, desde a colonização: só muda o crime, mas a estética é a mesma.

O discurso de uma parte da população é de recrudescimento da violência policial. Percebemos, nesse contexto, a glamourização das forças policiais, como do Bope, por exemplo. Como essa percepção é construída?

É construída ao longo dos tempos. A Rede Globo é uma grande construtora de subjetividades brasileiras. Mas acho que a sociologia fluminense também contribuiu muito para isso. Basta olhar as entrevistas dos sociólogos: só falta estarem de colete blindado aplaudindo. Agora a verdade das coisas começa a aparecer porque não prenderam tanta gente. Será que não tinha tanta gente assim? Não apareceu cocaína, só apareceu maconha; os fuzis que aparecem são meio velhos, não são tantos quanto diziam, as pessoas não aparecem. O que aconteceu ali? Eu não sei responder agora, estou procurando saber – por isso eu não gosto de falar no fogo dos acontecimentos porque o importante é reunir elementos para pensar profundamente. Por trás do Tropa de Elite 1 e 2, há aquele discursinho politicamente correto, o novo inimigo, mas no paradigma bélico o importante é ter sempre um inimigo. Embora as intenções do livro e do filme sejam boas, o sucesso dele mesmo são as cenas de tortura, que é quando o público vai ao delírio, e por isso é perverso porque é muito enganador. E o filme foi construído por um sociólogo e por um ex-Bope. O Zaffaroni, que é um dos maiores pensadores sobre esta questão na América Latina, diz o seguinte: para haver o genocídio sempre precisa ter um discurso legitimante. Na minha tese de doutorado O Medo na cidade do Rio de Janeiro, eu fiz um trabalho sobre o medo no Rio no século XIX e no século XX. Lá eu digo que o medo acua as pessoas. Na saída da ditadura, por exemplo, nós tínhamos uma resistência muito maior à truculência policial, e hoje ela é considerada heróica, é aplaudida. E se formos olhar tecnicamente e militarmente, há um uso desproporcional de força, uma porção de erros táticos e técnicos e aí temos que analisar com calma.

O que vem aparecendo na mídia com relação a esta situação do Rio é que a população do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro está aprovando as ações policiais. Isso tem acontecido de fato?

Até hoje eu não vi nenhum morador aplaudindo, eu só vejo a mídia dizendo isso. Você viu? Porque uma cartinha, até eu mando também dizendo isso. Eu duvido que os moradores do Alemão estejam gostando dos últimos dias.

Eu estudo esta questão de drogas há 20 anos, a polícia do Rio tem matado tanto e o mercado de drogas continua. No capitalismo, alguém irá tomar esse espaço e a pergunta é: quem? A partir da leitura da matéria da Folha de São Paulo de hoje (2/12), você começa a desconfiar de que já estão tomando. E agora colocamos as forças armadas também nisso, naquilo que o Darcy Ribeiro chamava de o moinho de gastar gente: vão botar o recruta e daqui a dez anos, o menino estará como? O Brasil, que está na guerra contra as drogas, é um dos poucos países do mundo onde o consumo de drogas aumentou. Isso não aconteceu com Portugal e Espanha, por exemplo, que descriminalizaram as drogas. Nós estamos pegando aqui a rapa das mercadorias da era Bush. No México, as forças armadas estão tomando uma corrida, porque eles conseguem fazer igual aos Estados Unidos fizeram no Afeganistão: ocupam, matam para caramba e aí? Como se faz para ficar? Ou as tropas são corrompidas ou é preciso ficar matando, matando e matando. Por exemplo, no Afeganistão, sob o regime talibã, a produção de drogas diminuiu, mas aumentou com a ocupação americana, o outro lugar foi a Colômbia, país também ocupado pelos Estados Unidos e onde a produção de drogas também aumentou. E o modelito aqui do Rio é todo copiado de lá, e tudo aparece assim como se fosse uma grande novidade. Aí vem um monte de sociólogo, faz um quadrinho, mostra que está tudo integrado e tal. Mas apreensão de droga é agulha no palheiro. Talvez eles consigam mesmo destruir uma das chamadas facções, mas e as outras? Quem vai pegar? É um aprofundamento de uma linha burra e derrotada. Mas deve ter algum lucro. A guerra contra as drogas é fracassada em todos os objetivos que ela propôs – produção, comercialização, consumo, violência e corrupção policial – mas ela continua regendo há mais de 40 anos no mundo e no Brasil. Então, uma política com tantos fracassos deve ter alguma coisa por trás dela que é um sucesso. Na minha modesta opinião, é porque ela alimenta a indústria da guerra e do controle do crime.

E qual a relação do tráfico de drogas com o modo de produção capitalista? O capitalismo pode prescindir deste negócio neste momento?

O capitalismo e o mundo contemporâneo não podem prescindir das drogas de uma forma geral. Está todo mundo no Lexotan, no Prozac, no Valium [medicamentos], no wisky ou no quer que seja. Mas algumas substâncias foram demonizadas, estas não podem ser consumidas. E estas são as que causaram a guerra. Mas na história do capitalismo já houve uma guerra a favor do ópio, que foi da Inglaterra contra a China. Todas as civilizações sempre t suas substâncias para ajudar a transcender ou por rituais religiosos ou mesmo cotidianos. Os romanos tomavam vinho, os amazônicos tomam auaska, os rastafari maconha e por aí vai. E o ocidente cheira pó, toma calmante e estas drogas. Só que o mercado ilícito acaba ficando para os pobres, porque os nossos jovens [de classe média e ricos] vão trabalhar em bancos, em produtoras, em jornais, mas a mão de obra pobre é que vai se encarregar da parte barbarizada do mercado. Mas no capitalismo, mercado é mercado. A Folha de S. Paulo já diz hoje que tem milícia dentro do Alemão. Mas isso é tão obvio que iria acontecer! A cobertura Fox News da Globo não me convenceu, mas criou toda esta pedida de truculência. A capa da Veja era o Capitão Nascimento como herói nacional. Você me perguntou sobre a adesão das classes populares a esta truculência e eu acho que tudo isso contribui para esta adesão. Mas também não ouviremos em lugar nenhum as pessoas que não aderem.

A senhora comentou sobre sua tese O medo na cidade do Rio de Janeiro, onde mostra como a criminalização da pobreza sempre foi um elemento da política de segurança da cidade. A criminalização do traficante hoje atua também como elemento de criminalização da favela?

A criminalização da pobreza sempre aconteceu. O Nilo Batista diz que o criminal é um fetiche para esconder a conflitividade social. Ao observarmos os crimes no século XIX, percebemos que eram todos crimes de escravo. O discurso é sempre o mesmo. Eu tenho isso no livro porque pesquisei os arquivos do século XIX e lá dizia: “magotes de negros armados pelos morros”. É igualzinho. O que muda é só o discurso, ou é porque é capoeira, ou quilombola, ou é sambista, ou funkeiro, ou é porque é traficante, entre aspas. Eu tive um aluno delegado [Orlando Zaccone] que escreveu um livro chamado Acionistas do nada. Quando dei a aula sobre drogas, ele falou que quando era delegado na Barra da Tijuca fez pouquíssimos registros de tráfico. Um tempo depois ele foi transferido para Jacarepaguá, onde tem muita favela, e aí ele viu que tinha dezenas de autuações por tráfico a cada dia em Jacarepaguá. Agora, me conte uma coisa: será que é porque não tem tráfico na Barra da Tijuca? Ou será que é porque a venda varejista de drogas na Barra é feita de uma maneira diferente? Eu não estou dizendo que quero fazer uma guerra contra a Barra da Tijuca, o que estou dizendo é que o tráfico está em todos os lugares, mas o tráfico do varejo pobre virou o inimigo nacional. Você passa nas ruas e os pobres também, os porteiros, estão todos dizendo: ‘é uma raça ruim, tem que matar’. Isso é fruto de uma educação. Ao ler as cartas dos leitores do Globo, se percebe qual é esse projeto educacional. Então, eu acho que andamos para trás, na saída da ditadura tínhamos muito mais resistência. Hoje eu vejo as pessoas de esquerda, inclusive, falando ainda sem nem ter conseguido avaliar o que está acontecendo. Eu ainda não estou entendendo direito o que está acontecendo, a grande vitória militar eu não vi.

A senhora disse que ao longo da história sempre houve um personagem criminalizado, o capoeira, o sambista, por exemplo. Mas o que determinou a construção do sujeito conhecido como traficante, alvo desta criminalização violenta por parte da polícia, mas também gerador de violência, o que, inclusive, serve para justificar também a truculência dos aparatos de repressão do estado?

Primeiro, eu acho que não se pode generalizar a categoria de traficante, assim também como eu acho que não se pode generalizar falando que a polícia é assim ou assado. Eu não conheço esses caras sobre os quais estão dizendo que são violentos, você sabe se eles realmente são? E eu não chamaria de traficantes, eu os chamo de comerciantes varejistas.

Mas existe uma diferença deste sujeito de agora para os outros sujeitos que a senhora comentou?

Eles eram demonizados da mesma forma. Existe essa coisa: o traficante é mal. Mas, gente, tem o indolador, de 14 anos, que é o menino que faz a embalagem, a mãe é passadeira, está fora o dia todo e o menino embala a droga. Nem todo mundo que trabalha nesse negócio barbarizado é bárbaro, mas ele vai se barbarizando por causa da guerra. Outro dia eu vi um filme lindo americano sobre um militar que o filho é morto na volta da guerra do Iraque. No início você pensa que ele é assassinado porque testemunhou horrores no Iraque. Mas no final você descobre que o menino virou um monstro, eu odeio usar esta palavra, uso entre aspas: o menino começa a gostar de matar. E então, a guerra faz isso. Eu acho que daqui a pouco nós vamos começar a ter esses psicopatas iguais aos psicopatas americanos, que só tem nos Estados Unidos, que é o cara que sai atirando em todo mundo, que são pessoas com transtornos decorrentes da guerra. O mercado varejista do capitalismo ilícito é bárbaro, o mercado bom ficará para os meus filhos, um é designer, o outro é advogado, o outro trabalha em banco, mas o filho da minha passadeira tem que se conformae com a bolsinha família, o salariozinho ruim, ficar direitinho, não se comportar mal com a polícia. Mas, mesmo assim, de vez em quando ele irá apanhar na cara, levar um tiro, alguém vai botar uma arma e um flagrante na mão dele. As pessoas vão se barbarizando: tem também uma educação para isso, que é a educação do esculacho, o menino pobre, negro, adolescente no Rio de Janeiro pode ser morto a qualquer momento e ser chamado de traficante.

E a perspectiva é de que esta política de segurança pública continue?

O discurso federal assustadoramente está sendo este, eu não esperava isso. Me considero uma pessoa triste porque pensava que isso teria um rumo diferente, mas eu vejo que é este lixo da era Bush que está sendo vendido para nós como tecnologia de segurança pública, armas, sentimentos de ódio, de truculência. Acho que estamos muito mal. A maneira de furar também é a de mídias como vocês, que têm uma capacidade de vazar informações e criar um público qualificado, porque a de massa fez uma educação sinistra nos últimos tempos.


Leia aqui um dos estudos acadêmico de Vera Malaguti sobre crime organizado, Estado e pobreza.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O DRAGÃO NA GARAGEM

Por Carl Sagan (*)

- Um dragão que cospe fogo pelas ventas vive na minha garagem.

Suponhamos que eu lhe faça seriamente essa afirmação. Com certeza você iria querer verificá-la, ver por si mesmo. São inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos séculos, mas não há evidências reais. Que oportunidade!

- Mostre-me – você diz. Eu o levo até a minha garagem. Você olha para dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias, um velho triciclo, mas nada de dragão.

- Onde está o dragão? – você pergunta

- Oh, está ali – respondo, acenando vagamente. – Esqueci de lhe dizer que é um dragão invisível.

Você propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão

- Boa idéia – digo eu –, mas esse dragão flutua no ar.

Então, você quer usar um sensor infravermelho para detectar o fogo invisível.

- Boa idéia, mas o fogo invisível é também desprovido de calor.

Você quer borrifar o dragão com tinta para torná-lo visível.

- Boa idéia, só que é um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.

E assim por diante. Eu me oponho a todo teste físico que você propõe com uma explicação especial de por que não vai funcionar.

Qual a diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar a minha afirmação, se nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu dragão existe? A sua incapacidade de invalidar a minha hipótese não é absolutamente a mesma coisa que provar a veracidade dela. Alegações que não podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter verídico, seja qual for o valor que possam ter por nos inspirar ou estimular nosso sentimento de admiração. O que eu estou pedindo a você é tão somente que, em face da ausência de evidências, acredite na minha palavra.

(*) Extraído do livro "O Mundo Assombrado por Demônios - a ciência vista como uma vela no escuro". Ed. Companhia das Letras.

Download aqui.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

PRODUTIVIDADE E FOME

A produtividade do trabalho agrícola no Brasil cresceu 123,7% entre 1988-2008. Foi a maior taxa entre os países em desenvolvimento nesse período, com o valor agregado por agricultor pulando de US$ 1.435 para US$ 2.311 em vinte anos.

Os dados são do Fundo Internacional do Desenvolvimento Agrícola (Fida), das Nações Unidas, em estudo sobre a pobreza rural em cerca de 120 países. No mesmo período, a China registrou aumento de produtividade agrícola de 81,6%. O valor agregado por agricultor passou de US$ 237 para US$ 430. Na Índia, a alta foi de 27,3%, indo de US$ 316 para US$ 402. No México, a produtividade cresceu 32,2%, passando de US$ 2.132 para US$ 2.821. Na Argentina subiu 60,9% e o valor agregado passou de US$ 6.690 para US$ 10.762.

O fundo estima que melhoras nos últimos dez anos tiraram mais de 350 milhões de pessoas da pobreza nas áreas rurais. Isso correu principalmente na Ásia, sobretudo na China. No Brasil o percentual de população vivendo com US$ 1,25 por dia declinou dramaticamente, de 17,7% para 5,2% no período 1988-2008.Mas o baixo nível de vida persiste entre 70% da população rural de 1,4 bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento.


Leia mais em:

- O Estado e seus desafios na construção do desenvolvimento brasileiro (Carta Maior)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

DESCONFIÔMETRO: ATIVAR


Exibir mapa ampliado

Alguns voluntarismos da blogosfera têm o poder de ligar meu desconfiômetro. A recente celeuma sobre a quarta ponte em Rio Branco é um deles.

Graças ao IBGE sabe-se que a capital acreana tem 8.836 quilômetros quadrados, ou, como dizem seus moradores, 94 quilômetros "de frente" por outros 94 "de fundo". É uma gigante. Fortaleza (CE) tem 315 Km², Curitiba (PR) apenas 435 Km², Belém (PA) chega a 1.059 Km² e a cobiçada São Paulo (SP) resume-se a 1.523 Km².

Dentro disso tudo estão espalhados 335, quase 336 mil habitantes, com uma frota de veículos (incluindo motocicletas, ônibus, vans etc) que em 2009 beirava a casa dos 90 mil. Era como se 1 em cada 4 rio-branquenses tivesse um veículo.

Mas não tem, da mesma forma que o nosso perímetro urbano não ocupa 8.836 Km². No Google Maps (acima) um trajeto entre os bairros Vila Acre e Custódio Freire - respectivamente, no extremo sul e norte da da zona urbana - chega a 21 quilômetros no máximo.

Nesse curto intervalo circulam os quase 90 mil veículos. Diariamente. Enlouquecedoramente. O gênio que projetou Rio Branco, dando-lhe (de novo) 8.836 Km², foi acompanhado por outros que deram-lhe duas pontes, ambas de mão única e separadas por aproximadamente 300 metros. Ninguém ousou imaginar que a cidade, por ter crescido à beira de um rio (como todas as cidades amazônicas), necessitaria em breve de alternativas para desafogar o tráfego sob pena de transformar a região próxima às pontes em um inferno nos horários de pico!

Pois essa inanição mental me parece epidêmica: o que mais se encontra hoje, nos blogs locais pelo menos, são análises espetaculares sobre o quanto não precisamos de pontes e de rotas alternativas para o trânsito caótico do centro da cidade!

Não é incrível? Mais incrível ainda é que esse discurso encontre adeptos! O que querem, que o direito de ir e vir se torne impraticável?

Não discordo que obras públicas devam ser fiscalizadas rigorosamente, com embargos quando necessário. Nem sou contra, longe disso, de que denúncias sobre a malversação de dinheiro público venham a lume.

A questão central é que Rio Branco sempre precisou de um plano abrangente de modernização. Nossa cidade sempre foi inviável do ponto de vista da engenharia de tráfego exatamente porque cresceu demais à beira do rio Acre, para todos os lados, desordenadamente e com um único ponto de ligação entre as duas margens. Com a expansão da cidade, o aumento populacional e da frota, a criação de novas pontes - em locais afastados do centro - se faz obviamente necessária.

O futuro dirá, mas na minha opinião ainda há poucas pontes. Em breve uma quinta será necessária entre os bairros Quinze e Aeroporto Velho, integrando a rede de ruas ampliadas nos dois lados da cidade.

Será necessário também resolver o problema dos engarrafamentos no centro da cidade, o que pode ocorrer se o governo topar transformar as nossas "praças" em estacionamentos (há praças demais: só da Ponte JK até o prédio da Prefeitura são seis!). Pode-se ainda transformar o centro em um enorme calçadão com estacionamentos amplos - nas praças - e remover todos os prédios públicos para regiões mais afastadas, estrategicamente planejadas.

Enfim, é preciso mexer com Rio Branco. O que não podemos é continuar é nesse aperto absurdo porque meia dúzia de intelectuais ouvem vozes e vêem espíritos. Não quando temos quase 9 mil Km² de margem de manobra!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA



Do Brasil de Fato


O ano de 2010, no Brasil, foi cheio de casos midiáticos – como o de Mércia Nakashima e de Eliza Samúdio – que mostraram o quanto a violência contra a mulher está presente na sociedade brasileira e o quanto se deve caminhar para coibir a violência contra a mulher. “As políticas públicas existentes hoje devem ser intensificadas, implementadas e, além disso, nós queremos ter o controle social dessas políticas”, explica Sônia Coelho, da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e da Marcha Mundial de Mulheres, durante um ato no centro de São Paulo que reuniu, no dia 25 de novembro, dezenas de mulheres em frente à Secretaria de Justiça. “Estamos aqui no dia latinoamericano de luta pela não violência contra as mulheres para exigir do governo do Estado de São Paulo que implemente o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher”, afirmou Sônia.

O Pacto foi elaborado em âmbito federal pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e lançado em agosto de 2007, pouco mais de um ano após a Lei Maria da Penha. É um acordo federativo entre o governo federal, os governos dos Estados e dos municípios brasileiros para o planejamento de ações que visem à consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres por meio da implantação de políticas públicas integradas em todo território nacional, criando condições para que a Lei Maria da Penha possa ser posta em prática.

Reivindicações

O Pacto tem que ser assinado por cada Estado. Roraima e Santa Catarina são os únicos estados que ainda não assinaram. São Paulo assinou apenas no final de 2008, após muita pressão dos movimentos feministas. Entretanto, até hoje, o Estado não definiu um orçamento para implementar o Pacto. “Se só uma parte pactua, então não há pacto. São Paulo ainda não possui um órgão responsável pelas políticas contra a violência [sexista]”, afirma Sônia, que explica que no início do ano que vem será feita uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para exigir que no orçamento de 2011 seja reservado um recurso específico para o Pacto. “Infelizmente, este ano já não há como exigir nada, mas queremos garantir que no ano que vem haja recursos”, conta Sônia.

Os números de São Paulo mostram o quanto o problema necessita de esforços. De janeiro a setembro, 27 mulheres foram assassinadas no Estado. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 –, que recebe queixas de violência contra a mulher, registrou alta de 112% de janeiro a julho em comparação com o mesmo período de 2009.

Dados fornecidos pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República apontam 343.063 atendimentos nos sete primeiros meses de 2010 – pelo disque denúncia (180). São Paulo foi o estado com maior número de denúncias.

Segundo o Mapa da Violência 2010, organizado pelo Instituto Sangari, uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil, o que faz do país o 12° no ranking mundial de assassinatos de mulheres. Quarenta por cento dessas mulheres têm entre 18 e 30 anos, e a maioria é morta por parentes, maridos, namorados, ex-companheiros ou homens que foram rejeitados por elas.

Avançar

Para Sônia, somente será possível avançar no Estado de São Paulo se houver investimento em diversas áreas, como Saúde, Habitação e Justiça, criando mais delegacias de mulheres e juizados especiais, conforme definido pela Lei Maria da Penha, e com pessoal qualificado para atender casos de violência doméstica. O Estado possui 645 municípios e apenas 129 delegacias entre capital e interior, sendo que a maioria delas não funciona nos fins de semana ou de noite, momentos em que mais ocorrem casos de violência. Há também apenas 107 serviços de saúde especializados para receber e orientar as mulheres vítimas de violência.

Um dos casos mais urgentes é a criação de juizados especiais com equipes multiprofissionais, visto como uma das condições para a efetivação da Lei Maria da Penha. Hoje, a maioria dos casos vai para as varas criminais comuns, que muitas vezes não têm o preparo necessário para atender a especificidade da violência contra a mulher. No Estado de São Paulo, até agora, foi criado apenas um Juizado de Violência Doméstica, vinculado à 8ª Vara Criminal. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), essas varas não apresentam a estrutura adequada para atender os casos de violência e acolher conforme exige a lei Maria da Penha.

Os números da violência

- Hoje, em todos os 5.564 municípios do Brasil, há apenas 68 casas-abrigo e 146 centros de referência, que entram na categoria de centros de assistência social. O ideal seria que houvesse cerca de três mil desses estabelecimentos.

- No aspecto jurídico, há 56 núcleos de atendimentos especializados em defensorias públicas e 475 delegacias da mulher ou postos especializados. Há, ainda, 147 juizados ou varas especializadas em violência contra a mulher; o ideal seria ter, pelo menos, uma vara em cada uma das cerca de 2.600 comarcas do país.

- Nos últimos quatro anos, o serviço telefônico de atendimento a mulheres vítimas de violência, o 180, teve um aumento de acesso de 1.700%. O Estado de São Paulo lidera o ranking de ligações.

- Dentre as mulheres que acessam o serviço, 69% são agredidas diariamente. A maioria das mulheres que liga é negra, com 43%. A idade de 56% das mulheres fica entre 20 e 40 anos, e 52% estão casadas ou em união estável.

- Mais da metade da população, 55%, conhece pelo menos uma mulher vítima de agressão.

- A Lei Maria da Penha é conhecida por 78% da população. Movimentos feministas e de mulheres afirmam que esse número não reflete um conhecimento qualitativo da lei.

- A Delegacia da Mulher é citada como o primeiro lugar que a mulher deve ir em caso de agressão por 78% das pessoas.

- A maioria das pessoas, 56%, não confia nos serviços de proteção jurídica e policial para mulheres agredidas. Desses, 25% afirmam que as leis não são suficientes, 13% dizem que a polícia considera outros crimes mais importantes, 11% criticam os policiais por não levar as denúncias a sério e 7% acreditam que juízes e policiais são machistas e até concordam com o agressor.

- Um balanço do Conselho Nacional de Justiça mostrou que apenas 2% dos processos concluídos contra agressores, enquadrados na Lei Maria da Penha, resultaram em punição.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A MORDAÇA GAY

Um dos debates mais promissores da futura gestão Dilma é a discussão sobre o Projeto de Lei 122/2006, que propõe a criminalização da homofobia. A questão já rendeu várias pautas para jornalistas, especialmente em programas de auditório na TV, e vem sendo tratada pelo Congresso Nacional, acredite se quiser, como uma queda-de-braço entre grupos de defesa dos direitos homoafetivos e líderes de igrejas, notadamente cristãs.

É sugestivo que nas discussões televisivas não apareçam antropólogos, sociólogos, cientistas políticos ou biólogos. A voz da ciência cede lugar às performances de pastores evangélicos, que - felizmente - usam nessas aparições os mesmos argumentos que orientam as bancadas evangélicas nas diversas instâncias do Poder Legislativo.

Esses argumentos são importantes porque ajudam a esclarecer a questão. Seu debate permite conhecer não somente a solução para os crimes cometidos contra homossexuais, como ainda ampliar o nosso conhecimento do quanto o discurso religioso consegue mobilizar a sociedade brasileira.

O primeiro grande argumento apresentado nessas ocasiões diz respeito à possibilidade da lei, se aprovada, criar uma espécie de "mordaça gay" nos demais segmentos e grupos sociais. O seguinte raciocínio é: "Como a Constituição garante a liberdade de expressão, estabelecer como crime a opinião pessoal negativa sobre a homossexualidade não seria inconstitucional?"

Obviamente os grupos contrários à aprovação do PL 122/2006, geralmente religiosos (evangélicos pentecostais em particular), apostam que sim e fazem um poderoso lobby para tentar barrar o projeto, que encontra-se parado desde agosto de 2008 na Comissão de Direitos Humanos e Gestão Participativa. A idéia subjacente a esse argumento é que, assim como não é crime a expressão de idéia negativa sobre a condição heterossexual, não deveria ser criminalizada a mesma conduta em relação ao homossexual.

Discordo desse argumento, por vários motivos. O principal deles é que a condição heterossexual não é marginalizada ou mesmo considerada abertamente ofensiva, como ocorre com a homossexualidade. Os "valores sociais" dados a ambos são diferentes. Enquanto a conduta heterossexual possui toda uma herança arquetípica, inclusive religiosa, que consiste no homem provedor e na mulher virtuosa (com circunscrições bem delimitadas para ambos no gestuário, roupas, cortes de cabelo, trejeitos, comportamentos autorizados etc), a homossexual é motivo de desabonamento e assédio morais, agressões, juízos negativos de valor e assemelhados.

Portanto, a questão ultrapassa a mera contraposição entre o direito de "juízo crítico" a uma conduta sexual, o que estaria, em tese, amparado pelos direitos à livre expressão e a igualdade entre os indivíduos previstos no Artigo 5 (cláusula pétrea) da Constituição de 88. Agir assim não seria apenas desconsiderar as diferenças profundas entre uma e outra condição na prática social, mas na prática negar precisamente a livre expressão e a igualdade para homossexuais. Ou seja: o que demanda a existência de uma lei contra a homofobia é exatamente a existência de lugares valorativos para as diferentes condições sexuais.

Como uma democracia deve consistir no direito à expressão e à igualdade de todos os cidadãos, indistintamente de quaisquer características adicionais, consequentemente a discriminação por sexo é não só inconstitucional, é antidemocrática.

Pode-se contra-argumentar que já existem leis complementares no ambito penal para crimes de agressão, roubo, furto e até mesmo assédio moral que se aplicam a todos os públicos, independentemente da sua orientação sexual. Surge então uma questão similar à anterior: "Uma lei que punisse a homofobia não seria um adendo desnecessário à legislação atual, criando na prática uma casta especial de protegidos com mais direitos que os demais?"

Esta questão é claramente mais simples. Os crimes cometidos contra homossexuais e heterossexuais são obviamente os mesmos. As motivações, porém, são diferentes. O que uma lei complementar deve buscar inibir não é os crimes cometidos, mas a sua motivação subjacente: a diferença de orientação sexual. Como a legislação nacional não tipifica como crime a conduta discriminatória (que pode ou não redundar em crime), é necessária uma legislação específica para inibir a percepção da homossexualidade como conduta "errada", ou seja, passível de discriminação. Como a discriminação já é um ato de violência (homofobia), esta cria a situação favorável para que pessoas de conduta discriminatória mais acentuada cometam crimes cujas penas já são previstas em outros códigos jurídicos, notadamente no Código Penal Brasileiro.

A necessidade de uma lei contra a homofobia, nesse contexto, justifica-se pela necessidade social de estabelecer o indivíduo de condição homossexual como um portador dos mesmos direitos elementares que os demais. Esse direito, negado na prática cotidiana, lhe assiste não somente por força da Constituição de 88, mas pelo princípio democrático segundo o qual todos os cidadãos, indistintamente de quaisquer características que possam ter ou desenvolver, devem ser iguais em direitos e deveres.

Para a Sociologia, porém, a questão fundamental desse debate está um pouco além.

Há pouco tempo as mesmas questões foram levantadas quando da criação e aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Congresso. Temia-se uma "ditadura dos negros" sobre os demais grupos étnicos, por um lado, e dizia-se ainda que os negros pretendiam ter mais direitos que os outros. Em resposta, os movimentos de defesa dos direitos dos negros trouxeram ao debate o enorme passivo social criado pelo resultado da abolição da escravatura, em 1888, sem qualquer cobertura social, e a incomensurável contribuição social, política e econômica, dentre outros segmentos, desse povo para a constituição do Brasil.

Seguiu-se então a análise do fato concreto, isto é, daquilo que o sociólogo Florestan Fernandes definiu como a "inserção dos negros nas sociedades de classe". Foi aí que se descobriu que o "lugar social" dado aos negros era o da marginalização catapultado não pelo preconceito étnico, mas de classe social. Constatado que o preconceito agia e age sobre esse grupo como forma de discriminá-lo, reduzindo-o ou desabonando-o, o Congresso aprovou o Estatuto da Igualdade Racial e o governo federal passou a elaborar políticas de cobertura social para negros, usando assim a ascensão social como estratégia de combate ao preconceito.

Somando esses dois exemplos (o dos homossexuais e o dos negros) a toda a epopéia histórica da luta feminista pelo direito ao divórcio, ao voto e ao aborto, acrescentando-se ainda os estatutos do Idoso e da Criança e Adolescente, não deveríamos observar mais atentamente a origem dessa segmentação crescente da proteção social no Brasil?

Trata-se, evidentemente, de tarefa sociológica árdua. Mas há algumas pistas.

A melhor delas, na minha opinião, está relacionada com a qualidade da nossa democracia. A lição mais óbvia que se pode tirar de tantos códigos simultâneos é que cada vez mais grupos ou segmentos sociais precisam de reconhecimento do seu direito à democracia, o que, se não é contraditório, é dialético: não vivemos em um Estado de Direito, regidos por uma Constituição?

Não estou contestando a existência dos códigos, mas a motivação subjacente: qual é a origem do fenômeno social (porque trata-se, evidentemente, de um fenômeno social) que torna necessária, até indispensável, a existência de leis para afirmar o que a Constituição já afirma, ou seja, que todos são cidadãos cobertos pelos mesmos direitos e deveres em um regime democrático?

Por que é necessário que se criminalize a conduta que alija um grupo de pessoas dos seus direitos mais básicos para que, por força de lei, a igualdade constitucional seja respeitada?

Esse fenômeno, longe de sinalizar democracia, deve deixar-nos alertas. Nossa sociedade cultiva algum dispositivo cujo princípio funcional é a "eleição" de um comportamento válido e a consequente discriminação das demais. Um tipo de sexualidade, um tipo de etnia, um tipo de idade etc. Essa produção sistemática de lugares simbólicos é evidentemente antidemocrática, e por isso mesmo típica de sociedades profundamente autoritárias, que precisam manter algum controle irrestrito sobre os cidadãos por meio de condutas fascistas ou teocêntricas e assim obter o máximo de legitimidade possível para o seu próprio discurso, discriminando, violentando e até mesmo punindo severamente os discursos e expressões diferentes.

Numa sociedade teocêntrica isso se constitui em um problema quase insolúvel. Numa sociedade laica, a tendência é que cada vez mais grupos tendam a procurar cobertura do Estado para poder exercer os direitos concedidos pela democracia representativa.

Há que se concordar, logo, que o lobby de líderes religiosos contra a concessão desses direitos é bastante elementar quando se quer elucidar a origem do fenômeno.

E não, não sou contra pastores, padres, rabinos ou líderes de qualquer outra confissão religiosa expressarem seus conceitos publicamente. O que me assusta é que esses conceitos saiam da circunscrição da autoridade desses líderes, ou seja, suas igrejas, templos e sinagogas.

Pode-se contra-argumentar, de novo, que pastores e religiosos em geral também são cidadãos e que nesta condição deveriam ter o direito de expressar-se publicamente sobre o tema. Eles têm, claro. O que não podem é argumentar religiosamente sobre uma questão civil, isto é, política. Trata-se então da qualidade dos argumentos: o pastor que argumenta que o PL 122/2006 vai instituir uma "mordaça gay" na sociedade demonstra ignorar que o seu próprio argumento pressupõe o direito de discriminar o comportamento homossexual.

A origem dessa motivação é obviamente religiosa: é sabido que as religiões de tronco árabe como Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, proíbem claramente a orientação homossexual.

Têm todo o direito de fazê-lo, até porque esse exercício é que nos revela cristalinamente a origem do autoritarismo que vem produzindo uma democracia cada vez mais antidemocrática e excludente no Brasil. Mas esse direito de expressão, fundado numa doutrina milenar, deve estar circunscrito aos respectivos templos, onde é aceito como doutrina, questão de fé.

Mas a democracia brasileira, ao contrário do que se possa achar, não é uma igreja.

sábado, 27 de novembro de 2010

BEYOND CITIZEN KANE



Título em português: Muito Além do Cidadão Kane

Origens e conexões da Rede Globo de Televisão com o Regime Militar e uma análise da sua nefasta influência na sociedade brasileira, ocultando a realidade e manipulando opiniões.

Mais sobre o documentário aqui.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O AFETO AUTORITÁRIO



Por
Renato Janine Ribeiro

Tenho defendido as novelas. Contra a opinião de muitos colegas da Universidade, sustento que elas têm papel positivo na transmissão de certos ideais, em especial o da igualdade da mulher em relação ao homem e o da condenação do preconceito de raça.

É claro que a TV é menos profunda ou pioneira que os grupos feministas ou de consciência indígena ou negra – mas só ela pode levar uma idéia, um nome de livro, um comportamento a 50 ou 60 milhões de pessoas.

Mas, justamente porque defendo o que é positivo nas novelas, devo criticar o afeto autoritário que nelas se vê. Penso no despotismo do patrão sobre os empregados, e da patroa sobre a doméstica negra. Um personagem como Pedro (José Mayer) em Laços de família não respeita as pessoas – e no entanto é, globalmente falando, mais simpático que antipático. A TV ainda tolera condutas que socialmente se tornaram inaceitáveis.

Uma novela precisa ter personagens de várias classes sociais. Se não tiver pobres, classe média e ricos, não atingirá todos os públicos. E a comunicação entre essas classes se dá sobretudo pelo amor. Isso faz parte das regras do gênero e não vou contestá-las aqui.

O problema, porém, é que no contato entre os ricos e os pobres desponta um autoritarismo que acabamos aceitando, os espectadores, graças a um enredo que faz das personagens despóticas figuras agradáveis, humanas, quase positivas.

Por que essa simpatia, ou tolerância, com os mini-déspotas do dia a dia? Nossa sociedade nunca liquidou seu legado autoritário. Quando se aboliu a escravidão, não houve um projeto de cidadania para os negros. Ao contrário, tudo servia de pretexto para reprimi-los – por exemplo, a capoeira, os cultos afro-brasileiros, que eram caso de polícia.

Nosso know how de relações sociais ainda tem um quê da escravatura. Aceitamos muitas vezes que o elemento descontraído, simpático, afetuoso venha junto com uma centelha de autoritarismo. Lembremos como Lima Duarte se especializou em fazer clones de Sinhozinho Malta - o fazendeiro de Roque Santeiro (1985-86), que simbolizava todo o entulho da ditadura militar sobrevivendo no regime civil.

Mesmo quando a TV valoriza a mulher perante o homem, seu limite de atuação é a sociedade de consumo. Nossa televisão é muito mais consumista que as européias. Quem tem vale mais do que aquele que não tem. E por isso o patrão muitas vezes trata mal o empregado.

Isso é tão comum que às vezes nem se percebe. Sugestão: prestem atenção no modo como as pessoas são servidas à mesa, nas novelas. Verifiquem se agradecem à empregada, se dizem por favor. É mais provável que lhe dirijam alguma palavra atravessada – e que isso acabe passando, não digo como bom, mas como natural ou comum.

O Brasil vai melhorar do autoritarismo quando esse tipo de conduta não for mais aceito, quando não suscitar mais sorriso, sequer amarelo, mas causar repulsa ou pelo menos estranheza. Quando não nos reconhecermos mais, ou não reconhecermos mais nosso país, no recorte que trata os mais pobres como desprovidos de direitos, e até mesmo do direito elementar de ouvir, sempre, por favor e obrigado.

Isso é pouco? Não acho. Há vários modos de ajustar contas com um passado detestável. Um deles é mexer nos pequenos gestos, percebendo que nossos valores não são coisa muito abstrata, mas se exprimem em nosso modo de guiar o carro ou de tratar a pessoa do lado. O mesmo vale para a TV – e, quando ela não agir bem, devemos cobrar isso dela. Melhorar o país dá trabalho. Isso inclui reclamar pelo que achamos justo.


Clique aqui para ler o livro "O Afeto Autoritário: Televisão, Ética e Democracia", publicado em 2004 pela Ed. Ateliê.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CUBA: MUDANÇAS A CAMINHO

Da Carta Maior

Ao mesmo tempo do anúncio da realização do congresso, feito pelo segundo secretário da organização e presidente da República, o general Raúl Castro, também foi divulgado e posto em circulação, com uma edição de milhares de exemplares, uma publicação de 32 páginas intitulada Proyecto de lineamientos de la política económica y social, um documento que, por meio de um texto introdutório e 291 propostas, começa a definir um novo modelo de política econômica, produtiva, comercial e social do país, que se espera, consiga superar a crise atual.

Esse esforço é anunciado sob o princípio de que “o sistema de planificação socialista continuará sendo a via principal para a direção da economia nacional” e com a perspectiva de que a ilha rume para a direção de uma eficiência produtiva, promova a eliminação das mais diversas formas de paternalismo geradas e estimuladas pelo próprio Estado cubano e obtenha a necessária credibilidade por parte de antigos e novos investidores estrangeiros.

O propósito da massiva distribuição do "Proyecto de lineamientos" é que ele se converta em um texto debatido pelas diversas instâncias partidárias e pela população em geral, em busca de acordos, divergências e propostas de mudanças em suas propostas concretas, táticas e estratégicas. No entanto, a formulação categórica de muitos de seus pontos, a especialização necessária (em matéria econômica, financeira e comercial) para a compreensão de muitos de seus parágrafos e seu percurso pelos mais diferentes aspectos da realidade econômica cubana (desde a balança internacional de pagamentos até a produção artesanal e a recuperação de pneus) advertem que sua aplicação global é uma política em vias de fato, cuja materialização está se produzindo como parte do chamado “aperfeiçoamento do modelo econômico cubano” promovido pelo governo diante das dificuldades, incongruências e incapacidades do modelo até aqui posto em prática que, em muitos aspectos, respondeu às exigências da profunda a crise que o país atravessou na década de 1990, e que promoveu, entre outros males, a existência de uma dupla circulação monetária.

São muitos os aspectos que chamam a atenção no documento distribuído ao público, mas, sem dúvida, entre os mais notáveis destaca-se a descentralização da economia por meio da autonomia empresarial e a adoção de mecanismos econômicos e financeiros em um processo no qual se costumava aplicar decisões políticas e administrativas, muitas vezes antieconômicas, como a realidade do país demonstrou. Por isso, em uma linguagem muito precisa, o projeto partidário adverte que a existência de quase todas as empresas dependerá de sua capacidade de gerar lucros. Caso não consigam esse objetivo, essas empresas serão liquidadas. Além disso, entidades que receberam recursos do Estado serão reduzidas ao mínimo. O texto afirma, inclusive, que nos projetos solidários com outros países (parte essencial da política internacional cubana) será levado em conta o elemento econômico, um fator quase sempre ignorado nesta esfera.

Na mesma direção aparecem abundantes apelos à supressão de subsídios (que podem levar até à desaparição da caderneta de abastecimento ou racionamento, que fornece uma pequena quantidade de produtos indispensáveis a baixos preços para a alimentação de um alto percentual de famílias cubanas), à eliminação de postos de trabalho nas empresas estatais e organismos do Estado (processo já em marcha que envolve a demissão de 500 mil trabalhadores em seis meses) e ao fomento de formas não estatais de produção, serviço e posse da terra, com previsão de aumento da força laboral em cooperativas e por conta própria, tendência que é acompanhada pela implementação de uma nova política fiscal que contempla grandes impostos para os maiores lucros.

O processo de inversão econômica que iniciou em Cuba é, em todos os seus aspectos, profundo e radical, sem que isso implique grandes modificações no sistema político unipartidário e na estrutura de governo. Mas a ressonância social provocada pelas mudanças já anunciadas e por outras que ainda virão, será sem dúvida um desafio que deverá ser assumido por esse mesmo modelo político, até aqui baseado na máxima estatização, no controle centralizado, na total dependência do cidadão das estruturas produtivas, distributivas e econômicas do Estado.

Do ponto de vista da população, as mudanças mais polêmicas têm a ver, precisamente, com a nova política laboral e com a supressão de subsídios – que chega até os setores da educação e da saúde. A possibilidade de que 1% dos desempregados dos próximos meses rumem para o trabalho por conta própria, ao mesmo tempo em que os que já estavam nesta situação legalizem sua situação, parece ser uma das soluções mais complexas, levando em conta a crítica situação econômica do país (falta de insumos, materiais, etc.), a política tributária que contempla altos pagamentos ao Estado e a carestia, que voltou a aumentar recentemente, de elementos básicos para algumas produções e serviços, como a eletricidade e o combustível.

É evidente que as necessárias mudanças “estruturais e de conceitos” do modelo cubano, anunciadas há três anos pelo então presidente interino Raúl Castro, começam a tomar forma e espaço na vida social e econômica cubana. É preciso ver agora como sua implementação afetará a vida de milhões de cubanos, chamados a viver em um país onde a competitividade econômica e o trabalho substituirão o paternalismo estatal, onde a eficiência pretende ocupar o lugar do subsídio e onde se geram, inevitavelmente, desigualdades econômicas e sociais após décadas de igualitarismo, oficialmente criado e promovido.

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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

10 ESTRATÉGIAS DE MANIPULAÇÃO MIDIÁTICA

Por Agência Adital

O linguista Noam Chomsky(*) elaborou a lista das "10 Estratégias de Manipulação" através da mídia.

1. A estratégia da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir que o público se interesse pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado; sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja com outros animais (citação do texto "Armas silenciosas para guerras tranquilas").

2. Criar problemas e depois oferecer soluções. Esse método também é denominado "problema-ração-solução". Cria-se um problema, uma "situação" previsa para causar certa reação no público a fim de que este seja o mandante das medidas que desejam sejam aceitas. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o demandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para forçar a aceitação, como um mal menor, do retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços púbicos.

3. A estratégia da gradualidade. Para fazer com que uma medida inaceitável passe a ser aceita basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos consecutivos. Dessa maneira, condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990. Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4. A estratégia de diferir. Outra maneira de forçar a aceitação de uma decisão impopular é a de apresentá-la como "dolorosa e desnecessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrificio imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Logo, porque o público, a massa tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isso dá mais tempo ao público para acostumar-se à ideia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5. Dirigir-se ao público como se fossem menores de idade. A maior parte da publicidade dirigida ao grande público utiliza discursos, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade mental, como se o espectador fosse uma pessoa menor de idade ou portador de distúrbios mentais. Quanto mais tentem enganar o espectador, mais tendem a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Ae alguém se dirige a uma pessoa como se ela tivesse 12 anos ou menos, em razão da sugestionabilidade, então, provavelmente, ela terá uma resposta ou ração também desprovida de um sentido crítico (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas")".

6. Utilizar o aspecto emocional mais do que a reflexão. Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional e, finalmente, ao sentido crítico dos indivíduos. Por outro lado, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de aceeso ao inconsciente para implantar ou enxertar ideias, desejos, medos e temores, compulsões ou induzir comportamentos...

7. Manter o público na ignorância e na mediocridade. Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais menos favorecidas deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que planeja entre as classes menos favorecidas e as classes mais favorecidas seja e permaneça impossível de alcançar (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas").

8. Estimular o público a ser complacente com a mediocridade. Levar o público a crer que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto.

9. Reforçar a autoculpabilidade. Fazer as pessoas acreditarem que são culpadas por sua própria desgraça, devido à pouca inteligência, por falta de capacidade ou de esforços. Assim, em vez de rebelar-se contra o sistema econômico, o indivíduo se autodesvalida e se culpa, o que gera um estado depressivo, cujo um dos efeitos é a inibição de sua ação. Sem ação, não há transformação.

10. Conhecer os indivíduos melhor do que eles mesmos se conhecem. No transcurso dosúltimos 50 anos, os avançosacelerados da ciência gerou uma brecha crescente entre os conhecimentos do público e os possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem disfrutado de um conhecimento e avançado do ser humano, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. O sistema conseguiu conhecer melhor o indivíduo comum do que ele a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior do que o dos indivíduos sobre si mesmos.

* Linguista, filósofo e ativista político estadunidense. Professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.