sexta-feira, 30 de julho de 2010

LIBERDADE


Não há confusão que resista à boa-fé intelectual, especialmente após a leitura de “Liberdade de Expressão X liberdade de Imprensa”, de Venício Lima (foto). O autor vai inclusive à origem política e filosófica da liberdade de expressão, jogando por terra a afirmação de que os autores geralmente invocados pelos grandes empresários de mídia do país – como John Stuart Mill e John Milton – referendariam a tese da “sanha regulatória” do Estado brasileiro neste início de século.


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quinta-feira, 29 de julho de 2010

PROVINCIANISMO


Por: Fernando Pessoa (1928)

Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.

O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.

Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do "Orpheu", disse a Mário de Sá-Carneiro: "V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si".

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergilio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a "Divina Comédia" superior à "Eneida". O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.

É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redações, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.

A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele "desenvolvimento da largueza de consciência" em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.

O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, "A Relíquia", Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.


"O Provincianismo Português" (1928), em Richard Zenith et. al. (orgs.), Obra Essencial de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, vol. 3, pp. 374-5

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A TERCEIRA DEPRESSÃO


Por: Paul Krugman

Receio que estejamos nos primeiros estágios de uma terceira depressão. A probabilidade é que ela seja mais parecida com a Longa Depressão do que com a Grande Depressão. Mas o custo - para a economia mundial e para milhões de vidas será ainda assim, imenso. E essa terceira depressão será resultado de um fracasso das políticas econômicas. Em todo o mundo - mais recentemente na desanimadora reunião do G-20 - os governos estão obcecados com a inflação, enquanto que a grande ameaça é a deflação, recomendando cortes de gastos, ao passo que o verdadeiro problema são os gastos inadequados.


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terça-feira, 27 de julho de 2010

NASCER NO CAIRO, SER FÊMEA DE CUPIM

Por: Rubem Braga


Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" — mas não o fiz para não entristecer o homem.

Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios - me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).

Alguém já me escreveu também que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua". Mas acho que isso é exagero.

Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da "Última Hora" ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de "O Globo?".

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!

Rio, novembro, 1951


Texto extraído do livro "Ai de Ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 197.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

YOANI SÁNCHEZ


Do Rebelión (tradução livre para o blog)

Yoani Sánchez é a nova personalidade da oposição cubana. Desde a criação de seu blog, Generación Y, em 2007, obteve inúmeros prêmios internacionais: o prêmio de Jornalismo Ortega y Gasset (2008), o prêmio Bitacoras.com (2008), o prêmio The Bob's (2008), o prêmio Maria Moors Cabot (2008) da prestigiada universidade norte-americana de Colúmbia. Do mesmo modo, a blogueira foi escolhida como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo pela revista Time(2008), em companhia de George W. Bush, Hu Jintao e Dalai Lama.

Seu blog foi incluído na lista dos 25 melhores do mundo do canal CNN e da Time(2008). Em 30 de novembro de 2008, o diário espanhol El País a incluiu na lista das 100 personalidades hispano-americanas mais influentes do ano. A revista Foreign Policy, por sua vez, a considerou um dos 10 intelectuais mais importantes do ano, enquanto a revista mexicana Gato Pardofez o mesmo para 2008.

Esta impressionante avalanche de distinções simultâneas suscitou numerosas interrogações, ainda mais considerando que Yoani Sánchez, segundo suas próprias confissões, é uma total desconhecida em seu próprio país. Como uma pessoa desconhecida por seus vizinhos - segundo a própria blogueira - pode integrar a lista das 100 personalidades mais influentes do ano?

Um diplomata ocidental próximo desta atípica opositora do governo de Havana havia lido uma série de artigos que escrevi sobre Yoani Sánchez e que eram relativamente críticos. Ele os mostrou à blogueira cubana, que quis reunir-se comigo para esclarecer alguns pontos abordados.

O encontro com a jovem dissidente de fama controvertida não ocorreu em algum apartamento escuro, com as janelas fechadas, ou em um lugar isolado e recluso para escapar aos ouvidos indiscretos da "polícia política". Ao contrário, aconteceu no saguão do Hotel Plaza, no centro de Havana Velha, em uma tarde inundada de sol. O local estava bem movimentado, com numerosos turistas estrangeiros que perambulavam pelo imenso salão do edifício majestoso que abriu suas portas no início do século XX.

Yoani Sánchez vive perto das embaixadas ocidentais. De fato, uma simples chamada de meu contato ao meio-dia permitiu que combinássemos o encontro para três horas depois. Às 15h, a blogueira apareceu sorridente, vestida com uma saia longa e uma camiseta azul. Também usava uma jaqueta esportiva, para amenizar o relativo frescor do inverno havanês.

Foram cerca de duas horas de conversa ao redor de uma mesa do bar do hotel, com a presença de seu marido, Reinaldo Escobar, que a acompanhou durante uns vinte minutos antes de sair para outro encontro. Yoani Sánchez mostrou-se extremamente cordial e afável e exibiu grande tranquilidade. Seu tom de voz era seguro e em nenhum momento ela pareceu incomodada. Acostumada aos meios ocidentais, domina relativamente bem a arte da comunicação.

Esta blogueira, personagem de aparência frágil, inteligente e sagaz, tem consciência de que, embora lhe seja difícil admitir, sua midiatização no Ocidente não é uma causalidade, mas se deve ao fato de ela preconizar a reinstauração do capitalismo em Cuba.


Continua aqui (em espanhol).

quinta-feira, 22 de julho de 2010

PRESERVAÇÃO x DESENVOLVIMENTO

Da Revista Sem Terra

Nas comemorações da Semana Nacional do Meio Ambiente, de 31 de maio a 9 de junho, ganharam maior ênfase os debates sobre a necessidade de ocupação ordenada e medidas mais concretas de proteção ambiental para desenvolvimento da região amazônica - o "tendão de Aquiles" dos governos há muitas décadas.

Maior ainda o desafio quando se trata de garantir para essa região um modelo de desenvolvimento cuja definição nem sempre corresponde aos interesses das partes envolvidas. Há tensão entre preservacionistas e desenvolvimentistas. Não por acaso o lema da Semana Nacional do Meio Ambiente foi "Meio Ambiente e Desenvolvimento: Dá pra casar".

O que está em questão é a opção por um desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras gerações. Um modelo que não esgote os recursos naturais para gerações futuras, como definiu a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pela ONU para discutir e propor meios de harmonizar dois objetivos: o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental.

Entre os biomas brasileiros, a Amazônia é o que detém o maior número de áreas de proteção integral e o maior percentual de florestas oficialmente protegidas (3,2% da área total do bioma). No entanto, como mostra estudo da ONG WWF, apenas 0,38% da área dos parques e reservas hoje existentes na Amazônia está minimamente protegida de fato, pois eles não foram implementados ou encontram-se muito próximos a cidades. O Brasil é um dos signatários da Convenção da Diversidade Biológica, assinada por 162 países, em 1993, instrumento legal para assegurar a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais. O governo avisa que irá nesta direção.

Política do governo

A estratégia governamental começa finalmente a tomar corpo, a partir do Programa Amazônia Sustentável (PAS), em fase final de elaboração - um trabalho que envolve 13 ministérios, ONGs e governos estaduais - sob a responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Ministério da Integração Nacional.

A realidade mostra que a presença de atividade econômica na região amazônica é inevitável, mas deve se dar organizadamente, cabendo ao governo criar infra-estrutura local, garantir a fiscalização e fazer cumprir a legislação ambiental. A dinâmica de exploração econômica das riquezas da região concentra-se na faixa ao longo da Transamazônica (sentido leste-oeste) e na rodovia BR 163 - Cuiabá-Santarém. Ali, 75% da terra pertence à União. "Portanto, é preciso separar o joio do trigo, ou seja, implantar o Ordenamento Fundiário, sem o qual nada pode melhorar na região", avalia Jörg Zimmermann, que responde pela Secretaria de Coordenação da Amazônia, do MMA.

A etapa de pavimentação e implantação do trecho final da rodovia BR-163 contará com medidas de proteção ambiental, definição das unidades de conservação e áreas de ocupação agrícola. "Será um contraponto ao que ocorreu com a Transamazônica, um desastre em termos ambientais e sociais", assinala Zimmermann. "Vamos evitar a dinâmica perversa da ocupação desordenada, com ordenamento territorial e, no caso dos assentamentos, estudos para exploração da área de acordo com a vocação de cada área".

Implementar iniciativas para integrar a região ao restante do país significa também a modernização das práticas produtivas e seleção de áreas prioritárias para conservação da biodiversidade, atividades previstas no PAS. Estão implantadas mais de 50 unidades de conservação de proteção integral - que correspondem a cerca de 4,12% do bioma.

Em comparação com os demais biomas brasileiros, a Amazônia é o que detém o maior número de áreas de proteção integral (26) e também o maior percentual de florestas oficialmente protegidas (3,2% da área total do bioma). Calcula-se que as unidades de conservação de desenvolvimento sustentável ocupam área correspondente a menos de 10%.

Dificuldades

Mas a lista de obstáculos é longa, a começar pelo desconhecimento científico sobre a maior parte da biodiversidade, o que agrava a questão de definir e demarcar áreas destinadas à conservação. Os ainda parcos conhecimentos sobre flora, fauna e processos ecológicos na região tornam o processo de escolha muito mais difícil. Somem-se a isso questões como expansão da fronteira agrícola, expansão urbana e industrial, biopirataria, desmatamento, grilagem de terras, poluição de recursos hídricos, populações vivendo abaixo da linha da pobreza. Sem esquecer as divergências quanto ao impacto provocado pelas grandes hidrelétricas. Todos estes componentes evidenciam a necessidade urgente de uma estratégia governamental para a região. É neste quadro complicado que o governo pretende atuar.

A Revista Sem Terra buscou opiniões de três especialistas paraenses e de um representante da ONG Instituto Sócio-Ambiental (ISA), que apontam erros e acertos até agora e levantam questões relevantes para o desenvolvimento amazônico.

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Márcio Santilli, ex-presidente da Funai, é membro do Conselho Diretor do Instituto Sócio-Ambiental (ISA):

- Há diferentes forças e interesses representados no governo, que pressionam pela expansão da fronteira agrícola.

Como analisa o tema de exploração econômica com preservação?

Márcio Santilli - Historicamente a Amazônia foi tida como uma espécie de "fundo de quintal" dos países que exercem soberania sobre a região - uma reserva de saque dos recursos naturais, quase sempre em função de atividades, modelos e interesses organizados de fora prá dentro dela. Assim, quando se desmata para garimpar, implantar pastagens ou culturas de fora, perdem-se riquezas desconhecidas e inexploradas em função de um negócio já mais consolidado. O conhecimento sobre a floresta e os demais recursos naturais da região deveria ser o carro-chefe de uma estratégia de desenvolvimento da região. O uso sustentável da biodiversidade pode viabilizar recursos mais significativos, a longo prazo, que a venda de commodities e de produtos primários do extrativismo.

Em sua opinião os planos do governo para a região estão no rumo certo desta harmonização entre progresso/ocupação/conservação da floresta?

MS - Há conflitos não resolvidos na sociedade entre diferentes visões sobre o desenvolvimento da Amazônia, que também se projetam sobre a estrutura e as políticas do governo. O Ministério do Meio Ambiente busca a transversalidade no tratamento das questões ambientais e amazônicas, de modo que o conjunto dos ministérios assuma a perspectiva do desenvolvimento sustentável, o que é correto. Mas há diferentes forças e interesses representados no governo, que pressionam pela expansão da fronteira agrícola ou defendem o crescimento econômico a qualquer custo. As obras de infra-estrutura que constam do PPA, por exemplo, projetam um novo fluxo de ocupação com impactos para a floresta e para as populações tradicionais, que, se tivessem a mesma força política, provavelmente demandariam por outras prioridades de investimento.

Qual seria o maior entrave entre estas duas correntes?

MS - A questão é o modelo de desenvolvimento que se quer. A crise ambiental atual, com a temperatura do mundo crescendo e provocando mudanças climáticas, resulta de um sistema produtivo insustentável, baseado no carvão, no petróleo e na alteração da cobertura vegetal, e em níveis elevadíssimos de consumo para uma minoria da população mundial. Já vivemos no Brasil modelos de crescimento econômico que geraram riquezas para alguns e deixaram miséria e passivos ambientais imensos para o conjunto da sociedade, como foi a ocupação da Amazônia durante a ditadura militar. Mas o Brasil ainda tem chance de se desenvolver sem repetir os erros dos outros e os do nosso passado, valorizando seu patrimônio de diversidade cultural e ambiental. O socioambientalismo não é o preservacionismo dos países ricos, mas uma proposta que junta os interesses sociais com o uso sustentável dos recursos naturais, apropriada aos países que precisam desenvolver-se, como o Brasil. Mas se opõe aos que exploram o desespero dos miseráveis e dos desempregados, com promessas de desenvolvimento a qualquer preço, o que acaba produzindo ainda mais miséria depois.

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Aluízio Leal, professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA):

- A pressão para a construção de mega-hidroelétricas está cada vez maior, e as enormes jazidas minerais da região serão objeto de assalto pelo capital internacional.


É possível afastar o destino colonial imposto à Amazônia?


Aluízio Leal - Não neste modelo econômico e político. Esse destino sempre foi a base da ocupação e da exploração da região. A colonização é um processo histórico que sempre refletiu as relações entre sociedades diferentes, quando a mais desenvolvida sob o ponto de vista técnico é construída sobre a desigualdade social. É inevitável que a mais "desenvolvida" tenda a impor à outra essa desigualdade, sob a forma de exploração colonial. Isso se agrava quando a menos "desenvolvida" possui ou força de trabalho capaz de ser explorada ou riquezas naturais capazes de serem rapinadas. Essas duas coisas têm o poder de provocar, do modo mais terrível, a ambição e a cobiça do colonizador. É por isso que a Amazônia sempre foi mantida, no contexto brasileiro, como uma colônia interna. Na ditadura militar se iniciou esse novo "ciclo" e se intensificaram as novas medidas para manter a Amazônia nas condições de "neocolônia interna", excluindo-a das decisões mais estratégicas a respeito de si mesma e deixando sua administração política nas mãos da oligarquia local, afinada com esse modelo. Enquanto estiver presa ao mercado mundial capitalista, jamais sairá da sua condição de região saqueada e de sociedade cuja população deverá continuar mantida sob condições sociais de miséria que o capitalismo produz.

Como avalia os 20 anos do pólo de alumínio implantado na década de 80 com os benefícios do programa Grande Carajás?

AL - Consolidou-se integralmente. A implantação da Alunorte, destinada a produzir pasta de alumínio para a Albras fabricar alumínio primário, havia sido impedida pela Alcoa, ainda na década de 80, numa briga de multinacionais que ameaçou colocar no mercado alumínio mais barato, produzido na Alumar, de São Luís do Maranhão, caso os japoneses pretendessem manter a construção da Alunorte. A expansão do mercado mundial possibilitou o entendimento entre essas multinacionais, com a Amazônia assumindo o prejuízo da briga, garantindo-se à Albras energia mais barata do que o custo da sua produção na hidroelétrica do Tucurui (lá, custa aproximadamente 24 dólares para produzir um megawatt que a Eletronorte vende para a Albras por apenas 15 dólares, o que dá um prejuízo de aproximadamente 37,5% sobre o custo de produção). Isso significa uma receita de aproximadamente 50 milhões de dólares/ano de energia que o complexo Albras/Alunorte deixa de pagar à Eletronorte e que, obviamente, acaba sobrando para o povo, na outra ponta da corda. O pólo de alumínio foi entregue integralmente ao capital internacional com a privatização da Vale do Rio Doce. E está em vias de ser ampliado, pelas políticas de globalização e de privatização do setor elétrico.

A Amazônia sofrerá conseqüências dos últimos acontecimentos internacionais, sobretudo nos EUA?

AL - Não há dúvida de que, com o agravamento da crise mundial capitalista, as regiões ricas em natureza deverão sofrer um assalto crescente do capital. Atualmente, as políticas de ocupação e exploração da Amazônia são de devastação. A pressão para a construção de mega-hidroelétricas está cada vez maior e as enormes jazidas minerais da região serão objeto de assalto pelo capital internacional à medida que a crise for se agravando. Some-se a isso um fato: de toda essa imensa produção de riqueza à base da rapina, só fica na Amazônia a parte raquítica dos colaboradores regionais: ou a oligarquia tradicional local, que sempre foi entreguista e incompetente, do ponto de vista capitalista, ou o empresariado aventureiro que veio de fora para fazer lucro à custa da devastação.

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Lúcio Flávio Pinto, sociólogo, jornalista, autor de diversos livros sobre questões amazônicas:

- Sem a ciência na vanguarda de qualquer ação na região, pública ou privada, a Amazônia não terá futuro digno.


Por que a Amazônia tem dificuldade de se desenvolver?

Lúcio Flávio - Porque o efeito multiplicador dos investimentos vai ocorrer além dos seus limites. A Amazônia foi "especializada" em matéria-prima e insumos, os semimanufaturados, que os exportadores vendem no exterior sem pagar imposto e ainda com direito a restituição. Seus produtos de exportação começam com a energia bruta, da qual é a terceira maior exportadora do Brasil. Uma empresa que se instala no Maranhão, estado vizinho do Pará, onde está a hidroelétrica de Tucuruí, a maior inteiramente nacional (responsável por 8% da energia brasileira), não paga ICMS. Já a empresa paraense paga. E o cidadão paraense paga uma das tarifas mais altas do país, sendo que um terço dos paraenses não tem energia elétrica. Mas a Albras, empresa nipo-brasileira que produz alumínio e é a maior do Brasil (a segunda do continente e a sexta do mundo), paga uma tarifa três vezes menor. A energia que lhe é fornecida, de Tucuruí, é três vezes mais barata. O subsídio que proporcionou essa tarifa, somado, equivale ao investimento da fábrica, de 1,6 bilhão de dólares. É como se a Eletronorte lhe tivesse devolvido uma fábrica de graça no período do contrato, de 20 anos. E quando o lingote de alumínio chega ao Japão, o maior comprador (a Albras lhe assegura 15% de todo o alumínio de que precisa), o valor acrescentado ao produto na transformação industrial o eleva em quatro vezes. Por isso a Amazônia cresce como rabo de cavalo: para baixo.

A que se deve essa anomalia?

LF - À deterioração dos preços dos produtos amazônicos, preferencialmente destinados à exportação para gerar divisas. Quando o primeiro trem de minério de ferro saiu de Carajás, a maior província mineral do planeta, cada tonelada valia 25 dólares. Hoje o preço é comercializado em pouco mais de 13 dólares. Na época diziam que se devia exportar mesmo assim, porque logo diminuiria ou cessaria de vez o consumo desses minérios pela "nova onda" dos novos materiais. Pois bem: o projeto básico de Carajás se viabilizava com 20 milhões de toneladas de minério de ferro. No ano passado a mina produziu 54 milhões de toneladas. Neste ano, chegará a 70 milhões e, em 2007, a 85 milhões. Para compensar a perda de valor relativo, exportam-se volumes físicos cada vez maiores do produto. Isso gera uma grandeza física, mas não uma grandeza qualitativa. Daí as relações de troca desfavoráveis à região, que vende muito, mas barato, e tem que produzir cada vez mais para crescer quantitativamente. Não há, porém, efeito multiplicador do investimento.

Qual seria a saída?

LF - Investir maciçamente em ciência, tecnologia e conhecimento aplicado, não só formando quadros competentes dentro da região, com infra-estrutura adequada, mas atraindo pessoal de linha de frente do exterior para partilhar seus conhecimentos e fazer a máquina do saber avançar além das frentes econômicas, orientando-as e cerceando-lhes a expansão quando se tornam irracionais e destrutivas. Infelizmente, nunca a verba de C & T da região sequer traduziu sua grandeza democrática. Tem ficado abaixo de 1%, quando a população da Amazônia é, pelo critério menos favorável (o da Amazônia Clássica), de 7% da população nacional. Sem a ciência na vanguarda de qualquer ação na região, pública ou privada, a região não terá futuro digno. Só sabendo mais do que ninguém sobre a Amazônia e tendo uma estrutura institucional respeitável, estaremos em condições de separar o joio do trigo. Precisamos disso porque sem o intercâmbio científico e tecnológico a região estará sempre atrasada em relação à sua história, incapaz de responder aos desafios nos momentos em que eles se apresentam de forma prática.

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Maurílio Monteiro, professor e pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará:

"É necessário e possível implementar uma estratégia de desenvolvimento fundamentada em vantagens competitivas socialmente criadas."



É possível combinar desenvolvimento econômico e sustentabilidade na Amazônia?


Maurílio Monteiro - As estratégias de desenvolvimento na Amazônia foram associadas, na segunda metade do século passado, à visão de que era necessário criar estruturas e espaços (pecuária de corte, grandes empresas e fazendas nas quais se pratica monocultura homogêneos e gigantescas empresas mineradoras) como vetores capazes de impulsionar o desenvolvimento regional. As lógicas que presidiram os "grandes" projetos na região, na década de 80, eram pautadas pela crença de que os agentes locais não têm condições de atuar como força propulsora do desenvolvimento regional; pelo descolamento social das instâncias envolvidas; pela convicção na superioridade e na maior eficiência das grandes estruturas produtivas; e pela rejeição aos sistemas produtivos que operam em pequena escala, dentre eles os camponeses, apontados como tradicionais, de baixa rentabilidade e ambientalmente imprudentes. Isso fez com que o Estado estimulasse a concentração de capitais para intervenções na região, o que enseja concentração de renda, pois deram-se por meio do uso insustentável de sua base natural; da ampliação das mazelas sociais; da concentração de riquezas e de poder econômico. Recorreu-se ao uso da base natural da região para o atendimento de necessidades presentes de alguns segmentos da sociedade. Os usos mais qualificados das especificidades naturais da região foram quase sempre negados ou postergados. A exploração dos estoques minerais, madeireiros, de terra, pesqueiros, entre outros, esteve na base dos projetos de desenvolvimento regional, mas de forma desvinculada das necessidades cotidianas da maioria da população. O modelo dominante portanto, funda-se na exploração do que podemos chamar de "vantagens comparativas" derivadas do baixo custo do uso dos recursos naturais da região. A mercantilização destes recursos, como no caso dos minérios, implicou a adoção de procedimentos industriais padronizados em termos globais, como a lavra da bauxita, sua transformação em alumina e posteriormente em alumínio primário; a lavra do minério de ferro, a pelotização deste minério, a produção de ferro gusa e, no futuro próximo, do aço. A fragilidade desta estratégia se expressa tanto em termos temporais quanto espaciais.

As "vantagens comparativas" limitam-se ao presente, não podem sustentar um desenvolvimento continuado, nem impulsionar dinâmicas de modernização amplas e socialmente enraizadas. Nestes termos, o equacionamento da questão do desenvolvimento econômico e de sua relação com sustentabilidade na Amazônia implica implementar um modelo de desenvolvimento que levado a cabo destrói a base natural. É necessário e possível implementar uma estratégia de desenvolvimento fundamentada em "vantagens competitivas socialmente criadas" e integradas ao uso sustentável da base natural da região, superando a visão preconceituosa sobre a capacidade de inúmeros agentes locais, dentre eles os camponeses.

As ações propostas pelo governo federal contemplam as expectativas da região?

MM - A análise das propostas do atual governo para a Amazônia vincula-se em grande medida à estratégia geral expressa no Plano Plurianual 2004-2007 - que tem como ponto de referência a visão de que o desenvolvimento econômico do país está bloqueado pelas restrições que produzem vulnerabilidade externa e interna. A primeira delas, vinculada à baixa capacidade de geração de divisas na balança comercial e de atração de capitais produtivos, que torna o Brasil altamente dependente de capitais para fechar suas contas com o resto do mundo. Mas o PPA indica que a principal restrição está associada à má distribuição da renda. Em linhas bastante gerais, é possível dizer que o governo preconiza uma estratégia de desenvolvimento que prevê, primeiro, reduzir a taxa de juros e com isto elevar a capacidade de investimento das empresas e do governo e, segundo, dotar as famílias de capacidade de consumo sustentável, bem como manter o governo com capacidade de investimento. O grande problema é que tais posicionamentos têm desdobramentos muito concretos sobre os processos de desenvolvimento em curso na Amazônia, pois tais prioridades convergem com a ação de agentes econômicos que se valem das "vantagens comparativas" derivadas do baixo custo do uso dos recursos naturais da região. Estas lógicas se distanciam da possibilidade de estabelecer redes de relações sociais, econômicas, políticas e ambientais que sejam impulsionadoras do desenvolvimento regional baseado na construção de arranjos produtivos locais. Certamente os estrategistas do governo poderiam indicar que se trata de um primeiro momento no qual as forças sociais, que operam com uma visão de desenvolvimento apegada a noção das "vantagens comparativas" atribuídas ao uso da base natural da região, teriam papel importante no curto prazo, mas em termos estratégicos cumpririam o papel de apoiar o projeto nacional em curso. E num segundo momento conteria outro foco, voltado à implementação de processos de desenvolvimento fundamentados no estabelecimento de "vantagens competitivas socialmente criadas" e integradas ao uso sustentável da base natural da região. Trata-se de uma possibilidade.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

MATEMÁTICA

De Documentos do processo


De Documentos do processo


Em decisão convenientemente omitida pelos meios de comunicação locais, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) proibiu a participação da empresa E.A.Carvalho (leia-se: Jornal A Tribuna, de Eli Assem de Carvalho) em licitações públicas por 5 anos.

A penalidade começou a valer em 10 de maio de 2010, quando foi publicada na página 165, seção 3, do Diário Oficial da União (DOU).

Quer saber por que a E.A.Carvalho não poderá ganhar dinheiro honestamente do erário até maio de 2015?

É que o Código Eleitoral limita as doações feitas por empresas a 2% do seu faturamento bruto anual. Nas eleições de 2006, Eli Assem doou para alguns comitês políticos um valor suficiente para gerar uma multa de R$ 97,9 mil.

A decisão do DOU não diz quanto foi a doação, nem nomeia os comitês que receberam tamanha bondade...

Mesmo assim, faça as contas - e não precisa ficar com peninha do empresário perseguido pelo Estado opressor. Tem ainda a Gráfica Nova Geração, que funciona no mesmo endereço do jornal, compartilha com ele alguns funcionários, mas possui outra razão social. Logo, Assem pode continuar participando de licitações públicas. Com outro CNPJ, claro.

Clique aqui para ver (em pdf) uma decisão em que o Ministério Público do Trabalho (MPT) da 14ª Região acusa e o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) acata o argumento de que A Tribuna e a Gráfica Nova Geração integram um só grupo econômico (o que eles negam, veementemente). A decisão é de maio do ano passado.

Acima, detalhes de como são feitos os repasses da Companhia de Selva para A Tribuna por meio da C.J.A.Chagas (Gráfica Nova Geração), segundo uma inspeção surpresa da Delegacia do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Clique para ampliar.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

POLÍCIA!

O Altino Machado publicou em seu seu blog o necessário contraponto sobre o caso do assassinato de Ana Eunice Moreira Lima. Agora, sabe-se que Gleisson da Silva Andriola, o assassino, não é portador de psicopatias. Passou inclusive por avaliações psicológicas no período em que foi submetido aos testes para a progressão de regime.

E agora?

Vamos mudar o Código Penal para aumentar os tempos de pena, reduzir a idade penal? Vamos deixar os presidiários o mais tempo possível nas celas para ao sair - porque um dia sairão - formar gangues especializadas e altamente treinadas?

Ou vamos aprovar a prisão perpétua numa realidade prisional como a nossa, em que fugas são constantes e a corrupção policial generalizada (e também fator de equilíbrio em muitas prisões)?

Podemos ainda aprovar a pena de morte e despachar logo esses miseráveis para o inferno, pois eles não merecem viver. Em nome da lei e da ordem vamos cometer o mesmo crime dos assassinos: assassiná-los. Se nos Estados Unidos pode, por que não aqui?

Vale lembrar que o combate à pena de morte é uma das prioridades da Organização das Nações Unidas (ONU) desde o pós-guerra. Hoje há quatro tratados internacionais para a abolição dessa prática. O Brasil é signatário do principal deles: a Convenção Americana dos Direitos Humanos, assinada em 1990.

É preciso parar de sonhar com os Estados Unidos. Lá, os Estados que a adotam têm quase o dobro das taxas de homicídio dos demais. A violência no Umbigo do Mundo é guetada: bairros inteiros são tomados por gangues de traficantes e presidiários fugitivos (ou ambos) e viram verdadeiras fortalezas do crime.

Soluções autoritárias para enfrentar a escalada do crime são perfeitamente coerentes com a nossa trajetória histórica. Em um artigo anterior, descrevi os efeitos da falta de uma tradição democrático-representativa em nossa cultura política. Hoje, graças a este crime, é possível perceber como elas se manifestam socialmente: entre nós, tudo, absolutamente tudo, gira em torno do poder. Até os discursos são mais ou menos legítimos de acordo com o poder de quem discursa, e não pela lógica do discurso. Logo, discursos legítimos são os pronunciados por cidadãos investidos do poder. Discursos incorretos, hostilizados e geralmente convidados ao silêncio, são os pronunciados por agentes sem poder.

Vide: por que Hildebrando Pascoal não foi chamado de louco? Assassino cruel, homem da motosserra, homicida, matador, mandante, tudo isso consta nos jornais, nas conversas de esquinas, nos comentários dos jornais. Louco, não.

Bruno, o goleiro do Flamengo, acusado de matar e esquartejar a namorada, dando partes de seu corpo aos cães, não poderia ser psicopata? Poderia, claro. Mas ninguém pensou nisso. Nem os jornais, nem as polícias, nem os "psicólogos" de plantão.

Antonio Manoel, condenado por estupro, não é louco, é poeta. Darli Alves, condenado por assassinato, não é louco, é fazendeiro. Carlos Airton, que cometeu o mesmo crime que Gleisson Andriola, mas contra a própria mulher, e em seguida se matou, não era louco. Era um homem deprimido.

Exige-se mais polícia nas ruas, esquecendo-se que o máximo que esse policiamento ostensivo conseguirá é levar mais gente à cadeia. Esta reivindicação é por si mesma curiosa, se lembrarmos o relatório do Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que veio ao Acre no começo do mês passado: 50% dos presos acreanos são provisórios.

Com mais policiamento ostensivo, os bancos, lojas, supermercados, jornais, restaurantes e os órgãos do próprio poder público estarão mais resguardados contra os miseráveis que assaltam, muitas vezes para pagar dívidas com o tráfico de drogas, no centro da cidade. Ou matam, mas por prazer, diversão ou honra - caso de Gleisson.

O restante das cidades, os bairros onde a polícia já não entra hoje a não ser para resgatar ossadas ou dar segurança em processos de reintegração de posse, seguirá a mesma regra? Se não, a chamada segurança pública guarda sensíveis semelhanças com as operações tapa-buracos no centro da cidade. Se sim... bem, aí o crime vai se reinventar, os antigos criminosos darão lugar a seus aprendizes, irão para a cadeia, aperfeiçoarão suas táticas e operações e retornarão ao lar após o cumprimento da pena - se não fugirem. E assim per secula seculorum.

Há uma terceira opção: o Estado investir em educação, mas um tipo de educação que ensine aos indivíduos os imperativos da ética como um acordo para possibilitar a convivência social, ao invés da antiética que trata seres humanos como coisas, isto é, como meios para atingir determinados objetivos. Esta bizarra acepção é o que está por trás dos crimes, da corrupção, da legitimação dos discursos segundo o poder e da educação para o mercado - isto é, educação para o consumo e descarte de coisas.

Mas para que uma transformação da vida social desse porte tenha efetividade, a vida real do cidadão, aquilo que ele vê em casa, precisa ser coerente com o aprendizado escolar. Caso contrário, o Estado poderá ser acusado de conspirar para o esclarecimento dos cidadãos ao tornar mais nítidos os limites da contradição entre teoria e prática, levando os indivíduos, conscientes dos seus direitos por meio da educação, a propor a subversão da política.

E este é um risco que não queremos ter. Certo?

segunda-feira, 12 de julho de 2010

VIOLÊNCIA

Um fenômeno político está invadindo o comportamento do brasileiro sem que a maioria perceba. É a normalização da violência.

Como a sociedade define seus cidadãos pelo critério da utilidade, o comportamento violento tende a tornar-se regra, em vez de exceção. É o inverso da ética: se pessoas valem pela sua capacidade de uso, tornam-se então descartáveis.

Neste domingo, em Rio Branco, o assassinato de Ana Eunice Moreira Lima evidenciou mais uma vez este fenômeno. Convido o leitor a conferir não a matéria em si, mas os comentários dos internautas logo abaixo das matérias jornalísticas sobre o – horrendo – assassinato, aqui, aqui e aqui.

A maioria dos comentários traz uma reivindicação em comum: assassinar o assassino, com as mais diversas justificativas.

Pergunto: não é precisamente este o comportamento assassino? Se a atitude ética é considerar todo indivíduo humano um ser integral, portador de potencialidades e capacidades ilimitadas, a atitude violenta é justamente aquela que viola este homem ao considerá-lo uma coisa. Algo que precisa ser eliminado ao "funcionar mal".

Foi por isso que o assassinato ocorreu. Para o assassino a vítima era menos que nada, era um objeto, deu o azar de estar no lugar errado e na hora errada. E só.

Reivindicar a eliminação do que nos contraria demonstra pouca capacidade de lidar com frustrações. Esse fenômeno está criando uma sociedade não só imediatista e intolerante, mas também tendencialmente fascista, pela absoluta incapacidade de lidar com a contrariedade - daí a necessidade de eliminar tudo aquilo que "dá errado", mesmo que sejam pessoas, não objetos.

Estou convencido que a origem dessa prática é a proliferação de discursos triunfalistas, disseminados na forma de “afirmação da vitória”, da “determinação”, do “poder da vontade” no corpo social.

A pretexto da afirmação da autonomia individual, esses discursos cegam a sociedade para as suas próprias contradições, imunizam as pessoas contra o potencial de sublimação existente no sofrimento, jogam uns indivíduos contra os outros e criam uma sociedade legalista, excludente.

Se quisermos ser uma sociedade livre, precisamos antes de tudo resolver o problema da violência. Mas não se pode resolver o problema da violência, sem a entender como o resultado direto da impossibilidade de realização da ética. Numa sociedade marcada por contradições reais, a ética é um belo discurso e geralmente uma ótima desculpa para diversas atrocidades, desde o assassinato de marginais - no sentido estrito desse termo - a golpes de Estado.

À família do meu colega de profissão Tião Maia, bem como a todos os cônjuges, mães, pais, irmãos, primos e amigos que têm ceifadas as vidas de seus entes mais próximos, minhas sinceras condolências.

Às famílias e amigos de desajustados sociais, que insurgem-se contra a ética numa sociedade de privilégios, castas e desiguais, minhas sinceras condolências.


Mais sobre o assunto aqui.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

OS QUERIDINHOS DO BRASIL

Por: Agência Carta Maior

Nenhum dos dois grevistas (Orlando Zapata Tamayo, que faleceu em 23 de fevereiro, e Guillermo Fariñas Hernández, que estava em estado crítico em um hospital cubano no final da segunda semana de março) foi condenado por atividades políticas, mas por delitos como furto, invasão de domicílio e agressões físicas, conforme registros judiciais cubanos. Os presos por atividades políticas, cuja libertação é reivindicada por Fariñas - e que agora o governo cubano atendeu - são os remanescentes do processo de 2003, quando 75 opositores foram condenados por receberem dinheiro do Escritório de Representação dos Estados Unidos em Havana para participar de atividades contra o governo revolucionário (e não, como diz a campanha-padrão contra Cuba, por se oporem ao regime).

O julgamento dos 75 foi realizado em tribunais regulares, em sessões públicas, com base em leis pré-existentes e assegurado o pleno direito de defesa e de apelação. O governo cubano divulgou, na ocasião, provas documentais sobre a relação que os acusados mantinham com representantes do governo estadunidense. É uma relação passível de incriminação penal em qualquer país do mundo. Em todo caso, cerca de 20 deles foram, desde então, libertados pelo governo por problema de saúde, obedecendo às 95 regras de tratamento carcerário humanitário, estabelecidas pela ONU.

De acordo com a ficha corrida de Guillermo Fariñas Hernández, em 1995 ele espancou uma mulher na instituição de saúde onde trabalhava como psicólogo, causando-lhe ferimentos múltiplos no rosto e nos braços. Sofreu pena de três anos de prisão sem internamento (por sua primariedade), além de multa de 600 pesos. Em 2002, atacou um ancião com um bastão na cidade de Santa Clara, onde reside. A vítima teve de ser operada para extirpação do baço e o agressor foi condenado a 5 anos e 10 meses de prisão (Causa 569/2002, do Tribunal Popular Provincial de Villa Clara). Por essa época, ele começou a utilizar o recurso da greve de fome para obter vantagens, como televisor em sua cela, tendo dessa forma atraído a atenção dos grupos contrarrevolucionários, aos quais aderiu em seguida. Em dezembro de 2003, devido à sua saúde fragilizada pela sucessão de greves, recebeu uma licença extra-penal com base no código cubano. Fora da cadeia, passou a colaborar com a Rádio Martí e a receber dinheiro regularmente da já mencionada representação dos EUA em Havana. Em 2006, voltou a se declarar em greve de fome, para reivindicar acesso domiciliar à internet.

Na atual greve, Fariñas Hernández recusou toda oferta oficial para tratamento de sua saúde, obstinando-se em dizer que irá até o fim. Da mesma forma, rejeitou oferta de asilo na Espanha, feita com a anuência de Havana. Por isso, a intervenção médica cubana só pôde acontecer quando o manifestante entrou em estado de choque, na noite de quinta-feira, 11 de março, em estado gravíssimo, como no caso de Orlando Zapata Tamayo, que viria a falecer. Eis o que divulgaram as agências France Press, Efe e Reuters sobre esse momento, conforme publicado no Estado de S. Paulo : “Momentos antes de Fariñas desmaiar, um grupo de médicos do sistema de saúde pública de Cuba visitou o dissidente e pediu que ele concordasse em ir, de ambulância, até uma clínica para que fizesse um check-up profissional. O opositor, porém, agradeceu ‘o profissionalismo e a humanidade’ dos médicos, mas insistiu em fazer os exames em sua casa. Os médicos aceitaram as condições e coletaram amostras no local, mas saíram antes de Fariñas desmaiar”.

Orlando Zapata Tamayo também jamais havia sido seguidamente condenado por atividade política, embora esteja sendo apresentado agora como mártir da luta pela liberdade. Ele só começou a adotar um “perfil político” quando percebeu que, na situação particularíssima de Cuba, isso poderia ser vantajoso por causa do farto dinheiro distribuído pelos Estados Unidos aos que se declaram dissidentes no país. Antes havia cumprido pena por “violação de domicílio” (1993), “furto e agressão com arma branca” (2000) e “perturbação da ordem pública” (2002). Em 2003, chegou a ser solto, mas voltou à cadeia por reincidência. Por isso, não figurou na relação de “prisioneiros políticos” elaborada em 2003 pela antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, com a intenção de condenar Cuba por violação aos direitos humanos.

Aquela mesma boa alma curiosa poderia igualmente notar, na campanha em curso, que apesar da insistência na denúncia de que os “presos de consciência” cubanos foram encarcerados simplesmente por serem contra o governo, o noticiário correspondente é abundante em declarações de opositores que vivem em Cuba, como Manuel Cuesta Morúa, René Gómez Manzano, Elizárdo Sánchez, Osvaldo Payá Sardinãs e outros. Eles são contra o governo, dão entrevistas para a imprensa internacional recheadas de críticas, mas não estão presos! Há algo errado nessa denúncia, portanto. O próprio Fariñas, aliás, estava em casa antes de ser internado e lá recebia diariamente jornalistas estrangeiros.

Sobre o suposto caráter ditatorial do regime vigente em Cuba, é interessante ainda comparar o que diz o relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2008”, da Anistia Internacional (entidade nada amistosa com o governo cubano), sobre a situação naquele país, nos Estados Unidos e na Europa. O documento acusa o governo cubano de restringir as liberdades de expressão, de associação e de circulação, fala nos “presos de consciência” remanescentes do grupo dos 75 e registra incidentes em que teria havido “fustigamento e intimidação” de dissidentes. Mas não menciona um só caso de sequestro ou desaparecimento de opositores, nem tortura ou morte de prisioneiros em dependências carcerárias. Da mesma forma, não fala em repressão policial, nem em execução extrajudicial em Cuba.

Esse mesmo documento da Anistia Internacional, em contrapartida, denuncia os EUA por prática sistemática da tortura conhecida como waterboarding (simulação de asfixia), detenções e interrogatórios secretos e desaparecimento de suspeitos. Acusa ainda Washington de manter milhares de detidos, muitos “há mais de seis anos”, em Guantánamo, em Bagram e no Iraque, sem acusação nem julgamento. Sobre os governos europeus, o relatório da Anistia declara: “Em 2007 surgiram novas evidências de que diversos Estados-membros da União Europeia foram coniventes com a CIA no sequestro, na detenção secreta e na transferência ilegal de prisioneiros para países em que foram torturados ou sofreram maus tratos”.

Ora, a atual campanha contra o governo cubano se origina de forças políticas que admiram as democracias vigentes na União Europeia e nos Estados Unidos, considerando-as modelos a serem copiados por todo o mundo (inclusive Cuba). Deveriam, portanto, preocupar-se também com o estado dessa própria democracia e dos direitos humanos nesses países, em vez de gastarem todo o gás em sua fúria contra Cuba. Que tal uma campanhazinha para combater a pouca vergonha denunciada pela Anistia Internacional nos EUA e na União Europeia?

quarta-feira, 7 de julho de 2010

LÍNGUA E SOCIEDADE


Por:
Luísa Lessa, n'A Gazeta de hoje.


As pessoas ficam, sempre, a se perguntar por que uma língua não permanece estável no curso da vida? Uma língua muda porque é falada segundo os costumes, a cultura, as tradições, modernização tecnológica e o modo de viver da população. Depois, há para considerar, o fator tempo que altera todas as coisas. Assim, não existe razão para que a língua escape a essa lei universal. A língua, igualmente as pessoas, quer palpitar, crescer, tornar-se flexível e colorida, enfim, viver.

A mudança que se observa numa dada língua, no decorrer do tempo, tem paralelo na mudança dos conceitos de vida, na mudança das artes, da filosofia, da ciência e até da própria natureza. Essa evolução temporal, mudança diacrônica ou história, é um dos aspectos mais evidentes da variação ou mudança que se processa em toda e qualquer língua. Antigamente, no Brasil, se falava cutex ao invés de esmalte, petisqueira no lugar de armário, penteadeira ao invés de cômoda, rouge no lugar de blanche, ceroula ao invés de cueca. São exemplos que ilustram a mudança diacrônica ou histórica.

Considera-se, também, que a língua varia no espaço, razão porque a língua portuguesa apresenta variedades nacionais e internacionais. É a mesma língua, mas com traços peculiares das regiões, dos países como Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, Timor Leste, Brasil. Nesse campo, ilustram-se diferenças lexicais entre Português do Brasil e o Português de Portugal:

Banheiro - Quarto de banho
Açougue / Açogueiro - Talho / Talhante
Fila - Bicha
Ônibus - Autocarro
Trem - Combóio
Toca-fitas - Leitor de cassetes
Tela (de TV) - Écran
Um “acontecimento” no Brasil....... é um “facto” em Portugal
Terno - Fato
Menino / garoto - puto
Meias masculinas - Peúgas
Cueca - Boxer
Multa - Coima
“meia” - 6 (seis)
Galera - Turma
Embarcação - Galera
Usuário - Utilizador
Xerox - Fotocópia

Assim, as variedades nacionais de um idioma não apresentam uma uniformidade interna, são constituídas por variantes geográficas que os dialectólogos denominam dialetos. Também há as variações decorrentes dos diferentes grupos sociais a que pertencem os falantes, tal como va-riações de faixa-etária, sócio-culturais e sócio-profissionais. São exemplos de variações por faixa-etária: idoso>coroa>velho; homem>rapaz>tiozinho; baile>festa> balada. São exemplos de variações sócio-culturais: festa>arrasta-pé>piseiro; briga>confusão>furdunço> baixaria>barraco;namorar>ficar; moça> mina> filé. Exemplo de variação sócio-profissional no meio jurídico: Accipiens>credor de boa fé de prestação que não lhe é devida; actio in personam>ação pessoal ou sobre pessoa; ad hoc> Substituição temporária para o caso específico; ad judicia> para o foro em geral, para fins judiciais; ad referendum> na dependência de aprovação de autoridade competente; Caput> Cabeça; Corpus delicti> Corpo de delito.

Dos poucos exemplos que ilustram as mudanças e variações lingüísticas, observa-se ser impossível dar conta de todos os fenômenos de mudança e variação dentro de uma língua. É como diz o linguista Edward Sapir: “não podemos antecipar a deriva (*mudança – grifo nosso) e manter, ao mesmo tempo, nosso espírito de casta”, ou seja, sustentar, em meio à pluralidade social, uma modalidade castiça da língua. Ou dizendo, em outras palavras, manter o purismo lingüístico.

A língua falada e língua escrita também se contrapõem. Diz-se “Me empresta a caneta? Mas, dependendo das circunstâncias, ainda se escreve “Empresta-me a caneta?”; “Eu lhe conheço” ao invés de “Eu o conheço”; Tem aula hoje? Ao invés de “Há aula hoje?”; “Vou sair” no lugar de “sairei”.

O estudo da língua como um diassistema, abordando todas as variedades, não é apenas importante, mas também indispensável para o conhecimento do idioma. Descrever uma língua, sincronicamente, é apresentá-la diastrática e diato-picamente e proceder à análise de seus fatos. Essa tarefa é a labuta daquelas pessoas que elaboram os Atlas Linguísticos até, então, publicados no Brasil e daqueles em andamento, como é a confecção, sob nossa responsabilidade, do Atlas Etnolinguístico do Acre.

terça-feira, 6 de julho de 2010

CONDORCET

A idéia de leis naturais da vida social e de uma ciência da sociedade formada segundo o modelo das ciências da natureza é, na sua origem, inseparável do combate intelectual do Terceiro Estado contra a ordem feudal-absolutista. Tanto a doutrina do direito natural quanto a de uma ciência natural da sociedade possuem uma dimensão utópico-revolucionária, crítica (as duas estão estreitamente, aliás, ligadas ao século XVIII). O positivismo moderno nasceu como um legítimo descendente da filosofia do Iluminismo. De todos os Enciclopedistas, é, sem dúvida, Condorcet quem contribuiu da maneira mais direta e imediata na gênese da nova corrente.

Próximo dos fisiocratas (especialmente Turgot) e dos clássicos ingleses (A. Smith), Condorcet pensa que a economia política pode estar submetida à "precisão do cálculo" e ao método das ciências da natureza. Mas não se limita aos fatos econômicos e passa a generalizar esta démarche: o conjunto dos fenômenos sociais está submetido "às leis gerais... necessárias e constantes" parecidas com as que regem as operações de natureza. Daí, a idéia de uma ciência natural da sociedade ou de uma "matemática social" baseada no cálculo das probabilidades. O estudo dos fatos sociais foi, por muito tempo, "abandonado ao acaso, à avidez dos governos, à astúcia dos charlatães, aos preconceitos ou aos interesses de todas as classes poderosas"; aplicando o novo método à moral, a política e à economia pública, pode-se "seguir nas ciências um caminho quase tão seguro quanto o das ciências naturais". Aliás, as ciências da sociedade procuram incessantemente aproximar-se deste "caminho das ciências físicas que o interesse e as paixões não vêm perturbar".

Este ideal de ciência neutra, tão imune aos "interesses e paixões", quanto a física ou a matemática, estará no coração da problemática positivista durante dois séculos. Mas, há ainda em Condorcet uma significação utópico-crítica: seu objetivo confesso é o de emancipar o conhecimento social dos "interesses e paixões" das classes dominantes. O cienticismo positivista é aqui um instrumento de luta contra o obscurantismo clerical, as doutrinas teológicas, os argumentos de autoridade, os axiomas a priori da Igreja, os dogmas imutáveis da doutrina social e política feudal. É neste sentido que é preciso compreender o apelo ao modelo científico-natural em Condorcet: "Galileu... fundou, para as ciências a primeira escola onde elas eram cultivadas sem nenhuma mistura de superstição, seja em relação aos preconceitos, seja em relação à autoridade: onde se rejeitou com uma severidade filosófica qualquer outro meio que não fosse o da experiência ou do cálculo". Contudo, Condorcet censura Galileu por limitar-se "exclusivamente às ciências físicas e matemáticas"; trata-se agora de ampliar esta atitude - apoiando-se no método de Bacon e de Descartes - para as ciências econômicas e políticas. O combate à ciência social livre de "paixões" é, portanto, inseparável da luta revolucionária dos Enciclopedistas e de toda a filosofia do Iluminismo contra os preconceitos, isto é, contra toda a ideologia tradicionalista (principalmente clerical) do Antigo Regime.

Acha-se em O esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano a intuição de que o desenvolvimento no terreno dos fatos sociais choca-se com os interesses de classe: "quanto mais os objetos submetidos à razão tocarem os interesses religiosos e políticos, tanto mais lentos os progressos do espírito jumano"; mas, trata-se, para Condorcet, de um fenômeno do passado relacionado com os interesses clericais ou aristocráticos. A possibilidade de que a nova ciência econômica e política, representada pelos fisiocratas, A. Smith e pelos próprios Enciclopedistas, esta ciência racional, precisa e experimental pudesse estar, ela também, ligada a interesses sociais, escapa ao campo de visibilidade de Condorcet e dos positivistas em geral.




BIBLIOGRAFIA
CONDORCET. Bosquejo de un cuadro historico de los progresos del espiritu humano y otros textos. Ciudad del Mexico: Ed. Fondo de Cultura Economica, 2008.

sábado, 3 de julho de 2010

MANIFESTO CONTRA MUDANÇAS NO CÓDIGO FLORESTAL

Movimentos sociais, sindicais e entidades ambientalistas, além de personalidades e intelectuais, divulgaram na última sexta-feira (2/7) um manifesto em defesa do meio ambiente e da produção de alimentos e contrário às mudanças propostas para Código Florestal brasileiro, que devem ser votadas na semana que vem na Câmara dos Deputados.

O documento – assinado por personalidades como Leonardo Boff e D. Pedro Casaldáliga e entidades como a CUT e a Via Campesina - aponta que o relatório atende apenas aos interesses dos ruralistas, pela ausência de um debate amplo sobre o tema.

"Podemos afirmar que o texto do Projeto de Lei é insatisfatório, privilegiando exclusivamente os desejos dos latifundiários. Dentre os principais pontos críticos do PL, podemos citar: anistia completa a quem desmatou (em detrimento dos que cumpriram a Lei); a abolição da Reserva Legal para agricultura familiar (nunca reivindicado pelos agricultores/as visto que produzem alimentos para todo o país sem a necessidade de destruição do entorno) possibilidade de compensação desta Reserva fora da região ou da bacia hidrográfica; a transferência do arbítrio ambiental para os Estados e Municípios, para citar algumas", destacam os signatários.


Continue lendo aqui.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

CONSCIÊNCIA, LINGUAGEM, ALIENAÇÃO

Texto completo aqui.


O homem como ser ativo e inteligente se insere historicamente em um grupo social através da aquisição da linguagem, condição básica para a comunicação e o desenvolvimento de suas relações sociais e, consequentemente, de sua própria individualidade.

A linguagem, enquanto produto histórico, traz representações, significados e valores existentes em um grupo social, e como tal é veículo da ideologia do grupo; enquanto para o indivíduo é também condição necessária para o desenvolvimento de seu pensamento.

É preciso ressaltar que nem todas as representações implicam necessariamente reprodução ideológica; esta se manifesta através de representações que o indivíduo elabora sobre o Homem, a Sociedade, a Realidade, ou seja, sobre aqueles aspectos da sua vida a que, implícita ou explicitamente, são atribuídos valores de certo-errado, de bom-mau, de verdadeiro-falso. No plano político a ideologia é articulada pelas instituições que respondem pelas formas jurídicas, religiosas, artísticas e filosóficas; no plano individual, elas se reproduzem em função da história de vida e da inserção específica de cada indivíduo. Desta forma, a análise da ideologia deve, necessariamente, considerar tanto o discurso onde são articuladas as representações, como as atividades desenvolvidas pelo indivíduo. A análise ideológica é fundamental para o conhecimento psicossocial pelo fato de ela determinar e ser determinada pelos comportamentos sociais do indivíduo e pela rede de relações sociais que, por sua vez, constituem o próprio indivíduo.

Neste sentido podemos entender como é que, no plano ideológico, o indivíduo pode se tornar consciente ao detectar as contradições entre as representações e suas atividades desempenhadas na produção da sua vida material.

Quando falamos em consciência de si como sendo necessariamente consciência social, a alienação definida pela psicologia em termos de doença mental, neuroses etc, se aproxima da concepção sociológica de alienação.

Se no plano sociológico é feita a análise da relação de dominação entre as classes sociais, definidas pelas relações de produção da vida material da sociedade, esta relação se reproduz através da mediação política, via instituições que prescrevem os papéis sociais e que determinam as relações sociais de cada indivíduo.

A alienação se caracteriza, ontologicamente, pela atribuição de "naturalidade" aos fatos sociais; esta inversão do humano, do social, do histórico, como manifestação da natureza, faz com que todo conhecimento seja avaliado em termos de verdadeiro ou falso e de universal; neste processo a "consciência" é reificada, negando-se como processo, ou seja, mantendo a alienação em relação ao que ele é como pessoa e, consequentemente, ao que ele é socialmente.



LANE, Silvia et alii. Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1997.