quinta-feira, 28 de julho de 2011

RESCALDO DE UM ATENTADO DEBILÓIDE

Por Celso Lungaretti, no Náufrago da Utopia

Celso Lungaretti
A anulação do diferente é a mensagem que os meios propagam sem parar, tangendo as pessoas à defesa obsessiva de um status quo que, ele sim, é a verdadeira ameaça à paz, à felicidade e à própria sobrevivência da espécie humana; e imunizando-as contra o antídoto oferecido pelos que, via transformação da sociedade, as tentam salvar.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

JUNTOS OU SOZINHOS?

Por Golby Pullig, no Bloco de Notas

Tempos difíceis. Tempos de solidão, de desamor, de abandonos, perversidades, intolerância, discriminação, pré-julgamentos, isolamentos voluntários, doenças psicossomáticas, perdas, dor, necessidade de ferir, de se proteger, fraudes e corrupção. Tempo de muita carência afetiva, de exageros, de autopunições, tempo de desespero. Não é pessimismo. É o resumo das principais notícias que estampam jornais e sites de informação do país, do mundo; é o lamento da vizinha, dos amigos, é o que se passa por dentro de cada um de nós mesmo que não tenhamos tempo de conferir. Vamos adiando.

Impossível ficar indiferente, tanto à dor alheia quanto à nossa e mesmo assim seguimos em direção às nossas festas sem sentido, ao nosso dia a dia ligados “no automático” sempre esperando que em algum momento, em qualquer lugar, o impossível, o milagre aconteça. Caminhar junto a uma ou várias pessoas faz diferença. É tão elementar! O peso da nossa própria vida fica mais leve quando dividido, mas quem tem condições de reconhecer quando a carga está sendo compartilhada?

As necessidades dos indivíduos são tão particulares e ao mesmo tempo tão gerais... Amar e ser amado, receber um abraço sincero, respeito, entendimento, ser especial pro outro, ter conforto, sossego, liberdade e chances de realizar o que se deseja. Não falo de ninguém especificamente, nem de mim, apesar da certeza de que falo de muita gente que conheço e de quem não conheço. No fim de tudo queremos o básico, o simples, o descomplicado, não estarmos sós ou pelo menos não nos sentir sós.

Esse sentimento de questionar a solidão e a qualidade das relações se deu porque me dei conta da passagem do tempo ao receber email de uma amiga desejando um “feliz segunda metade do ano”. As frases carregadas de simplicidade comovente me fizeram refletir sobre o quanto perdemos sendo intransigentes com nossas próprias vontades e vocações. Deixamos pra resolver amanhã, mês que vem, ano que vem, um outro dia, as pendências que achamos que podemos adiar. Achamos que podemos.

A verdade é que isso nos retorna mais dia, menos dia. Não podemos adiar o outro, aquele que espera por atenção e carinho, não podemos adiar a vontade de recomeçar uma nova vida, de ser feliz, de acreditar que um novo caminho pode ser percorrido ou que o mesmo caminho possa trazer novidades. Essa resistência traz gradativamente tudo o que citei lá no primeiro parágrafo e que vemos estampar nas manchetes dos jornais. É minha gente, o tempo está passando e acreditar nele nos torna mais urgentes pra nós mesmos e pras pessoas que amamos e que acabamos por ferir na nossa pressa de chegar a lugar algum.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

SUJEITO REVOLUCIONÁRIO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Professor Sergio Lessa, da UFAL
As principais divergências da esquerda - e dos setores mais intelectualizados da direita -, tanto na universidade quanto nos partidos políticos, giram em torno da validade das categorias marxianas para a análise do capitalismo atual. Há orientações para todos os gostos, que se traduzem numa miríade de programas, táticas, estratégias e alianças muito diferenciados, quando não antagônicos.

Um desses debates diz respeito ao sujeito revolucionário no capitalismo contemporâneo. No século XIX, Marx o localizou no proletariado, nas massas de trabalhadores pauperizados das primeiras fábricas européias. Produtores da massa de riqueza da sociedade industrial nascente, eles tinham seus interesses contrariados na medida em que eram explorados por jornadas intensas de trabalho e seus salários mal pagavam as ferramentas da sua própria exploração.

Mas esta análise vale para hoje? Com o capitalismo de bem-estar social, as legislações trabalhistas, as leis de direitos humanos e a onda de responsabilidade social do mundo corporativo, como fica? No capitalismo humanizado há espaço para se falar em revolução? Seria essa mera petição de princípio de ressentidos que por pura incompetência não conseguem enriquecer?

O professor Sergio Lessa (UFAL) diferencia contexto histórico de história do contexto na obra de Karl Marx para compreender a evolução do modo de produção capitalista, as transformações no mundo do trabalho, a idéia de inevitabilidade da dominação e outros tópicos importantes, no curso Trabalho e sujeito revolucionário no debate contemporâneo. As aulas foram ministradas no curso de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e foram gravadas em vídeo, em 9 partes. Para baixar, clique no link com o botão direito do mouse e escolha Salvar como:



DVD1  
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DVD5 
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DVD7 
DVD8 
DVD9




Quem não conseguir baixar pode deixar recado aqui no blog ou entrar em contato com o professor no e-mail sergio_lessa@yahoo.com.br e pedir os DVDs originais. Mais informações, vídeos, apostilas, capítulos de livros e outros materiais podem ser encontrados no site http://sergiolessa.com

quinta-feira, 21 de julho de 2011

MITO, VONTADE DE PODER E AS GARRAS PEGAJOSAS DA MEDIOCRIDADE UTOPISTA: UM ACERTO DE CONTAS

Clique para ler resenhas e comentários
Escrevo esse texto movido pela leitura do intenso Nietzsche, o rebelde aristocrata, de Domenico Losurdo (Rio de Janeiro: Revan, 1.108 pp). Minha intenção é preservar todo um esquema de raciocínios anteriores à leitura para compará-lo com o que sei que virá ao conclui-la. Para tanto farei em outra ocasião novo artigo sobre o mesmo tema, devidamente contaminado pela nova perspectiva.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A TIRANIA DAS UTOPIAS MORAIS

Por Bruno Kazuhiro, no Perspectiva Política

Dentre as constantes expectativas das massas humanas, as quais são expressas por meio de manifestações populares, desejos natalinos, discursos sentimentais ou modos insignificantes de auto-expressão, talvez a mais característica e onipresente seja a ‘Paz’ ou, melhor dizendo, aquilo que Kant chama de ‘Paz Perpétua’, uma espécie de Utopia vindoura, consequência natural da razão humana, na qual toda a Humanidade estaria unificada sob um mesmo sistema e a paz reinaria completa entre os homens.

É fácil traçar a genealogia dessa expectativa. Se analisarmos friamente, veremos que ela não passa de uma secularização iluminista das expectativas messiânicas relacionadas ao ‘Reino de Deus’ na Terra, no qual todas as aspirações e promessas dos Evangelhos se veriam realizadas. Todo o mundo se veria unificado sob o ‘Despotismo Esclarecido’ de um Messias, o qual imporia um perpétuo estado de paz entre os homens, e poria fim a todos os sofrimentos humanos por meio de uma espécie de ‘Comunismo Sagrado’.

sábado, 16 de julho de 2011

ENTREVISTA A KARL MARX

Conduzida por Raymond Landor, publicada originalmente no jornal The World, de 18 de julho de 1871 e republicada no livro: ALTMAN, Fábio (org.). A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. São Paulo: Scritta, 1995, de onde foi extraída.

Karl Marx: clique na foto para ler suas obras
Karl Marx (1818-1883) iniciou sua carreira como editor de um jornal da cidade de Colônia, na Alemanha, em 1840. Quando a publicação foi fechada pelo governo por razões políticas, Marx transferiu-se para Paris. Ali, seu destino como jornalista não foi muito diferente - o diário em que ele trabalhava também foi cassado. O filósofo e cientista político mudou-se então para Londres, onde escreveria sua grande obra, O Capital, editada pela pri­meira vez em 1867. O correspondente do jornal The World em Londres, R. Landor, realizou a entrevista em um momento crucial da história européia - apenas dois meses depois de sua publicação, a Comuna de Paris, na qual Marx esteve envolvido seria violenta e sanguinariamente reprimida. A conversa entre Marx e Landor, segundo relatos da época, teve uma testemunha privilegiada: Friedrich Engels, o co-autor do Manifesto Comunista, texto divisor de águas na história dos movimentos sociais.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

NOVO TEXTO DE ISRAEL SOUZA E RESPOSTA

Dica pra quem quer se aprofundar (clique)
Israel Souza (do debate - que eu pensava encerrado - sobre a relação entre Cristianismo e paz social) enviou novo texto, que publico, seguido da minha resposta. Como são 12 páginas com citações, notas de rodapé e formatação própria, tomei a liberdade de extrair só os argumentos - que são poucos - para dialogar com eles, de uma forma mais direta, sem bibliografias ou notas. O leitor mais exigente pode baixar (em pdf) a versão integral do texto do Israel clicando aqui.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

"O SOCIALISMO É UMA DOUTRINA TRIUNFANTE"

Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua concepção de socialismo, fala sobre literatura e revela não se interessar por novas obras

Por Joana Tavares, no Brasil de Fato

Antonio Candido
Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores e escritores.


Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

TIRANIA DO COLETIVO, DITADURA DA MAIORIA

Mafalda, personagem do cartunista Quino
Muitas pessoas não se metem em movimentos sociais por temerem aquele efeito notável e nefasto de algumas dessas organizações: a tirania do coletivo.

Mesmo vergadas sob o enorme peso de problemas que não podem ser resolvidos individualmente como achatamentos salariais, falta de serviços públicos em seus bairros, abusos cometidos por instituições e ou culturas subservientes aos "de cima", elas preferem preservar sua privacidade a manifestar publicamente.

Militantes de causas civis conhecem bem a tirania coletivista. No calor das posições inevitavelmente divergentes na busca de algum objetivo comum, os argumentos normalmente são classificados em escalas ou graus de importância. A tirania começa quando em vez de avaliar as idéias em relação aos objetivos, avalia-se os sujeitos em relação ao grupo. Diante disso, pessoas passam a ser tratadas como ferramentas, úteis ou inúteis, segundo o julgamento da maioria.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

ANTONIO GRAMSCI: MAIS ACRE IMPOSSÍVEL

Publicado originalmente em 11.02.1917, no jornal operário La Città Futura




Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

JORNALISTAS EM GREVE... NA ALEMANHA




Mais de 170 paralisações foram realizadas desde abril pelos jornalistas alemães, que lutam por aumento salarial e manutenção da jornada semanal de 30 horas - que os patrões querem aumentar para 40. Segundo o site do Deutscher Journalisten-Verband (DJV), o sindicato da categoria, os empresários também querem cortar os subsídios de Natal e de Férias, além de reduzir em 25% os salários dos jornalistas em início de carreira.

SECTARIZAÇÃO E IRRACIONALISMO

Por Vicente Zatti, em Autonomia e educação em Immanuel Kant e Paulo Freire (Porto Alegre, 2007)



Toda relação de dominação, opressão, exploração é violenta, não importa se os meios usados para tal o são. Toda desumanização é uma forma de violência. Frente a tais situações as pessoas podem adotar atitudes diferentes: radicais ou sectárias. Paulo Freire afirma ser um grande mal para a sociedade brasileira o fato de o homem brasileiro, inclusive suas elites, em momentos desafiadores da história do país ter "descambado" para a sectarização.

terça-feira, 5 de julho de 2011

AMEAÇADOS POR GRANDES PROJETOS

Por Rodrigo Domingues, no relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, do Cimi (clique para download)

Na faixa que se estende por toda a região de fronteira do estado do Acre com o Peru está uma das maiores áreas de ocorrência de povos indígenas em situação de isolamento voluntário do mundo. Estes povos conseguiram manter seu modo de vida peculiar refugiando-se nas áreas que passaram ao largo dos ciclos econômicos da borracha, do caucho e da castanha.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

DESENVOLVIMENTO, IIRSA E ANTI-INDIGENISMO

Três homicídios, dois suicídios e duas tentativas de suicídio, R$ 1,3 milhão para investimentos nas aldeias retidos pelo governo do Estado e pela prefeitura de Rio Branco, denúncias de escambo de álcool por animais silvestres, falta de escolas em várias aldeias, denúncias de desvios de verba e prisão do superintendente da Fundação Nacional do Índio (Funai) pela Polícia Federal. Este é o saldo da "sustentabilidade" na condução das políticas indígenas no Acre, em 2010.

Os números são do relatório "Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil", lançado na última quinta (30) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que fez uma radiografia do problema no país.

sábado, 2 de julho de 2011

IN HOC SIGNO VINCES

Recebi do meu amigo cientista político - e cristão - Israel Souza uma brilhante contestação aos principais argumentos de duas postagens recentes: "Por que o cristianismo não produz paz social" e "Ainda sobre cristianismo e paz social", publicadas respectivamente nos dias 24 e 25 de Junho passado.

Apesar de ser um texto razoavelmente longo para os padrões do blog, vou publicá-lo na íntegra em vez de passar um atalho do Google Docs, como de costume. Faço isso porque sei que muitos leitores têm uma perspectiva similar à do Israel, da qual evidentemente não compartilho, mas tenho alguns razoáveis pontos em comum. Assim, guiado por costumeira curiosidade, farei em seguida comentários e adendos para estimular o debate. Como se diz na esgrima: - Israel, en garde!

quarta-feira, 29 de junho de 2011

HIGIENIZAÇÃO LITERÁRIA, MISÉRIA POLÍTICA

É consenso entre os estudiosos (historiadores, críticos literários etc) que a qualidade da literatura em cada época é subproduto do seu posicionamento em relação à forma política predominante.

Por esse raciocínio, uma sociedade é mais criativa na medida contrária da subserviência de sua produção literária ao Estado, ao Poder. É algo bastante lógico, que serve para explicar desde a explosão criativa brasileira durante os Anos de Chumbo (1964-1982) até a insipidez da maioria das publicações atuais.

sábado, 25 de junho de 2011

AINDA SOBRE CRISTIANISMO E PAZ SOCIAL

A propósito da postagem "Por que o Cristianismo não produz paz social" recebi o seguinte comentário do leitor Marcelino Freixo:

Me permita fazer uma correção. Pelo Evangelho, a salvação do homem é um ato de graça, e não o resultado do amor ao próximo ou mesmo a Deus. O amor a Deus e ao próximo é o resultado de ter a certeza dessa salvação, conforme está escrito em Efésios 2:8-9: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie". Acho que isso invalida o argumento central do seu texto, que o cristianismo ensina que o amor é condição para se ter algo.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

POR QUE O CRISTIANISMO NÃO PRODUZ PAZ SOCIAL

Apresentadores de programas policiais de TV compartilham vários "cacoetes". Um deles é relacionar os crescentes índices de criminalidade com a suposta descrença do povo. De fato, é bastante difundido o credo de que o aumento da violência estaria relacionado à "falta de Deus no coração". Surfando na onda de religiosidade e moralidade advinda desta revelação, desde os anos 60 as igrejas realizam enormes eventos públicos: "cruzadas", "festividades" e as recentes "marchas para Jesus".

É um equívoco. Primeiro: o Cristianismo é não só a forma religiosa predominante na nossa sociedade há pelo menos 2.000 anos, como é a base histórica da moralidade mundana ocidental. A tal ponto que, ao longo da história, outras religiões como o Budismo, o Hinduísmo, a Umbanda etc, tiveram que "adaptar" suas narrativas como estratégia para arrebanhar seguidores.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

RAZÃO TUTELADA E JORNALISMO NO ACRE

Já pensou o que aconteceria se o Movimento Abolicionista, que ocupou grande parte da crônica social brasileira na primeira metade do século XIX - e rendeu uma explosão de movimento criativo, das artes plásticas à literatura - se tivesse fiado na capacidade de diálogo do Estado para acabar com o horror da escravidão?

Ou se o movimento Diretas Já, ao invés de invadir as ruas das principais metrópoles brasileiras, resolvesse aguardar o momento mais propício num clima de diálogo e cordialidade com a "difícil situação estrutural" do "Estado revolucionário" brasileiro do final dos anos 80?

Já pensou o que haveria se, pela mesma época, o movimento de seringueiros do Acre resolvesse abrir mão dos empates em solidariedade à difícil missão dos governantes de reestruturar a máquina pública após 20 anos de ditadura?

terça-feira, 21 de junho de 2011

A SOCIEDADE COMO ORGANISMO

Por István Meszáros, na introdução ao livro O poder da ideologia, Boitempo Editorial

Desde que Menênio Agripa se dirigiu aos grevistas romanos, que ocupavam o Monte Sagrado no século VI a.C., vem sendo defendida em inúmeras ocasiões a concepção "orgânica" da ordem social. Segundo o tão reverenciado cônsul romano – que, em palavras características da Enciclopédia Britânica, era "conhecido como um homem de pontos de vista moderados" – cada camada social tem seu “lugar próprio” no grande organismo. As camadas inferiores devem obter sua satisfação a partir da "glória reflexa" e, independentemente de sua inferioridade, serem consideradas "igualmente importantes" para o funcionamento do organismo a que pertencem.

Evidentemente, esse foi um poderoso exercício de ideologia. Segundo a lenda, os que protestavam se comoveram tanto com os "pontos de vista moderados" do cônsul que, imediatamente, abandonaram sua postura de desafio coletivo e retornaram aos lugares a eles determinados.

domingo, 19 de junho de 2011

SE ESSA MARCHA FOSSE MINHA...

O que faltou na Marcha da Liberdade deste sábado em Rio Branco? Comida, água pro povo? Música engajada, acrobacias? Teatro de rua, movimento estudantil?

Faltou combinarem com a única faixa populacional realmente interessada em mudanças sociais radicais. Onde estava o povo do Caladinho, do Taquari, do Wilson Pinheiro, os expulsos da Avenida Amadeu Barbosa, os jovens desempregados ou subassalariados da nossa "urbe"?

Aos que não sabem, uma pista: para sair de suas casas e chegar ao centro da cidade cada um teria que desembolsar para o ônibus 4,8 reais - 2,4 de ida, 2,4 de volta - do seu minguado salário mínimo.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

ESTADO E CAPITAL NA AMAZÔNIA

Recebi do meu amigo Israel Pereira uma análise brilhante sobre mais uma falsa dicotomia: o neo-desenvolvimentismo em sua faceta ruralista e o neo-desenvolvimentismo "ecologicamente correto" incorporado por Marina Silva, Natura, Fritjof Capra, Edgar Morin e CIA ltda. É algo que faz pensar, especialmente nesse período de vácuo de militância. Quando tudo parece perdido, nada melhor que ver o que corre no mundo real, do lado de fora da janela das nossas utopias.

O artigo está aqui.

terça-feira, 14 de junho de 2011

MANUAL DE REDAÇÃO

Ou, 10 regras da grande imprensa ao abordar "movimentos sociais"


Osvaldo da Costa, em Adital


Convenções básicas (quem não cumprir está sujeito à demissão):

1ª) Toda OCUPAÇÃO de terra deve ser chamada de INVASÃO

Ao invés de usar o termo adotado pelos movimentos sociais, “ocupação” – manifestação de pressão para o cumprimento da Constituição pelo Estado e denúncia da existência de latifúndios- é mais eficiente para o objetivo de defesa do princípio da propriedade privada a utilização da palavra “invasão” – tomar para si pela força algo que não lhe pertence.

Dessa maneira, implicitamente, estamos dizendo que discordamos dessa prática e a consideramos ilegal, e conseguimos gerar a sensação de pânico generalizado em todos os donos de propriedade, sejam elas rurais e produtivas, ou até mesmo propriedades urbanas.

Observação: essa regra não é generalizável. Para os casos em que os Estados Unidos invadem países, destroem a infra-estrutura e matam a população, deve-se utilizar o termo “ocupação”.

2ª) Regra do efeito dominó: fale só do maior para bater em todos

O acordo da grande imprensa é manter somente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na pauta dos noticiários, e evitar sempre que possível falar da existência de outros movimentos sociais. Para isso, quando se tratar de movimentos do campo, basta usar sempre a expressão genérica “movimento dos sem terra”, ou falar dos “sem terra”, sem mais detalhes.

Se a pauta exigir o detalhamento do movimento, recomenda-se associá-lo sempre ao alvo principal, com expressões como “movimento dissidente do MST”.

Essa regra ainda colabora para a desunião entre os movimentos, pois os menores se incomodam pela invisibilidade e pelo fato de terem suas ações relacionadas sempre ao MST.

3º) Reforma Agrária deve ser tratada como questão de polícia

Movimentos sociais e reforma agrária devem, sempre que possível, ser tratados na página policial, no caso de jornais impressos, e no bloco do crime e dos desastres, no caso dos telejornais.

Caso não seja possível enquadrá-los na seção policial ou em espaço próximo, use títulos para editorias que lembrem o belicismo, como “campo minado”. Não importa o que diga sua matéria, os títulos devem falar por ela, mesmo que não tenham relação com o conteúdo. Use tons sensacionalistas e fatalistas.

4º) Nunca divulgue os artigos progressistas da Constituição Federal

Os artigos da Constituição Federal que tratam da função social da terra, que integram o código agrário – 184 a 191 – nunca devem ser mencionados em reportagens sobre os movimentos sociais, para evitar a compreensão de que a ação de invasão de terras pode ter algum respaldo legal.

É sempre recomendável lembrar da lei de Segurança Nacional e da necessidade de uma legislação contra o terrorismo no Brasil. O termo “Estado de Direito” é ideal para isso. Considere qualquer manifestação uma afronta ao Estado de Direito, mesmo que ele seja apenas o Direito do Estado.

Se falar do Estado de Direito e suprimir os artigos progressistas da Constituição não for suficiente, convém colocar as reportagens próximas à cobertura de ações terroristas ou, levantar a suspeita de que há relação do movimento social com uma organização terrorista ou guerrilheira estrangeira.

Conjunto de regras para serem selecionadas e aplicadas conforme a conjuntura exigir:

5º) Levante a bola para o oportunista de plantão

Não é verdade que o papel da imprensa é apurar a verdade dos fatos. Todo aspirante deve saber que a imprensa tem poder para gerar os fatos.

Além disso, apurar fatos implica em sair da sua cadeira e nem todos eles podem ser apurados por telefone. Basta fazer uma reportagem suspeitando de algo, e procurar um oportunista que queira protagonizar a indignação pública para a suspeita ganhar dimensão de notícia.

Sempre há alguém à disposição esperando para se deslumbrar com as luzes dos holofotes. O exemplo bem sucedido mais recente foi o caso da requentada pauta da suspeita da legalidade do financiamento público para cooperativas da reforma agrária, em que o presidente do Superior Tribunal Federal (STF) desempenhou o papel de porta-voz da bancada ruralista, dando respaldo para a suspeita, e de quebra, aproveitando para atacar o governo federal.

Se não houver ninguém do Judiciário ou algum deputado, não importa, qualquer um, sem nunca ter ido a um assentamento ou acampamento pode ser transformado em “especialista” em questão agrária: sociólogos, filósofos e até jornalistas.

6º) Nem sempre devemos apurar os dois lados da notícia

Quando já conseguimos incutir um pré-julgamento na opinião pública sobre o caráter marginal das ações dos movimentos sociais, podemos reforçar essa opinião entrevistando somente o lado agredido pelas ações, as vítimas dos movimentos. Fica implícita a informação de que, como os integrantes dos movimentos são foras da lei, quem deve escutá-los é a polícia e o poder judiciário. Se ainda assim tiver que ouvi-los, seja breve e descontextualize a frase.

7º) Não deve existir noção de historicidade, nem de causa e conseqüência em nossas reportagens

Não abordar as razões da ação dos movimentos sociais, evitar a divulgação da nota à imprensa. Não importa há quanto tempo às famílias estejam acampadas, quais promessas foram feitas pelo governo, se a terra é do banqueiro que saqueou os cofres públicos ou do coronel que vive do trabalho escravo. Se detenha nas conseqüências da ação.

8°) Dramatização da repercussão das ações dos movimentos sociais

Retire o foco das motivações estruturais e causas históricas e centre a abordagem nas conseqüências para os indivíduos donos ou empregados das propriedades invadidas ou atacadas.

– fale do prejuízo econômico para o proprietário, e se possível faça uma entrevista com o mesmo ou com um familiar próximo para mostrar a comoção da família diante do ataque bárbaro. É importante mostrar o estado de choque emocional, e o ideal é que a pessoa esteja chorando.

– surte grande efeito a entrevista com trabalhadores da fazenda ou da empresa. O maior exemplo é o caso da ação no horto da multinacional Aracruz no Rio Grande do Sul, em que uma técnica de laboratório se fez passar por pesquisadora e, em prantos (!), afirmou que a destruição das mudas de eucalipto acabou com mais de vinte anos pesquisa.

Nesse caso, as reportagens conseguiram colocar os movimentos sociais como contrários à ciência e ao desenvolvimento tecnológico, evitando a pauta concreta da ação, que se centrava na expansão ilegal das terras da empresa e na depredação da natureza com o monocultivo de eucalipto.

9º) Campanha de desmoralização permanente dos movimentos sociais

É sempre bom manter semanalmente pautas de desgaste aos movimentos sociais, mesmo que não haja uma ação que renda manchete. Nesses casos, a regra é trabalhar com associação, encaixando uma reportagem que fale sobre um movimento após ou entre matérias que falem, por exemplo, de casos de corrupção no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), venda de terra e desmatamento em assentamentos da Amazônia Legal, etc.

Bata nas mesmas teclas, insista nas mesmas teses permanentemente, mesmo que elas já tenham sido usadas antes. Insista, por exemplo, que o MST irá romper com o Governo Lula desta vez, mesmo que o movimento afirme e demonstre desde o primeiro dia de governo que nunca esteve atrelado.

E quando não for possível tomar como alvo os movimentos sociais, vale mirar nas bandeiras de luta deles, alegando estarem ultrapassadas, deslegitimando-as como parte da solução atual para os problemas do país. Nesse caso, pode-se até reconhecer o valor histórico que bandeiras como reforma agrária cumpriram no Brasil e em outros países, mas deve-se usar essa manobra apenas para recusar essas propostas no presente.

10º) É fundamental saber manipular a dimensão subjetiva do telespectador ou do leitor

Não é apenas com a manipulação dos fatos e com a edição das entrevistas que podemos influenciar na interpretação que os nossos consumidores farão. Na TV, a expressão facial e o tom de voz dos repórteres, dos comentaristas e, sobretudo, dos âncoras, é determinante. A adoção do semblante sério e do tom de voz grave deve indicar a importância do tema.

Além da performance dos jornalistas como atores, é recomendável que o pano de fundo do cenário também traga imagens que gerem medo e desconfiança. O exemplo do Jornal Nacional é o mais ilustrativo: para falar da reforma agrária e dos movimentos que lutam por ela: aparece uma cerca rompida e três vultos disformes – “afinal não são pessoas, são sombras” –, empunhando ferramentas de trabalho como se fossem armas, numa ação de invasão da propriedade (e da casa do espectador).

domingo, 12 de junho de 2011

É VOCÊ!


É você
Só você
Que na vida vai comigo agora
Nós dois na floresta e no salão
Nada mais
Deita no meu peito e me devora
Na vida só resta seguir
Um risco, um passo, um gesto rio afora...

É você
Só você
Que invadiu o centro do espelho
Nós dois na biblioteca e no saguão
Ninguém mais
Deita no meu leito e se demora
Na vida só resta seguir
Um risco, um passo, um gesto rio afora
Na vida só resta seguir
Um ritmo, um pacto e o resto rio afora...

Letra: Tribalistas

sexta-feira, 10 de junho de 2011

IDADE MÍDIA

Por Danielle Gonçalves, no DireitoNet


De maneira simplista, tentarei mostrar com este trabalho uma das grandes formas de violência existente na sociedade e que freqüentemente se desenrolam sob os nossos olhos, porém, demasiado perto para serem percebidos: trata-se da violência da mídia.

A mídia, com sua aparência indefesa, sob a alegação de prestar serviço cultural e informativo de maneira diversificada com o alcance de todas as classes e indivíduos vêm, hodiernamente, se manifestando como um super poder, causando grande influência, de certa maneira perversa, sobre a vida das pessoas.

Podendo ser manifestado de diversas maneiras, o poder, segundo Bonavides [1], pode ser assim definido:

“A um nível muito geral, poder é qualquer relação social regulada por uma troca desigual. É uma relação social porque a sua persistência reside na capacidade que ela tem de reproduzir desigualdade mais através da troca interna do que por determinação externa. As trocas podem abranger virtualmente todas as condições que determinam a acção e a vida, os projectos e as trajectórias pessoais e sociais, tais como bens, serviços, meios, recursos, símbolos, valores, identidades, capacidade, oportunidades, aptidões e interesses. No relativo às relações de poder, o que é mais característico das nossas sociedades é o facto de a desigualdade material estar profundamente ligada com a desigualdade não material, sobretudo com a educação desigual, a desigualdade das capacidades representacionais/comunicativas e expressivas e ainda a desigualdade de oportunidades e de capacidades para organizar interesses e para participar autonomamente em processos de tomada de decisões significativas” (grifo nosso).

Deste modo, torna-se fácil observar que a mídia é um dos maiores veículos de manifestação do poder neste país. Eis que, sua maior função é enriquecer uma minoria composta de grandes empresários, conservando, assim, o status quo. A mídia desempenha essa função vendendo os seus produtos e suas ideologias, utilizando, para isso, instrumentos cada vez mais inescrupulosos e mantenedores de desigualdades.

A mídia, de maneira quase imperceptível, trabalha na manipulação de conduta das massas populares, como observa Kelnner [2]:

“Na mídia encontra-se, atualmente, a forma dominante de cultura (mercantilizada), a qual promove a socialização ao mesmo tempo que ajuda a moldar a identidade das pessoas. Através de um véu sedutor que combina o verbal com o visual, a cultura da mídia – que é a cultura da sociedade – traduz uma ampla dependência entre comunicação e cultura. Através desta inter-relação, divulga determinados padrões, normas e regras, ensina o que é bom e o que é ruim, o que é certo e o que é errado; ajuda a formar identidades, fornece símbolos, mitos e estereótipos através de representações que modelam uma visão de mundo de acordo com a ideologia vigente” (grifo nosso).

Sendo assim, a mídia contribui bastante na formação da identidade e socialização do povo brasileiro, pois “- como um vetor de publicização da vida cotidiana - tem o poder de formar, informar e transformar, mas também pode deformar os estilos de identidade, subjetividade e sociabilidade [3]”.

Portanto, a mídia por ter um grande poder de influência sobre a população em geral, utiliza-o como o propulsor de suas ideologias e instrumento de manutenção do status quo, na medida em que narra, tece histórias, seleciona estratégias de linguagem pelas quais edita vida, aponta caminhos, ensina modos de ser e espetaculariza o humano, a qualquer preço.

A mídia, ao divulgar um fato, o mantém, porém direciona o enfoque ao seu bel prazer. Deste modo, estabelece a ideologia das classes dominantes e substitui instituições importantes como a família, a igreja e a escola. A interpretação dada a algum acontecimento pela mídia é repassada aos espectadores que mantêm suas discussões e reflexões de acordo com aquilo veiculado, como se a conotação dada pela mídia fosse própria, e não imposta, determinando, deste modo, a prevalência do pensamento das camadas superiores.

Segundo Kellner [4], “A ideologia transmitida pela mídia ‘é (geralmente) a do branco, masculino, ocidental, de classe média ou superior; são as posições que vêem raças, classes, grupos e sexos diferentes dos seus como secundários, derivativos, inferiores e subservientes’. Há, portanto, uma nítida separação em ‘dominantes/dominados e superiores/inferiores, produzindo hierarquias e classificações que servem aos interesses das forças e das elites do poder”.

Deste modo, então, o indivíduo, apesar de pensar ser o super-homem, é um soldadinho de chumbo, manipulado pelos ideais e pela forma de pensamento divulgado pela mídia. O seu pensar, na verdade, não te pertence.

Por outro lado, existe uma outra nuance da mídia que merece ser destacada, como relata Cruz [5]:

“Com o fenômeno da globalização e ao advento de uma sociedade global a ordem do momento é consumir. Então, para que possa, além de manter a ordem vigente estabelecida, alcançar maiores índices de audiência, a mídia, por diversas vezes, recorre a elementos afinados com a lógica sensacionalista, do espetacular, do grotesco, do violento” (grifo nosso).

Neste contexto, em busca de audiência, a mídia divulga, cada vez mais, informações desprovidas de conteúdo, como a fofoca, brigas, traição, etc. Matérias que, em vez de transmitir o conhecimento de forma a desenvolver o seu pensamento crítico, pelo contrário, banaliza a informação séria porque esta não gera a tão esperada audiência e aliena a população a fim de manter a ideologia dominante, como novamente observa Cruz [6]:

“Assim, a cultura produzida pela mídia promove articulações com o sistema vigente no sentido de reforçar a homogeneização das identidades. Baudrillard (1997: 80) afirma: “Por trás de cada informação, um acontecimento desapareceu; sob a cobertura da informação, um a um os acontecimentos nos são retirados”. Assim, o mundo atual se depara com um processo de “ofuscamento do saber”, a “falsa clareza”, de Adorno e Horkheimer. Vivencia-se o chamado “efeito paravento”, de Ramonet (1999: 31) – onde um evento desbota outro –, o “ocultar mostrando”, de Bourdieu (1997: 24) – em que a realidade é mostrada de forma distorcida, mascarando alguns elementos (grifo nosso).

Num cenário em que a qualidade da informação é inversamente proporcional ao índice de audiência, o racional é superado, com certa freqüência, pelo conflito, “pela manipulação de temores e fantasias” (Kellner, 2001: 106), onde o discurso noticioso é substituído por um tipo de “discurso publicitário”, homogeneizador de identidades, mercadológico, a-histórico e sem aprofundamento, portanto, desprovido de reflexão – onde os meios ficam impossibilitados de justificar os fins. Se a mídia não chega a “congelar” mentes, no mínimo desvia a atenção dos assuntos realmente relevantes para as vidas receptoras” (grifo nosso).

Desta forma, a informação veiculada sempre será aquela que trará bom retorno ao mercado, voltando-se para o mesmo problema da função da mídia em alienar o público e sustentar as classes dominantes.

Assim, a mídia impõe seus produtos e obriga o público a consumi-los, sob pena de se sentirem diferentes, excluídos da sociedade. Aqueles que adquirem os produtos se sentem mais importantes, visto que as pessoas olham os outros de acordo com os produtos que possuem, isto é, você vale o que você tem. Isso gera a euforia dos consumidores que saem as lojas para, muitas vezes, sem condições financeiras, comprar o tênis da NIKE, a sandália da Sandy e tantos outros adornos desprovidos de sentido, assim como as informações veiculadas. Portanto, a mídia é um importantíssimo elemento para o mercado, eis que, maximiza as vendas. E, como ressalta Bonavides [7]:

“O fetichismo das mercadorias é a forma de poder do espaço de mercado. [...]. À medida que adquirem qualidades e significados autônomos que vão para além da estrita esfera econômica, as mercadorias tendem a negar os consumidores que, enquanto trabalhadores, são também os seus criadores. Dado que a autonomia das mercadorias é obtida à custa da autonomia do consumidor enquanto ator social (como criador das mercadorias e como consumidor livre), o consumidor transforma-se, através do fetichismo das mercadorias, de sujeito de consumo, em objeto de consumo, de criador, em criatura. [...].

Numa sociedade produtora de mercadorias, essa organização social engendra a “coisificação das pessoas” (a força do trabalho como mercadorias) e a “personificação das coisas”. Desse modo, segundo Marx, o fetichismo das mercadorias está intimamente ligado à exploração, e o tipo de alienação a que dá origem pode ser encarado simplesmente como o “aspecto qualitativo” da exploração. A meu ver, no entanto, o fetichismo das mercadorias deve ser considerado uma forma autônoma de poder. Por um lado, mediante a sua transformação cultural, o fetichismo das mercadorias vai muito para além da exploração. Convertido num sistema semiótico globalmente difundido pelo imperialismo cultural, o fetichismo das mercadorias é, com freqüência, um posto avançado da expansão capitalista, o mensageiro da exploração que se avizinha. Por outro lado, e em parte por essa razão, o processo de consumo é hoje demasiado complexo para ser apreendido nos termos da dicotomia de Marx: consumo individual/consumo produtivo. Por último, a crescente esteticização do consumo converte as mercadorias numa configuração de mensagens expressivas que fomentam uma concepção materialista da vida no mesmo processo em que desmaterializam os produtos”. (grifo nosso).

É devido a essa concepção materialista da vida que a mídia se aproveita e impõe os seus produtos. E as pessoas, levadas pela vaidade, irão adquiri-los, mesmo que a aquisição cause dívidas elevadas e prolongadas, mas que geram grande satisfação, conforme se observa neste comentário de Chauí [8]:

“A sociedade da mídia e do consumo de bens efêmeros, perecíveis e descartáveis engendra uma subjetividade de tipo novo, o sujeito narcisista que cultua a sua própria imagem como única realidade que lhe é acessível que, exatamente por ser narcisista, exige aquilo que a mídia e o consumo lhe prometem sem cessar, isto é, satisfação imediata dos desejos, a promessa ilimitada da juventude, saúde, beleza, sucesso e felicidade que lhe virão por meios fetichizados”.

Neste mesmo sentido [9]:

“A ética da comunicação - que em seu sentido etimológico se liga às noções de troca, permuta, vinculação e comunidade - tem sido atropelada por um sistema que faz da mídia uma espécie de ‘fogueira das vaidades’. É neste sentido que Muniz Sodré critica a mídia (no caso, a televisão), como uma expressão de ‘monopólio da fala’ e como uma ‘maquina de narciso’ que inibe a fala do Outro, tendendo a dissolver os regimes de solidariedade, pois multiplica os espelhos do Mesmo no imaginário social”.

É óbvio que essa imposição de padrões e produtos, banalização da informação e determinação de ideologias, depende muito dos receptores, visto que muitas pessoas não são manipuladas pelo poder exercido pela mídia. São pessoas conscientizadas e com alto poder crítico que, todavia, representam exceção num país como Brasil em que a maioria das pessoas não tiveram sequer acesso a escolas ou ensino de qualidade e que o único meio de aquisição de informação é aquele veiculado pela mídia, especialmente pelo rádio e televisão.

Resumindo, a mídia é uma forma de manutenção da ideologia vigente e do status quo, tem o poder de impor padrões, condutas, pensamentos, moda, etc. Dado ao seu poder e devido a busca de audiência ela banaliza a informação e aliena seu público em busca daquela finalidade. Assim, chega-se ao ponto mais importante para a lucidez, visto que, pode-se enxergar a violência exercida pela mídia, a violência de impor o pensamento da classe dominante sobre os outros, excluídos, que devem ser os soldadinhos de chumbo movidos pela necessidade de manter tudo como está. Soldadinhos a–críticos, sem posição, sem ideal de luta. Soldados que devem ser mantidos em posição de inferioridade, pois são eles que mantêm as classes superiores.

Como todo poder é exercido pela imposição da violência, as vezes com maior transparência, as vezes quase imperceptíveis, vejamos o conceito de violência determinado por Chauí [10]:

“Um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos”. (grifo nosso)

À primeira vista poderia se concluir que o que foi exposto neste trabalho, em contraposição com o conceito estabelecido acima, não seria uma forma de violência. Mas, uma análise mais profunda levaria a verificação de quão violenta é a imposição feita pela mídia de ideologias, de produtos, de padrões e culturas da classe dominante, como se fossem únicos, devendo ser cumpridos à risca pela maioria do público inconsciente, trabalhando na alienação deste público para alcançar seus objetivos, porque a informação do público e o desenvolvimento de um pensamento crítico, opinante e emancipatório seria prejudicial à função da mídia em manter a ideologia dominante, além do que as classes superiores estariam mais heterogêneas, o que não é desejado, em hipótese alguma. Deste modo, não considero o que já foi exposto algo diferente da violência, mas, é claro, apresentada nas entrelinhas de modo a não ser percebida tão facilmente.

Segundo Marilena Chauí [11], existem, no Brasil, muitos atos de violência, mas que não são assim considerados, porque aqui existe um mito da não violência brasileira decorrente do fato:

“A violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. [...]. A mitologia e os procedimentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser percebida, e, por não ser percebida é naturalizada...”

Assim, a violência da mídia está tão naturalizada nas relações sociais que a sociedade em geral, especialmente os mais vulneráveis econômica e socialmente, não consegue percebê-la e desvencilhá-la.

O mais incrível é que não conseguimos enxergar tudo isso. Como podem existir classes consideradas inferiorizadas (não só economicamente, mas também, culturalmente e ideologicamente) se a Constituição estabelece a igualdade de todos? Como alguns são sufocados ao falar, se a Constituição permite a liberdade de expressão? Como achar melhor o que está sendo transmitido no rádio, na TV, nos jornais, se existem os próprios valores internos? Somos livres, podemos reagir, mas nosso pensamento está arraigado em uma outra concepção. Concepção esta manipulada por diversas formas de poder, inclusive a mídia, que nos faz paralisar perante os nossos direitos e interiorizar a fraqueza, a conformidade e a inferioridade de cada um.

A Constituição Federal assegura a liberdade de comunicação (art. 5º, IX). Acontece que, a mídia desempenha esse direito de maneira bastante violenta, ao impor uma ideologia, inserindo uma barreira no desenvolvimento da liberdade de pensamento (também assegurado pela Constituição – art. 5º, IV), visto que dificulta muito desenvolver uma consciência crítica frente a um instrumento que exerce o seu poder de forma quase imperceptível, mas de impressionante eficácia.

Porém, não se pode conceber que a mídia exerça esse poder sobre as pessoas. Os narcisistas devem acordar para a criticidade e questionar se aquilo que está sendo apresentado cotidianamente pela mídia é a realidade ou é apenas uma realidade manipulada ao bel prazer daqueles que recorrem aos serviços midiáticos.

Ressalta-se que, isso não é devido simplesmente à inércia do indivíduo pacato, mas à manipulação exercida sobre o pensamento das pessoas e à banalização das informações de um instrumento tão necessário ao desenvolvimento intelectual, já que a educação nesse país é tão precária.

Deste modo, mister se faz encontrar as estratégias para entrar e sair dos jogos da mídia que se infiltraram nos diversos campos das relações sociais. Isso só poderá ser feito com a conscientização e desenvolvimento do pensamento crítico da população para que possa interpretar as imposições ideológicas, econômicas e culturais determinadas pela mídia.

Por outro lado, faz-se necessário à aplicação de princípios éticos na mídia, baseado em uma ética universal, em que todos são cidadãos iguais e devem ser tratados como tais, respeitando-se as diferenças de cada grupo. A mídia tem que divulgar os fatos como eles são, sem impor a ideologia dominante, deve permitir a participação de cada grupo na sociedade que poderá mostrar seus valores e sua importância, de maneira a criar uma heterogeneidade cultural e ideológica para cada um, com sua consciência crítica, seja capaz de escolher (escolha própria) a ideologia que mais o agrada, respeitando as idéias e opinião dos demais.

A ética presa à consciência, a liberdade e a responsabilidade da ação, cuja virtude se determina pela conformidade do bom e do justo. A ação ética só será livre se for autônoma, isto é se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência de uma ordem, a um comando ou a uma pressão externos [12]. Deste modo, a ética determina o contrário do que acontece na mídia atualmente. Por isso, os valores repassados pela mídia têm de ser universais, não baseados em uma única classe mais poderosa, para que se possa estabelecer uma mídia da consciência e emancipação da população em geral, sem exclusões.


Notas:

[1] Boaventura de Souza Santos. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da Experiência. Vol. 1 – 4ª ed. – São Paulo: Cortez, 2002.

[2] Fábio Souza da Cruz. Mídia e Violência. Disponível em:

[3] Cláudio Cardoso de Paiva, De olho nos traficantes, malandro e celebridades: um estudo de mídia e violência urbana, 2000.

[4] Fábio Souza da Cruz. Mídia e Violência. Disponível em:

[5] Idem

[6] Idem

[7] Boaventura de Souza Santos. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da Experiência. Vol. 1 – 4ª ed. – São Paulo: Cortez, 2002. p. 266.

[8] Marilena Cahuí. Ética e Violência. Colóquios Interlocuções com Marilena Chauí. São Paulo, 1998.

[9] Cláudio Cardoso de Paiva. De olhos traficantes, malandros e celebridades: um estudo de mídia e violência urbana.

[10] Marilena Cahuí. Ética e Violência. Colóquios Interlocuções com Marilena Chauí. São Paulo, 1998.

[11] Idem

[12] Idem


Referências Bibliográficas:

CHAUÍ, Marilena. Ética e Violência. Colóquios Interlocuções com Marilena Chauí. São Paulo, 1998

CRUZ, Fábio Souza da. Mídia e “Violência”: A Pedagogia Crítica como Agente Libertador da Cultura. http://www.ucpel.tche.br/rponline/artigo1.doc

PAIVA, Cláudio Cardoso de. De olho nos traficantes, malandro e celebridades: um estudo de mídia e violência urbana, 2000. http://www.bocc.ubi.pt/_esp/autor.php?codautor=58

SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da Experiência. Vol. 1 – 4ª ed. – São Paulo: Cortez, 2002.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

ORDEM E PROGRESSO

Desde que o mundo é mundo existe um apelo para que as pessoas preservem a ordem da vida social. Que grupos não coloquem seus interesses acima do organismo coletivo. Que quando uns radicalizam, a maioria perde. Que é irresponsabilidade, por exemplo, colocar interesses de uma categoria grevista acima dos interesses da sociedade em geral. Que por lei - ah, a lei... - os interesses coletivos estão acima dos interesses particulares.

Esta análise se sustenta? Como poderia, se todas as categorias grevistas fazem parte da sociedade? Por exemplo: numa greve da educação, as reivindicações dos professores não beneficiam só uma categoria, mas toda a sociedade. E não estou me referindo a estudos rigorosos sobre a quantidade de ciclos de "aquecimento da economia" que um reajuste do salário desse segmento costuma provocar na circulação de dinheiro, melhorando a arrecadação de impostos e permitindo a ampliação de obras públicas (público significa "para todos").

A minha questão é: a esculhambação das carreiras do funcionalismo público brasileiro ao longo dos anos 90 ajudou a aumentar o fosso educacional entre educados e não-educados, isto é, entre ricos e pobres? Ou, em termos mais simples, os problemas da escola pública podem ser melhorados ou atenuados com professores mal remunerados, preocupados com a comida na mesa?

Se o sucateamento da educação pública está relacionado à disparidade de renda atual e se não é possível ter uma escola adequada com professores ganhando mal, não é possível compreender o nível de realidade da "questão orgânica da vida social" colocada acima.

A menos que considerem que em nome disso, desse dogma positivista, a educação pública deve se submeter à situação de descalabro que todos também reconhecem hoje. Mas, peraí, acaba de me ocorrer que exatamente a escola é defendida como o ponto de viragem para uma sociedade melhor, mais justa etc!

Por favor, me esclareçam: uma coisa não é o oposto da outra?

Na Pré-História a vida em sociedade se tornou possível porque o Homo sapiens, sob a proteção do grupo social, aceitou que o próprio grupo estabelecesse prioridades consensuais para benefício mútuo.

É engraçado que hoje não consigamos sequer pensar a respeito, quando o assunto é universo escolar. A escola de qualidade sempre foi a grande utopia emancipatória desde o Iluminismo. Será que a utopia hoje é outra?

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A MORALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Vencedor de vários prêmios no Velho Mundo e pouco conhecido no Brasil, o documentário Undergångens arkitektur (Arquitetura da destruição), de Peter Cohen, aborda uma das facetas pouco conhecidas do Nazismo: como um projeto de purificação do mundo político segundo critérios de moralidade e preservação dos valores da família, da ordem e do status quo, produziu a mais poderosa máquina de matar de todos os tempos.

O documentário confirma no campo empírico uma velha tese conhecida por filósofos, sociólogos e cientistas políticos: a natureza conservadora da moralidade tende a bloquear a democracia e ameaça a própria base da política ao obstruir a liberdade como o campo de construção dos direitos humanos.

A moral não pode servir de estandarte, de ideal para a política. Por mais poderosas que sejam as convicções individuais, a política deve ser o espaço de construção dos direitos para os cidadãos. Por sua vez, a palavra moral vem do latim mos ou moris e significa o costume. O plural latino, mores, é usado para designar os hábitos de cultura ou de comportamento instituídos por uma sociedade em condições históricas determinadas.

Diante disso, é possível construir uma sociedade com direitos de cidadania, baseando-se nas necessidades reais dos cidadãos, se alguns hábitos de cultura ou comportamento se colocam como superiores à própria política?

Mais importante que saber se é ou não possível, é entender como ocorre esta sobreposição da política pela moral. A principal operação, nesse processo, é tornar a moral universal. Ou seja, é promovê-la a uma lei ética e universal, válida para todos os tempos e lugares. O nazismo considerava um fundamento pétreo da ética preservar a família, a raça ariana e a cultura alemã acima de tudo. Com a crise econômica que assolou a Alemanha ao fim da Primeira Guerra Mundial, Hitler venceu as eleições brandindo essas bandeiras e em nome delas partiu para a conversão do resto do mundo.

Nesse caso, nos resta perguntar: o que é ética? Assim como moral, a palavra vem de outros dois termos estrangeiros, o grego: éthos, que significa "o caráter de alguém", e êthos, que quer dizer "o conjunto de costumes instituídos por uma sociedade para formar, regular e controlar a conduta de seus membros".

Logo, Hitler e o Partido Nazista não construíram o III Reich segundo um valor transcendental, universal e válido para todos os tempos e lugares, como imaginavam. Na verdade, o fizeram porque consideraram o seu edifício cultural, costumes e valores como melhores ou mais desenvolvidos que todos os outros. Partindo disso, consideraram seu dever ético adaptar a política segundo esses ideais, ignorando não só a política como instância mediadora de conflitos, como também a necessidade material de liberdade para os cidadãos.

Um bom exemplo mais atual dessa tendência é o cada vez mais poderoso lobby religioso na política brasileira. A religião, uma instância exclusivamente moral, tenta cada vez mais construir na Política os elementos que interpreta serem "a vontade de Deus para os homens".

A perspectiva religiosa segundo a qual o universo está em decadência devido ao problema do pecado, e que uma sociedade justa só poderá surgir sob a direção de Deus em uma outra vida, produz o mesmo tipo de ímpeto conservador da moral predominante que levou os nazistas a matar milhões de pessoas em nome da da tradição, da família, dos costumes e da raça alemã.

Obviamente, os evangélicos não estão reivindicando o direito ao assassinato para defender as suas crenças morais. Mas a elevação de uma interpretação doutrinária, específica de uma visão religiosa (ético-moral) para a condição de política pública é o mesmo princípio de exclusivismo totalitário que levou os nazistas a se proclamarem os ungidos para purificar a civilização humana.

Em 1964, semanas antes do golpe que derrubou o presidente João Goulart, várias igrejas realizaram eventos exatamente "em defesa da família", isto é, da preservação aos valores morais da sociedade. O enorme apoio popular a esse tipo de evento esvaziou qualquer resistência social ao Golpe, inclusive entre as instituições da época. Goulart, como se sabe, defendia as mesmas reformas sociais (agrária, política, sindical etc) que beneficiariam a ampla camada de trabalhadores brasileiros - pessoas que tinham interesses vitais na transformação do mundo político de então.

Como essa transformação feria os interesses dos poderosos da época, estes trataram de denunciar as reformas como um ataque moral "à tradição da família brasileira". O resultado foi o Golpe de 64 e duas décadas de ditadura, com a caça meticulosa a todos que defenderam as reformas.

Em 1977, em plena Ditadura Militar, a pressão de alguns setores da sociedade civil forçou o governo a aprovar várias leis para garantir apoio da classe média. Uma delas foi a Lei do Divórcio, que pela primeira vez na história do país dava aos separados o direito de casar-se novamente com outras pessoas. A igreja foi contra: sob o argumento de ataque à moral e à tradição, as principais ruas das maiores cidades brasileiras encheram-se de passeatas em defesa da família.

Vários eventos recentes da política brasileira mostram uma tendência crescente de subjugar políticas públicas a critérios morais, especialmente religiosos. É preciso tomar cuidado com isso. Especialmente em épocas de crise da política, as soluções mais fáceis são justamente as soluções morais. Personagens autoritários, caudilhistas, verdadeiros porta-vozes da vontade de Deus ou "dos homens de bem" surgem empunhando bastiões de espantosa moralidade que costumam impressionar os brasileiros da mesma forma que Hitler impressionou, por sua oratória e carisma pessoais, os alemães no início do fatídico Século XX.

As soluções para os problemas da política, como pobreza, desigualdade, violência etc, podem e devem ser resolvidas com política. São problemas reais que impõem tarefas práticas, ou seja, independentemente de princípios morais (eles continuarão existindo independentemente do que se acredite). Mas para isso é preciso entender que a vontade de Deus, ou qualquer outro princípio moral, tem prazo de validade, é reflexo de convicções particulares e não pode ser tomada como universal.

Um exemplo: o bullyng. Aquela violência que produz genocidas em potencial nas escolas brasileiras é o resultado de outras formas reais de violência, um ciclo interminável de sofrimento, ódio... e vingança. Qual a melhor forma de eliminar este problema, a não ser ensinando que as diferenças não devem ser temidas, que é justamente o diferente que nos enriquece?

Por outro lado, que tipo de oposição se pode oferecer a isto, a não ser uma oposição moral?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

THE VENUS PROJECT

Enquanto as cabeças de pensar, do Acre e de outros Estados amazônicos, deliram ao imaginar os benefícios da sua inclusão no capitalismo internacional quando finalmente o PT (ou outro partido qualquer) substituir as economias do contracheque público pelos cartéis bilionários que controlam governos e bolsas mundo afora, cientistas e filósofos desses exatos países - e do nosso - defendem outras formas de globalização. Entre elas, pasmem, a economia baseada em recursos naturais!

Paradoxal? Sí, pero no mucho! Em 1972, enquanto na Terra Brazilis as nossas Forças Armadas torturavam e assassinavam adolescentes idealistas cheios de espinhas perigosos comunistas em nome da família, da ordem e do progresso, as universidades do chamado Primeiro Mundo ocupavam-se da divulgação de um documento intitulado Os Limites do Crescimento. Nele, o aviso: "Utilizando modelos matemáticos, chegou-se à conclusão de que o Planeta Terra não suportaria o crescimento populacional devido à pressão gerada sobre os recursos naturais e energéticos e ao aumento da poluição, mesmo tendo em conta o avanço tecnológico."

Portanto, excetuados obviamente os deslumbrados extasiados pelos "patamares de riqueza conquistados pelo empreendedorismo do Primeiro Mundo", que defendem para hoje o desenvolvimentismo como panacéia para os males da pobreza, da criminalidade e da falta de liberdade individual, por lá é precisamente a convicção contrária que vem guiando, nas últimas quatro décadas, a busca por soluções mais eficazes e menos trágicas para melhorar a qualidade de vida dos seres humanos.

Um dos exemplos mais bem-sucedidos dessa tendência é o The Venus Project (Projeto Vênus), elaborado pelo engenheiro e inventor Jacque Fresco e que consiste basicamente na democratização dos vastos recursos hoje disponíveis segundo as necessidades das pessoas nos mais diversos países, eliminando o sistema de lucros e consequentemente o abismo entre desenvolvidos e não-desenvolvidos.

A idéia central é que uma economia baseada em recursos reduziria a tendência humana à dependência, corrupção e à ganância, que aprofundam o abismo civilizatório. Sem privações e a alienação do próprio potencial de criação engendradas pela necessidade de lucro, as pessoas seriam livres para criar e desenvolver seus projetos pessoais, ajudando, assim, no desenvolvimento de toda a comunidade.

- Uma economia baseada em recursos é um sistema onde todos os bens e serviços estão disponíveis sem o uso de dinheiro, crédito, escambo ou qualquer outro sistema de débito ou servidão. Todos os recursos tornam-se patrimônio comum de todos os habitantes, não de apenas uns poucos selecionados. A premissa sobre a qual esse sistema é baseado é a de que a Terra seja abundante em recursos; nossa prática de racionamento de recursos através de métodos monetários é irrelevante e contraprodutiva a nossa sobrevivência. A sociedade moderna tem acesso a tecnologias de ponta e pode disponibilizar comida, vestimenta, moradia e assistência médica; atualizar nosso sitema educacional; e desevolver um suprimento ilimitado de energia renovável e não-poluente. -, explica Jacque Fresco neste artigo.

Em 2003, em um artigo para a revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), escrevi que defendia para a Amazônia Legal uma economia totalmente tutelada pelo chamado "mundo civilizado". Meu argumento central era que a riqueza contrabandeadada do Brasil para a Europa a partir do século XVII foi o que permitiu a acumulação necessária para o desenvolvimento daquele continente nos séculos seguintes. Hoje, com o paradoxal risco de destruição do planeta pela intensificação desse desenvolvimento, que em seu caminho homicida dizimou milhões de índios, além de outras espécies animais e vegetais, nada seria mais justo que Estados Unidos e Europa "adotassem" o chamado pulmão do mundo, tutelando o desenvolvimento das suas populações em troca do compromisso de preservar os ecossistemas.

Ou seja: as nações hoje desenvolvidas deveriam ser forçadas a reembolsar, a fundo perdido, as nações que empobreceram. Não só pelo sofrimento excruciante que lhes proporcionaram, mas principalmente pela necessidade atual de extensas áreas de ecossistemas intactos para compensar os danos ambientais irrecuperáveis em outras partes do mundo.

Vendo idéias como a de Jacque Fresco sou forçado a repensar minhas prioridades, o que me leva a outra reflexão: é fato que a crise ecológica pode reacender o debate civilizatório, mas, como ficam as respostas a ela? Como separar o interesse coletivo de interesses que visam manipular o coletivo? E qual instância poderia defender esse sistema de valores?

Eis aí uma boa discussão para este comecinho de século XXI.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

HEGEMONIA EM DECLÍNIO E SUBVERSIVISMO NA FPA

Por Israel Souza, via e-mail

Título original: Hegemonia em declínio e subversivismo no Governo da FPA

Do mesmo autor: Eleições 2010: um olhar a partir "dos de baixo"



As urnas nos deram “um recadinho”, disse Jorge Viana recentemente, num comentário sobre o resultado das últimas eleições. A nosso ver, porém, as urnas mostraram algo mais sério: o declínio da hegemonia do Governo da Frente Popular do Acre (FPA).

Como se sabe, a FPA chega ao poder estatal quando, por força do acirramento dos conflitos sociais, os representantes políticos das oligarquias já não podiam assegurar a manutenção de seus interesses. Os “conturbados” governos de Edmundo Pinto (1991-1992), Romildo Magalhães (1992-1994) e Orleir Camely (1995-1998) davam claros sinais disso.

À testa das forças progressistas que foram gestadas durante os “anos de chumbo”, eleição após eleição, o PT foi crescendo e se consolidando como um grande partido. Bem articulado no âmbito da “sociedade civil” (grêmios estudantis, associação de moradores, sindicatos, ONGs, CEBs etc.), chegou, enfim, ao governo estadual liderando a FPA. Dessa forma, ele pôde aliar a influência que exercia sobre a “sociedade civil” com o poder estatal recém-conquistado. Contudo, contrariando a esperança daqueles anos, ele opta por fazer o que as antigas forças políticas, sozinhas, não podiam fazer. Garantiu a manutenção dos interesses das oligarquias - e de capitais estrangeiros - em condições favoráveis.

Fundamental foi a influência sobre a “sociedade civil”. Dela, o governo estimulou e cooptou vários setores. Os recalcitrantes foram isolados ou submetidos a um contínuo e ostensivo patrulhamento. Durante alguns anos, as forças governistas foram relativamente bem-sucedidas nesta empresa. É bem verdade que nunca suplantaram as resistências, nem poderiam, mas também nunca passaram susto ou aperto. Nesse sentido, o atual quadro político traz algumas novidades.

Em dias recentes, vimos o paralelismo de protestos e reivindicações na saúde, na segurança e na educação, áreas vitais das políticas de governo e que envolvem amplos segmentos do funcionalismo público. Tais mobilizações se somam a outras, como a dos movimentos do interior do estado. Estes envolvem a luta dos índios (não-apadrinhados do governo) pela demarcação de suas terras e por saúde; a luta de seringueiros e campesinos pelo apoio à produção e pela suspensão dos famigerados projetos de manejo.

Por certo, essas manifestações não são de hoje. Todavia, elas estão se tornando cada vez mais comuns e intensas. Ousamos afirmar que estamos em face de ensaios de outra “cultura política” em nosso estado. Mobilizações e protestos não apenas sem o PT, mas contra o PT. Ou, mais precisamente, contra os interesses e projetos que hoje ele encarna no governo.

É prematuro dizer se isso vai vingar e em que direção vai seguir. Afinal, trata-se de um rico e diverso conjunto de movimentos cuja “radicalidade” ou “moderação” varia caso a caso. Movimentos fragmentados, pouco articulados e sem coloração ideológica precisa. Daí a opção por chamá-lo “subversivismo”, expressão colhida em Gramsci e usada a nosso modo. Importa destacar, no entanto, que ele emerge na cena histórica com certa força, expressando e se alimentando do declínio da hegemonia da FPA. Coisas de antropofagia política. A força de uns se alimenta da fraqueza de outros.

O surgimento de canais de comunicação alternativos (sobretudo, blogs) faz parte e dá sustentação e visibilidade a esse subversivismo. Embora simples, são meios com significativa influência na sociedade. Chegam mesmo a pautar os meios de comunicação convencionais, apesar do autoritarismo governamental e do servilismo da imprensa.

A força de que hoje gozam esses meios é outra expressão daquele declínio. As pessoas que deles se servem são, em geral, formadoras de opinião. Procuram neles as notícias que a imprensa convencional não divulga. Buscam espaços para emitir opiniões e fazer denúncias.

“Uma mentira dita muitas vezes se transforma em verdade”? Sim. Mas somente onde e quando a realidade não grita, a plenos pulmões, coisa em contrário. Por isso o descrédito dos meios de comunicação convencionais no estado e, conseguintemente, a justificação cada vez mais limitada que podem dar ao governo. A quem ainda convencem as pesquisas que o governo divulga de si mesmo? Bem sabem da realidade aqueles que usam transporte coletivo, que recorrem à saúde pública, que precisam de segurança etc.

Isso não seria supervalorizar o cenário atual? Não. O que estamos fazendo é apontar para o que subjaz a ele. Um exemplo para ilustrar.

Dê o governo um aumento salarial aos militares. Não precisa ser os 117% de reposição que eles reclamam. Que seja algo modesto, desde que eles o entendam como uma vitória substantiva. Feito isso, e os militares voltam às ruas, para vigiar os movimentos com que se aliançaram e para garantir a manutenção da ordem.

O mesmo vale para os demais segmentos do funcionalismo público. Ganham aumento, e já voltam à rotina e ao corporativismo de sempre. A atuação do sindicato da educação é exemplar a esse respeito. Faz greves, como de direito, e prejudica o ano letivo. Ganha algum e volta às aulas. Mas é incapaz de apoiar efetivamente a luta dos alunos pela diminuição do preço da passagem de ônibus, preferindo agir de acordo com os ditames do governo.

Dentre outras coisas, é isso que faz com que os movimentos do interior tenham uma luta potencialmente mais emancipatória que a destes grupos. Todavia, é mister ressaltar que, em luta, tais grupos desnudam e afrontam o despotismo estatal. Em suas manifestações, da dos militares à dos estudantes, é possível ver, ao lado das reivindicações pontuais e específicas, críticas mais gerais. Estas dizem respeito à corrupção, ao autoritarismo, à privatização e à devastação da floresta, para citar apenas algumas.

A visão que manifestam sobre essas coisas não cessará com a paralisação dos protestos. E, se a estes se seguir um silêncio, isso não se traduzirá em apoio ao governo. No caso dos militares, por mais que o governo assuma uma postura humilde e generosa, a oposição continuará por força da liderança do deputado estadual que representa a categoria, ainda que em outra escala e sob outras formas. Permanecendo as coisas como estão, não há motivos para duvidar que os militares sigam sua liderança no apoio às forças oposicionistas.

A difícil relação com a Assembleia e com o Judiciário pode significar mais problemas ainda. Grosso modo, na Assembleia, o governo conta hoje com uma bancada que não inspira confiança, bancada ruim de tribuna. O presidente do Tribunal de Justiça (desembargador Adair Longuini) disse recentemente que o Executivo não contaria com o Judiciário “ajoelhado nas escadarias do Palácio do Governo”. Nada de mais, é verdade. Mas também nada de menos.

Mais que qualquer um de seus companheiros e antecessores, Tião Viana está enredado em dificuldades. Tanto em relação às estruturas estatais quanto em relação à “sociedade civil”. No intuito de reverter o resultado desfavorável das últimas eleições e garantir uma vitória na capital ano que vem, ele faz um governo do tipo pragmático: o resultado é o que importa. E a coerção é a ferramenta mais à mão nesse momento. Tragicamente para ele, o uso de tal recurso tem por efeito deixar a dominação ainda mais explícita e intolerável, o que pode inflamar ainda mais o subversivismo.

Outro fator pesa negativamente na balança: a incógnita em torno do nome de quem concorrerá à prefeitura na capital ano que vem. Tendo crescido à sombra de três figuras, a FPA não viu surgir nenhuma liderança expressiva em seu seio nos últimos anos. Ademais, o debilitamento delas (das três figuras) nas últimas eleições mostra que já vai longe o tempo em que conseguiam eleger candidatos inexpressivos até para o Senado.

Por tudo isso, sustentamos que o resultado das últimas eleições expressou uma insatisfação difusa na sociedade - presente inclusive entre certos setores dominantes descontentes com a política ambiental do governo - e que hoje alimenta o subversivismo aqui apontado. Alguns o atribuem à oposição, desconsiderando que a antiga direita não tem espírito para tanto. Em verdade, é o cansaço que cede lugar à indignação combativa.

Destarte, tal subversivismo representa o declínio da legitimidade política da FPA, ainda que um declínio relativo, isto é, reversível. E talvez represente o crepúsculo de um domínio que já conta mais de uma década. Como dito em texto anterior (Eleições 2010: um olhar a partir “dos de baixo”), o perigo é a antiga direita - que tanto ou mais que o subversivismo tem crescido com o apequenamento da legitimidade da FPA - chegar ao poder estatal como salvação para os problemas que, sabemos, não serão resolvidos “por cima”.

A falar a verdade, não cremos que Jorge Viana ache mesmo que o resultado das últimas eleições seja apenas um “recadinho das urnas”. Acreditamos que, como sempre, apenas quis aparecer de moço bom e humilde. Se ele realmente crê nisso, tanto melhor para as forças que lutam por mudanças. A poesia diz o mais.



Aurora



Ferido pelos homens,


O tempo - antes tão sábio e paciente,


Tão impávido a seguir seu rumo e ritmo -


Anda instável e demente.


Ultimamente, escurece em hora qualquer.


O calendário caducou,


Seguido pelos relógios de pulso,


De parede e biológico.






Parece aproximar-se o crepúsculo.


Em tempos assim, aos que, ansiosos,


Aguardamos a aurora, não convém


Apenas encantar-se com o


Balé das chamas.


Ou simplesmente ter o fogo ao pé de si,


De modo a aquecer-se em seu calor fraternal.


Importa deitar lenha à fogueira.


Vigiemos. E venha o que vier.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

ESFINGE

O texto a seguir é o primeiro capítulo de um dos melhores livros de filosofia que já li, Dialética do concreto, do tcheco Karel Kosik. Obra primorosa, publicada em 1963 e reeditada desde então, parece que foi escrita ontem...


A dialética trata da “coisa em si”.

Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa, com isto não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana.

A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado no mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.

No trato prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas – o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.

Todavia, a “existência real” e as formas fenomênicas da realidade – que se reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada práxis histórica, como conjunto de representações ou categorias do “pensamento comum” (que apenas por “hábito bárbaro” são consideradas conceitos) – são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com seu núcleo interno e essencial e o seu conceito correspondente. Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade.

Por este motivo Marx pôde escrever que aqueles que efetivamente determinam as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n’água, no mundo das formas fenomênicas desligadas da sua conexão interna e absolutamente incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório, nada vêem de misterioso; e seu julgamento não se escandaliza nem um pouco diante da inversão do racional e irracional. A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue. Nesta práxis se forma tanto o determinado ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e com que tem de se avir na vida cotidiana.

O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A ele pertencem:

- O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais;

- O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade);

- O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento;

- O mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens.

O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário. A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.

O mundo fenomênico tem a sua estrutura, uma ordem própria, uma legalidade própria que pode ser revelada e descrita. Mas a estrutura deste mundo fenomênico ainda não capta a relação entre o mundo fenomênico e a essência. Se a essência não se manifestasse absolutamente no mundo fenomênico, o mundo da realidade se distinguiria radical e essencialmente do mundo do fenômeno: em tal caso, o mundo da realidade seria para o homem o “outro mundo” (platonismo, cristianismo), e o único mundo ao alcance do homem seria o mundo dos fenômenos. O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto: os fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente.

Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde.Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível. No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. Por conseguinte, a diferença que separa fenômeno e essência equivale à diferença entre irreal e real, ou entre duas ordens diversas de realidade? A essência é mais real do que o fenômeno?

A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso, a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados e, em tal isolamento, sejam considerados com ao única ou “autêntica” realidade.

O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta imediatamente, primeiro e com maior freqüência.

Mas porque a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Porque são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Porque a “coisa em si” se oculta, foge à percepção imediata? De que gênero de ocultação se trata?

Tal ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido com estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O homem faz um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um modo qualquer, presssupõe a existência da verdade, porque possui uma segura consciência da existência da “coisa em si”. Por que, então, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que então, para captá-la ele tem que fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção imediata não se captar “a coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá talvez do fato de que a estrutura da coisa pertence a outra ordem de realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui outra realidade existente por trás dos fenômenos?

Como a essência – ao contrário dos fenômenos – não se manifesta imediatamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem que existir a ciência e a filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.[1]

O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As várias tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a coisa em si, o ser da coisa, não se manifesta direta e imediatamente. Neste sentido, a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente.

O conceito da coisa é a compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.[2]

O conhecimento se realiza como separação entre fenômeno e essência, do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. Neste processo, o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é elemento constitutivo do conhecimento filosófico – com efeito, sem decomposição não há conhecimento – demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação se baseia na decomposição do todo.

O próprio fato de que o pensamento se move naturalmente numa direção oposta à natureza da realidade, que isola e “mata”, e de que neste movimento natural se assenta a tendência à abstração, não constitui uma particularidade imanente do pensamento mas emana de sua função prática. Todo agir é “unilateral”,[3] já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a execução de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.

O impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos, embora para a consciência ingênua esta percepção seja muito menos evidente e muitas vezes mais imatura. O “horizonte” – obscuramente intuído – de uma “realidade indeterminada” como todo constitui o pano de fundo inevitável de cada ação e cada pensamento, embora ele seja inconsciente para a consciência ingênua.

Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis cotidiana cria “o pensamento comum” – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao homem na práxis fetichizada, no tráfico e na manipulação, não é o mundo real, embora tenha a “consistência” e a “validez” do mundo real: é “o mundo da aparência” (Marx). A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas.

A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a “cisão do único”, é o modo pelo qual o pensamento capta a “coisa em si”. A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isto, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem que destruir a aparente independência do mundo dos contatos imediatos de cada dia.

O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real;por trás da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência.[4] O que confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem que efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando seu caráter mediato e apresentando, contra sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado.

A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade.[5]

O pensamento acriticamente reflexivo[6] coloca imediatamente – e portanto sem uma análise dialética – em relação causal as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazendo passar tal forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das idéias. Como os homens tomaram consciência de seu tempo (e, portanto, já o viveram, avaliaram, criticaram e compreenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do “ceticismo pequeno-burguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise “científica” daquelas idéias ao procurar para elas um equivalente econômico, social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas uma dupla mistificação: a subversão do mundo da aparência (das idéias fixadas) tem suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria materialista deve iniciar a análise com a questão: porque os homens tomaram consciência de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos homens nestas categorias? Fazendo esta indagação, o materialista prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das idéias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a idéia.

Entretanto, a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que o mundo possa ser explicado “criticamente”, cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da “práxis” revolucionária. Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade.

O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura. O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos “reais” fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma variante naturalisticamente entendida das idéias platônicas; ao invés, é um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem.

Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.

Portanto, a destruição da pseudoconcreticidade se efetua como: 1) crítica revolucionária da práxis da humanidade, que coincide com o devenir humano do homem, com o processo de “humanização do homem” (A. Kolman), do qual as revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”; 3) realizações da verdade e a criação da realidade humana em um processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação própria, espiritual, como indivíduo social-histórico. Cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem que se formar uma cultura e viver a sua vida.

Não podemos, por conseguinte, considerar a destruição da pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o descobrimento de uma realidade que por trás dele se escondia, pronta e acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem e a redução do homem ao nível da práxis utilitária. A destruição da pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão da realidade, da sua concreticidade. As correntes idealísticas absolutizaram ora o sujeito, tratando do problema de como encarar a realidade a fim de que ela fosse concreta ou bela, ora o objeto, e supuseram que a realidade é tanto mais real quanto mais perfeitamente dela se expulsa o sujeito. Ao contrário delas, na destruição materialista da pseudoconcreticidade, a liberalização do “sujeito” (vale dizer, a visão concreta da realidade, ao invés da “intuição fetichista”) coincide com a liberalização do “objeto” (criação do ambiente humano como fato humano dotado de condições de transparente racionalidade), posto que a realidade social dos homens se cria como união dialética de sujeito e objeto.

A palavra de ordem ad fontes, que ressoa periodicamente como reação contra a pseudoconcreticidade nas suas mais variadas manifestações, assim como a regra metodológica da análise positivista – “libertar-se dos preconceitos” – encontram o seu fundamento e a sua justificação na destruição materialista da pseudoconcreticidade. Todavia, o próprio retorno “às fontes” apresenta dois aspectos completamente distintos. Sob o primeiro aspecto ele se apresenta como uma douta e humanisticamente erudita crítica das fontes, como um exame dos arquivos e das fontes antigas, das quais cumpre deduzir a realidade autêntica. Sob o aspecto mais profundo e mais significativo, que aos olhos da douta erudição se afigura barbárie (como o testemunhas as reações contra Shakespeare e Rousseau) a palavra de ordem ad fontes significa crítica da civilização e da cultura; significa tentativa – romântica ou revolucionária – de descobrir por trás dos produtos e das criações a atividade e operosidade produtiva, de encontrar “a autêntica realidade” do homem concreto por trás da realidade reificada da cultura dominante, de desvendar o autêntico objeto histórico sob as estratificações das convenções fixadas.


NOTAS

[1] “...Se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria a ciência? (Marx a Engels, carta de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e essência coincidissem diretamente.” Marx, O Capital, III, séc.VII, cap. XLVIII, III. (Tr.ital. Roma, Rinascita, 1959, III, a, Pág.228). “Para as formas fenomênicas... a diferença da relação essencial ... vale exatamente aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e para o fundamento oculto por detrás delas. As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência.” Marx, O Capital, I, seç. VI, cap. XVII. (Tr. Ital. I, 2, pág. 259).

[2] Alguns filósofos (por ex. Granger, L’ancienne et la nouvelle économie, “Esprit”, 1956, pág. 5515) atribuem apenas a Hegel o “método da abstração” e “do conceito”. Na realidade, este é o único caminho da filosofia para chegar à estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.

[3] No plano desta “unilateralidade” prática, Marx, Hegel e Goethe se colocam contra a universalidade fictícia dos românticos.

[4] O Capital, de Marx, é construído metodologicamente sobre a distinção entre falsa consciência e compreensão real da coisa, de modo que as categorias principais da compreensão da realidade investigada se apresentam aos pares: fenômeno – essência; mundo da aparência – mundo real; aparência externa dos fenômenos – lei dos fenômenos; existência positiva – núcleo interno, essencial, oculto; movimento visível – movimento real interno; representação – conceito; falsa consciência – consciência real; sistematização doutrinária das representações (“ideologia”) – teoria e ciência.

[5] “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado, as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de Walhens, L’idée phénomenologique d’intentionalité, in Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28. Esta definição de um autor não-marxista constitui um testemunho sintomático da problemática filosófica do século XX, para a qual a destruição da pseudoconcreticidade e das mais variadas formas de alienação se transformou em uma das questões essenciais. Os filósofos se distinguem, entre si, pelo modo como a resolvem, mas a problemática comum já é dada, tanto para o positivismo (a luta de Carnap e Neurath contra a metafísica real ou suposta), como também para a fenomenologia e o existencialismo.É sintomático que o sentido autêntico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do século XX só tenham sido descobertos por um filósofo de orientação marxista, cuja obra constitui a primeira tentativa séria de um confronto entre a fenomenologia e a filosofia materialista. O autor define expressivamente o caráter paradoxal e rico em contrastes da destruição fenomenológica da pseudoconcreticidade: “O mundo da aparência havia abarcado, na linguagem ordinária, todo o sentido da noção de realidade... Desde que as aparências aí se impuseram a título de mundo real, sua eliminação se apresentava como uma colocação entre parênteses deste mundo ... e a realidade autêntica à que se retornava tomava paradoxalmente a forma de irrealidade de uma consciência pura.” Tran-Duc-Thao. Phenomenologique et materialisme dialectique, Paris, 1951, págs. 223-24.

[6] Hegel assim define o pensamento reflexivo: “A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de uma para a outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a unidade que as compenetra.” Hegel, Phil. der Religion, I, pág. 126 (Werke, Vol. XI). Ver também Marx, Grundrisse, pág. 10.