sábado, 30 de abril de 2011

1º DE MAIO: UMA HISTÓRIA

Um dia de rebelião, não de descanso! Um dia não ordenado pelos indignos porta-vozes das instituições, que trazem os trabalhadores encadeados! Um dia no qual o trabalhador faça suas próprias leis e tenha o poder de executá-las! Tudo sem o consentimento nem a aprovação dos que oprimem e governam. Um dia no qual com tremenda força o exército unido dos trabalhadores se mobilize contra os que hoje dominam o destino dos povos de todas as nações.
Um día de protesto contra a opressão e a tirania, contra a ignorância e as guerras de todo tipo. Um día para começar a desfrutar de oito horas de trabalho, oito horas de descanso e oito horas para o que nos der gana.
(Panfleto que circulava em Chicago em 1885)

Da Fundação Lauro Campos



4 de maio de 1886, Praça de Haymarket, Chicago
4 de maio de 1886,
Praça de Haymarket, Chicago
A cada ano, o 1o de Maio rememora o assassinato de cinco sindicalistas norte-americanos, em 1886, numa das maiores mobilizações operárias celebradas naquele país, reivindicando a jornada laboral de oito horas.

Em julho de 1889, o I Congresso da II Internacional acordou celebrar o 1o de Maio como jornada de luta do proletariado de todo o mundo e adotou a seguinte resolução histórica: “Deve organizar-se uma grande manifestação internacional numa mesma data de tal maneira que os trabalhadores de cada um dos países e de cada uma das cidades exijam simultaneamente das autoridades públicas limitar a jornada laboral a oito horas e cumprir as demais resoluções deste Congresso Internacional de Paris”.

Como em outras partes do mundo, a situação dos trabalhadores nos Estados Unidos no final do século XIX era muito difícil. Sem embargo, emigrantes de diversos países europeus iam para lá em busca de uma melhor situação econômica. Em 1886, um escritor estrangeiro retratou Chicago assim: “Um manto abrumador de fumo; ruas cheias de gente ocupada, em rápido movimento; um grande conglomerado de vias ferroviárias, barcos e tráfico de todo tipo; una dedicação primordial ao Dólar Todo-poderoso”. Era uma cidade com um proletariado de imigrantes, arrastado pelo capitalismo para a periferia duma cidade industrial. A grande maioria dos proletários, especialmente em cidades como Chicago, eram da Alemanha, da Irlanda, da Boêmia, da França, da Polônia ou da Rússia. Ondas de operários lançados uns contra os outros, comprimidos em tugúrios e açodados por guerras étnicas. Muitos eram camponeses analfabetos, mas outros já estavam temperados pelas lutas de classes.

No inverno de 1872, um ano depois da Comuna de Paris, em Chicago, milhares de operários sem lar e famintos por causa do grande incêndio, fizeram manifestações pedindo ajuda. Muitos levavam cartazes nos quais estava inscrita a consigna “Pão ou sangue”. Receberam sangue. A repressão policial os obrigou a refugiar-se no túnel sob o rio Chicago, onde foram tiroteados e golpeados.

Em 1877, outra grande onda de greves se estendeu pelas redes ferroviárias e desatou greves gerais nos centros ferroviários, entre eles Chicago, onde as balas da polícia dispersaram as enormes concentrações de grevistas daquele ano.

Daquelas lutas nasceu uma nova direção sindical, especialmente de imigrantes alemães, conectados com a I Internacional de Marx e Engels. O proletariado alemão tinha uma contagiosa consciência de classe: aprendida, moldada por uma experiência complexa, profundamente hostil ao capitalismo mundial. Como todos os revolucionários, eram odiados, temidos e difamados ao mesmo tempo. A seu lado estava um lutador oriundo dos Estados Unidos, Albert Parsons. Assim se deu uma fusão da experiência política de dois continentes, do tumulto da Europa e do movimento contra a escravidão dos Estados Unidos. Nos agitados anos da emancipação dos escravos, Parsons fora um republicano radical que havia desafiado a sociedade texana burguesa casando-se con uma escrava mestiça liberta, Lucy Parsons, que chegou a ser uma figura política por si mesma. Albert Parsons militou muito tempo na Liga das Oito Horas, mas até dezembro de 1885 escrevera em seu jornal Alarma: “A nós, da Internacional [fazia referência à anarquista IWPACOR] nos perguntam com frequência por que não apoiamos ativamente o movimento da proposta de oito horas. Coloquemos a mão naquilo que podemos conseguir, dizem nossos amigos das oito horas, por que se pedimos demais poderíamos não receber nada. Contestamos: porque não fazemos compromissos. Ou nossa posição de que os capitalistas não têm nenhum direito à posse exclusiva dos meios de vida é verdade ou não é. Se temos razão, reconhecer que os capitalistas têm direito a oito horas de nosso trabalho é mais que um compromisso; é uma virtual concessão de que o sistema de salários é justo”. A imprensa anarquista sustentava: “Ainda que o sistema de oito horas se estabelecesse nesta tardia data, os trabalhadores assalariados... seguiriam sendo os escravos de seus amos”.

Após recuperar-se dos acontecimentos de 1877, o movimento operário se propagou como um incêndio incontrolável, especialmente quando se concentrou na demanda da jornada de oito horas.

Naquela época, havia duas grandes organizações de trabalhadores nos Estados Unidos. A Nobre Orden dos Cavalheiros do Trabalho (The Noble Orden of the Knights of Labor), majoritária, e a Federação de Grêmios Organizados e Trade-uniões (Federation of Organized Traders and Labor Union). No IV Congresso desta última, celebrado em 1884, Gabriel Edmonston apresentou uma moção sobre a duração da jornada de trabalho, que dizia: “Que a duração legal da jornada de trabalho seja de oito horas diárias a partir do 1o de Maio de 1886”. A moção foi aprovada e se converteu numa reivindicação também para outras organizações não afiliadas ao sindicato.

No 1o de Maio de 1886, os trabalhadores deviam impor a jornada de oito horas e fechar as portas de qualquer fábrica que não a aceitasse. A demanda de oito horas se transformaria, de uma reivindicação econômica dos trabalhadores contra seus patrões imediatos, na reivindicação política duma classe contra outra.

O plano recebeu uma tremenda e entusiástica acolhida. Um historiador escreve: “Foi pouco mais que um gesto que, devido às novas condições de 1886, se converteu numa ameaça revolucionária. A efervescência se estendeu por todo o país. Por exemplo, o número de membros da Nobre Ordem dos Cavalheiros do Trabalho subiu de 100.000 no verão de 1885 para 700.000 no ano seguinte”.

O movimento das oito horas recebeu um apoio tão caloroso porque a jornada de trabalho típica era de 18 horas. Os trabalhadores deviam entrar na fábrica às 5 da manhã e retornavam às 8 ou 9 da noite; assim, muitos trabalhadores não viam sua mulher e seus filhos à luz do dia. Os operários, literalmente, trabalhavam até morrer; sua vida era conformada pelo trabalho, por um pequeno descanso e pela fome. Antes que os trabalhadores como classe pudessem levantar a cabeça em direção a horizontes mais distantes, necessitavam momentos livres para pensar e formar-se.

Nas ruas, trabalhadores rebeldes cantavam:

Nós propomos refazer as coisas.
Estamos fartos de trabalhar para nada,
escassamente para viver,
jamais uma hora para pensar.

Antes da primavera de 1886 começou uma onda de greves em escala nacional. “Dois meses antes do 1o de Maio”, escreve um historiador, “ocorreram repetidos distúrbios [em Chicago] e se viam com frequência veículos cheios de policiais armados que corriam pela cidade”. O diretor do Chicago Daily News escreveu: “Se predizia uma repetição dos motins da Comuna de Paris”.

Em fevereiro de 1886, a empresa McCormick, de Chicago, despediu 1.400 trabalhadores, em represália a uma greve que os trabalhadores da empresa, dedicada a fabricar máquinas agrícolas, haviam realizado no ano anterior. Os Pinkertons, uma espécie de polícia privada empresarial, vigiavam todos os passos dos grevistas, foram contratados muitos espiões, mas a greve durou até o 1o de Maio. Ao manter-se a greve e aproximar-se a data chave que o IV Congresso havia sinalizado, ia-se associando a idéia de coordenar essas duas ações.

Nesse dia, 20.000 trabalhadores paralisaram em distintos Estados, reivindicando a jornada de oito horas de trabalho. Os trabalhadores em greve da empresa McCormick também se uniram ao protesto.

O 1o de Maio era o dia chave para exigir o novo horário; todos os comentários e expectativas estavam centralizadas naquela data, e se aproveitou mais ainda o descontentamento dos trabalhadores e a greve de Chicago.

Naquele dia os operários dos maiores complexos industriais dos Estados Unidos declararam uma greve geral. Exigiam a jornada laboral de oito horas e melhores condições de trabalho.

A imprensa burguesa reagiu contra os protestos dos trabalhadores; por exemplo, nesse mesmo dia o jornal New York Times dizia: “As greves para obrigar o cumprimento da jornada de oito horas podem fazer muito para paralisar a indústria, diminuir o comércio e frear a renascente prosperidade do país, mas não poderão lograr seu objetivo”. Outro jornal, o Philadelphia Telegram disse: “O elemento laboral foi picado por uma espécie de tarântula universal, ficou louco de remate. Pensar nestes momentos precisamente em iniciar uma greve para conquistar o sistema de oito horas...”.

Esse Primeiro de Maio de 1886 foi tão agitado como se havia prognosticado. Realizou-se uma greve geral em Wilkawee, onde a polícia matou 9 trabalhadores. Em Louisville, Filadelfia, San Luis, Baltimore e Chicago, produziram-se enfrentamentos entre policiais e trabalhadores, sendo o ato desta última cidade o de maior repercussão. Chicago, onde também estava a greve dos trabalhadores da empresa McCormick, foi o símbolo da luta e do sacrifício dos trabalhadores. Ali os acontecimentos foram especialmente trágicos. Para reprimir os grevistas, a burguesía urdiu uma provocação: em 4 de maio, na praça de Haymarket, onde se celebrava uma maciça assembléia operária, explodiu uma bomba. Era a senha para que os policiais da cidade e os soldados da guarnição local abrissem fogo contra os grevistas.

Os acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos em maio de 1886 tiveram uma imensa repercussão mundial. No ano seguinte, em muitos países os operários se declararam em greve simultaneamente, símbolo de sua unidade e fraternidade, passando por cima de fronteiras e nações, em defesa de uma mesma causa.

Como resultado da greve, os patrões fecharam as fábricas. Mais de 40.000 trabalhadores se puseram em pé de guerra. Começou una repressão maciça não só em Chicago, principal centro do movimento grevista, senão que também por todo os Estados Unidos. A burguesia desatou uma de suas típicas campanhas de propaganda de ódio contra a classe operária e os sindicatos. Aos operários, os encarceravam às centenas.

Em 21 de junho de 1886, teve início o processo contra 31 responsáveis, que logo foram reduzidos a 8.

O sistema judicial fez o resto: passou por cima de sua própria legalidade e, sem prova nenhuma de que os acusados tivessem algo a ver com a explosão em Haymarket, ditou uma sentença cruel e infame: prisão e morte.

Prisão

• Samuel Fielden, inglês, 39 anos, pastor metodista e operário têxtil, condenado à cadeia perpétua.

• Oscar Neebe, estadunidense, 36 anos, vendedor, condenado a 15 anos de trabalhos forçados.

• Michael Swabb, alemão, 33 anos, tipógrafo, condenado à cadeia perpétua.

Morte na forca
Mártires de Chicago
Mártires de Chicago: Parsons,
Engel, Spies e Fischer foram
enforcados, Lingg (ao centro)
suicidou-se na prisão.
Em 11 de novembro de 1887, consumou-se a execução de:

• Georg Engel, alemão, 50 anos, tipógrafo.

• Adolf Fischer, alemão, 30 anos, jornalista.

• Albert Parsons, estadunidense, 39 anos, jornalista, esposo da mexicana Lucy González Parsons, ainda que se tenha provado que não esteve presente no lugar, entregou-se para estar com seus companheiros e foi igualmente condenado.

• Hessois Auguste Spies, alemão, 31 anos, jornalista.

• Louis Linng, alemão, 22 anos, carpinteiro, para não ser executado suicidou-se em sua própria cela.

Aquele crime legal tinha um só objetivo: não permitir que se extendessem os protestos operários e atemorizar os operários por muito tempo. Um capitalista de Chicago reconheceu: “Não considero que essa gente seja culpada de delito algum, mas deve ser enforcada. Não temo a anarquía em absoluto, posto que se trata de um esquema utópico de uns poucos, muito poucos loucos filosofantes e, ademais, inofensivos; mas considero que o movimento operário deve ser destruído”.


Principais declarações dos processados

Albert Parsons (1845-1887):
Albert Parsons (1845-1887),
estadunidense, jornalista
“Nos Estados do sul meus inimigos eram os que exploravam os escravos negros; nos do norte, os que querem perpetuar a escravidão dos operários”.

August Spies (1855 -1887)
August Spies (1855 -1887),
alemão, jornalista
  “Neste tribunal eu falo em nome duma classe e contra outra
George Engel (1836-1887)
George Engel (1836-1887),
alemão, tipógrafo
“Todos os trabalhadores devem preparar-se para uma última guerra que porá fim a todas as guerras”.
Adolph Fischer (1858 -1887)
Adolph Fischer (1858-1887),
alemão, jornalista
“Sei que é impossível convencer os que mentem por oficio: os mercenários diretores da imprensa capitalista, que cobram por suas mentiras”.
Luis Lingg (1864-1887)
Luis Lingg (1864-1887),
alemão, carpinteiro
“Os Estados Unidos são um país de tirania capitalista e do mais cruel despotismo policialesco”.
Michael Schwab (1853 -1898)
Michael Schwab (1853-1898),
alemão, tipógrafo
"Milhões de trabalhadores passam fome e vivem como vagabundos. Inclusive os mais ignorantes escravos do salário se põem a pensar. Sua desgraça comum os move a compreender que necessitam unir-se e o fazem".
Samuel Fielden (1847-1922)
Samuel Fielden (1847-1922),
inglês, pastor metodista e
operário têxtil
“Os operários nada podem esperar da legislação. A lei é somente um biombo para aqueles que os escravizam”.
Óscar Neebe (1850-1916)
Óscar Neebe (1850-1916),
estadunidense, vendedor
“Fiz o quanto pude para fundar a Central Operária e engrossar suas fileiras; agora é a melhor organização operária de Chicago; tem 10.000 afiliados. É o que posso dizer de minha vida operária”.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE

Por Emir Sader, na Carta Maior

Esse é o lema predominante no capitalismo contemporâneo. Universalizado a partir da Europa ocidental, o capitalismo desqualificou a todas outras civilizações como ‘bárbaras”. A ponto que, como denuncia em um livro fundamental, Orientalismo, Edward Said, o Ocidente forjou uma noção de Oriente, que amalgama tudo o que não é Ocidente: mundo árabe, japonês, chinês, indiano, africano, etc. etc. Fizeram Ocidente sinônimo de civilização e Oriente, o resto, idêntico a barbárie.

No cinema, na literatura, nos discursos, civilização é identificada com a civilização da Europa ocidental – a que se acrescentou a dos EUA posteriormente. Brancos, cristãos, anglo-saxões, protestantes – sinônimo de civilizados. Foram o eixo da colonização da periferia, a quem queriam trazer sua “civilização”. Foram colonizadores e imperialistas.

Os EUA se encarregaram de globalizar a visão racista do mundo, através de Hollywood. Os filmes de far west contavam como gesto de civilização as campanhas de extermínio das populações nativas nos EUA, em que o cow boy era chamado de “mocinho” e, automaticamente, os indígenas eram “bandidos, gestos que tiveram em John Wayne o “americano indômito”, na realidade a expressão do massacre das populações originárias.

Os filmes de guerra foram sempre contra outras etnias: asiáticos, árabes, negros, latinos. O país que protagonizou o mais massacre do século passado – a Alemanha nazista -, com o holocausto de judeus, comunistas, ciganos, foi sempre poupada pelos nortemamericanos, porque são iguais a eles – brancos, anglo-saxões, capitalistas, protestantes. O único grande filme sobre o nazismo foi feito pelo britânico Charles Chaplin – O grande ditador -, que teve que sair dos EUA antes mesmo do filme estrear, pelo clima insuportável que criaram contra ele.

Os países que supostamente encarnavam a “civilização” se engalfinharam nas duas guerras mundiais do século XX, pela repartição das colônias – do mundo bárbaro – entre si, em selvagens guerras interimperialistas.

Essa ideologia foi importada pela direita paulista, aquela que se expressou no “A questão social é questão de polícia”, do Washington Luis – como o FHC, carioca importado pela elite paulista -, derrubada pelo Getúlio e que passou a representar o anti-getulismo na politica brasileira. Tentaram retomar o poder em 1932 – como bem caracterizou o Lula, nada de revolução, um golpe, uma tentativa de contrarrevolução -, perderam e foram sucessivamente derrotados nas eleições de 1945, 1950, 1955. Quando ganharam, foi apelando para uma figura caricata de moralista, Jânio, que não durou meses na presidência.

Aí apelaram aos militares, para implantar sua civilização ao resto do país, a ferro e fogo. Foi o governo por excelência dessa elite. Paz sem povo – como o Serra prometia no campo: paz sem o MST.

Veio a redemocratização e essa direita se travestiu de neoliberal, de apologista da civilização do mercado, aquela em que, quem tem dinheiro tem acesso a bens, quem não tem, fica excluído. O reino do direito contra os direitos para todos.

Essa elite paulista nunca digeriu Getúlio, os direitos dos trabalhadores e seus sindicatos, se considerava a locomotiva do país, que arrastava vagões preguiçosos – como era a ideologia de 1932. Os trabalhadores nordestinos, expulsados dos seus estados pelo domínio dos latifundiários e dos coronéis, foi para construir a riqueza de São Paulo. Humilhados e ofendidos, aqueles “cabeças chatas” foram os heróis do progresso da industrialização paulista. Mas foram sempre discriminados, ridicularizados, excluídos, marginalizados.

Essa “raça” inferior a que aludiu Jorge Bornhausen, são os pobres, os negros, os nordestinos, os indígenas, como na Europa “civilizada” são os trabalhadores imigrantes. Massa que quando fica subordinada a eles, é explorada brutalmente, tornava invisível socialmente.

Mas quando se revela, elege e reelege seus lideres, se liberta dos coronéis, conquista direitos, com o avança da democratização – ai são diabolizadas, espezinhadas, tornadas culpadas pela derrota das elites brancas. Como agora, quando a candidatura da elite supostamente civilizada apelou para as explorações mais obscurantistas, para tentar recuperar o governo, que o povo tomou das suas mãos e entregou para lideres populares.

É que eles são a barbárie. São os que chegaram a estas terras jorrando sangue mediante a exploração das nossas riquezas, a escravidão e o extermínio das populações indígenas. Civilizados são os que governam para todos, que buscam convencer as pessoas com argumentos e propostas, que garantem os direitos de todos, que praticam a democracia. São os que estão construindo uma democracia com alma social – que o Brasil nunca tinha tido nas mãos desses supostos defensores da civilização.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

COMEÇAR DO COMEÇO DE NOVO


De Slavoj Žižek, via Blog da Boitempo

Existe uma anedota (apócrifa, é verdade) sobre a troca de telegramas entre quartéis generais alemães e austríacos durante a Primeira Guerra Mundial: os alemães mandam uma mensagem: “aqui, de nosso lado do front, a situação é séria, mas não catastrófica”, a que respondem os austríacos: “aqui, a situação é catastrófica, mas não séria”. Não seria esta a maneira como nós, cada vez mais, ao menos no mundo desenvolvido, nos relacionamos com nossa situação global? Todos nós sabemos sobre a catástrofe iminente – ecológica, social –, mas de alguma forma não podemos levá-la a sério. Em psicanálise chamamos esta atitude de virada fetichista: Eu sei muito bem, mas… (eu não acredito realmente), e tal virada é a clara indicação da força material da ideologia, que nos faz recusar aquilo que vemos e que sabemos. Como chegamos até aqui?

Quando, em 1922, depois de vencer a Guerra Civil contra todos os adversários, os bolcheviques tiveram de retroceder para a NEP (a “Nova Política Econômica” que permitiu uma interferência muito maior da economia de mercado e da propriedade privada), Lenin escreveu um pequeno texto “On Ascending a High mountain” [Escalando uma montanha]. Ele usa o símile de um escalador que tem de recuar ao pé da montanha para empreender uma nova tentativa de atingir o pico, para descrever o que um retrocesso significa num processo revolucionário, i.e., como alguém pode retroceder sem oportunisticamente trair sua fidelidade à Causa. Depois de enumerar os sucessos e fracassos do estado Soviético, Lenin conclui: “Comunistas que não têm ilusões, que não se rendem ao desânimo, e que preservam a força e a flexibilidade ‘para começar desde o começo’ de novo e de novo, frente a uma tarefa extremamente difícil, não estão fadados ao erro (e muito provavelmente não perecerão).” Este é Lenin em seu melhor estilo Beckettiano, ecoando o sentido de Worstward Ho: “Tente novamente. Fracasse novamente. Fracasse melhor” [Try again. Fail again. Fail better]. Sua conclusão – começar do começo de novo e de novo – deixa claro que ele não está falando de desacelerar o progresso e fortalecer o que já se conquistou, mas precisamente descer novamente ao ponto inicial: devemos “começar do começo” e não de onde conseguimos chegar no primeiro esforço da escalada. Em termos kierkegaardianos, um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, o movimento de repetir o começo de novo e de novo… e aqui é exatamente onde estamos hoje, depois do “desastre obscuro” de 1989, o fim definitivo da época que começou com a Revolução de Outubro. Devemos, portanto, rejeitar a continuidade com aquilo que a Esquerda significou nos últimos dois séculos. Embora momentos sublimes como o clímax jacobino da Revolução Francesa e a Revolução de Outubro permanecerão para sempre um momento chave de nossas memórias, essas histórias chegaram ao fim, tudo deve ser re-pensado, devemos começar do ponto-zero.

Alain Badiou descreveu três formas distintas de fracasso para um movimento revolucionário. Primeiro, existe, é claro, a derrota direta: alguém é simplesmente esmagado pelas forças inimigas. Depois existe a derrota na própria vitória: alguém vence o inimigo (temporariamente, pelo menos) pela incorporação da principal agenda política do inimigo (o objetivo é tomar o poder estatal, na forma democrático-parlamentar ou numa direta identificação do Partido com o Estado). Acima destas duas versões existe, talvez, a mais autêntica, mas também mais aterrorizadora forma de fracasso: guiado pelo instinto correto que diz que qualquer consolidação da revolução num novo poder estatal é igual à sua traição, porém incapaz de inventar e impor sobre a realidade social uma verdadeira ordem alternativa, o movimento revolucionário se engaja numa estratégia desesperada de proteger sua pureza pelo recurso “ultra-esquerdista” de terror destrutivo. Badiou habilmente chama esta última versão de “tentação sacrificial do vazio” [sacrificial temptation of the void].

Um dos maiores slogans maoístas dos anos vermelhos era: “ouse lutar, ouse vencer”. Mas sabemos que, se não é fácil seguir este slogan, se a subjetividade tem medo não tanto de lutar, mas de vencer, é porque lutar a expõe ao simples fracasso (o ataque não foi bem sucedido), enquanto vencer a expõe ao mais temível dos fracassos: a consciência de que se venceu em vão, que a vitória prepara repetição, restauração. Que uma revolução nunca é algo além de um “entre-dois-Estados”. É daqui que a tentação sacrificial do vazio aparece. O inimigo mais temível das políticas de emancipação não é a repressão pela ordem estabelecida. É a interioridade do niilismo, e a crueldade sem limites que pode acompanhar este vazio.”

O que Badiou diz efetivamente aqui é o exato oposto do “Ouse vencer!” de Mao – deve-se ter medo de vencer (de tomar o poder, estabelecer uma nova realidade sociopolítica), porque a lição do século XX é que ou a vitória termina em restauração (retorno à lógica de poder do Estado) ou é capturada pelo ciclo auto-destrutivo da purificação. É por isso que Badiou propõe substituir purificação por subtração: em vez de “vencer” (tomar o poder) devemos criar espaços subtraídos do Estado. Ele não está sozinho. Um medo ronda a (o que quer que reste da) esquerda radical de hoje: o medo de confrontar-se diretamente com o Poder de Estado. Aqueles que ainda insistem em lutar contra o Poder estatal, deixado sozinho no comando, são imediatamente acusados de ainda estarem presos ao “velho paradigma”: a tarefa de hoje é resistir ao Poder estatal recuando de sua esfera de atuação, subtraindo-se dele, criando novos espaços fora de seu controle. Este dogma da esquerda contemporânea é melhor capturado pelo título do novo livro-entrevista de Tony Negri: Adeus, Senhor Socialismo!. A idéia é que a época da velha esquerda em suas duas versões, reformista e revolucionária, ambas as quais pretendiam tomar o poder do Estado e proteger os direitos coorporativos da classe trabalhadora, acabou.

Mas esta análise se sustenta? A primeira coisa a fazer é empreender uma fórmula mais complexa do Partido-Estado como a figura que definiu o Comunismo do século XX: sempre houve uma lacuna entre os dois, o Partido permaneceu a semi-escondida sombra obscena que remontava à estrutura do Estado. Não há necessidade de demandar uma nova distância políticaem relação ao Estado: o Partido É esta distância, sua organização dá corpo a uma forma fundamental de desconfiança do Estado, dos seus órgãos e mecanismos, como se precisassem ser controlados, mantidos sob vigilância a todo tempo. Um verdadeiro Comunista do século XX jamais aceitou completamente o Estado: sempre teve de haver uma agência vigilante fora do controle das leis (do Estado) e com poder de intervir no Estado.

Segundo ponto. 1989 representou não apenas a derrota conjuntural do socialismo de estado e das sociais-democracias ocidentais – a derrota vai muito mais fundo. O raciocínio da Esquerda após 1989 era: a estratégia de tomar o poder falhou miseravelmente em seus objetivos, de modo que a Esquerda deveria adotar uma estratégia diferente, a primeira vista mais modesta, mas, de fato, muito mais radical: recuar do poder estatal e concentrar-se em transformar diretamente a própria textura da vida social, as práticas cotidianas que sustentam todo o edifício social. Esta posição teve a forma mais elaborada com John Holloway: “como fazer uma revolução sem tomar o poder?”. A principal forma de democracia direta de multidões “expressivas” no século XX foram os chamados conselhos (“sovietes”) – (quase) todo mundo no Ocidente os amava, até mesmo liberais como Hannah Arendt que percebia neles um eco da velha vida grega na pólis. Ao longo da era do Socialismo Realmente Existente, a esperança secreta dos “socialistas democráticos” era a democracia direta dos “sovietes”, os conselhos locais como formas de auto-organização do povo; e é profundamente sintomático como, com o declínio do Socialismo Realmente Existente, essa sombra emancipatória que rondava a todo o momento também desapareceu – não será esta a maior confirmação do fato que a versão-conselho do “socialismo democrático” era apenas um duplo espectral do “burocrático” Socialismo Realmente Existente, a transgressão inerente sem substancial conteúdo positivo propriamente seu, i.e., incapaz de servir como o princípio organizador e permanente de uma sociedade? O que tanto Socialismo Realmente Existente como a democracia-de-conselhos tem em comum é a crença na possibilidade de uma organização auto-transparente da sociedade que superasse a “alienação” política (aparelhos estatais, regras institucionalizadas da vida política, ordem jurídica, polícia etc.) – e não seria a experiência básica do fim do Socialismo Realmente Existente precisamente a rejeição desta característica comum, a resignada aceitação pós-moderna do fato de que a sociedade é uma rede complexa de “subsistemas”, razão pela qual um certo nível de “alienação” é constitutivo da vida social, de forma que uma sociedade totalmente autotransparente é a utopia com potenciais totalitários. Não a toa que o mesmo vale para as práticas contemporâneas de “democracia direta”, das favelas a cultura digital “pós-industrial” (as descrições das novas comunidades “tribais” de hackers não evocam freqüentemente a lógica da democracia-de-conselhos?): todas tem de apoiar num aparelho de estado, i.e, por razões estruturais, elas não podem dominar todo o espaço. A máxima de Negri “não há governo sem movimentos” deve ser contestada com “não há movimentos sem governo”, sem o poder estatal que sustente o espaço para os movimentos. É esta tensão entre democracia representativa e direta expressão dos “movimentos” que nos permite formular a diferença entre um partido político democrático comum e o Partido “mais forte” (como o Partido Comunista): um partido político comum assume plenamente sua função representativa, toda sua legitimação é dada pelas eleições, enquanto o Partido considera secundário o procedimento formal das eleições democráticas em relação à dinâmica propriamente política dos movimentos que “expressam” sua força.

***

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e Em defesa das causas perdidas (2011). O filósofo virá ao Brasil no fim de maio para apresentar conferência em São Paulo (no Seminário do Projeto Revoluções) e no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

ENTREVISTA COM HITLER

Entrevista conduzida por George Sylvester Viereck, publicada no jornal Liberty, de 9 de julho de 1932 e republicada no livro: ALTMAN, Fábio (org.) A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. São Paulo: Scritta, 1995.


Adolf Hitler (1889-1945), o ditador alemão, nasceu na Áustria, filho de um oficial de alfândega. Ainda estudante, sonhava em se tornar arquiteto ou artista - mas seu insucesso acadêmico o levou à política. Com a guerra mundial deflagrada, ele se alistou no Exército da Bavária. Condecorado por heroísmo, Hitler terminou os combates na condição de inválido: atingido por um ataque de gás, perdeu parte de sua visão. Frustrado com a derrota bélica, atribuída por ele aos judeus e aos socialistas, fundou o Partido Alemão Nacional-Socialista dos Trabalhadores.

Em 1923, ele participou do putsch da cervejaria, numa tentativa de golpe de Estado contra o governo republicano da Bavária. Encarcerado durante nove meses, Hitler aproveitou esse período para ditar seu credo político, o Mein Kampf (Minha Luta), para Rudolf Hess. Depois de sua liberação, ele começou a atrair o interesse popular para as idéias nazistas, manipulando a paranóia anti-semita, utilizando recursos de propaganda e construindo uma coalizão de trabalhadores, empresários e senhores do campo.

Em 1933, um ano depois de ter sido derrotado nas eleições presidenciais, foi nomeado chanceler da Alemanha. Novas eleições gerais foram convocadas e o partido de Hitler chegou ao poder. Hitler se suicidou com sua amante, Eva Braun em 1945, quando as tropas russas se preparavam para invadir seu bunker em Berlim.

George Sylvester Viereck já havia entrevistado Adolf Hitler em 1923, quando ele ainda era um obscuro personagem da vida política européia. Naquela oportunidade, Viereck anotou: "Este homem, se sobreviver, fará história, para o bem ou para o mal" .

* * *

Quando eu dominar a Alemanha, vou colocar um fim ao bolchevismo em nosso país e às homenagens a ele no exterior." Adolf Hitler bebeu todo o conteúdo da xícara como se não fosse chá, mas o sangue dos bolcheviques.

"O bolchevismo", continuou o chefe dos camisas-marrons, dos fascistas ale­mães, olhando-me ameaçador, “é a nossa grande ameaça. Quando o bolchevismo na Alemanha estiver morto, setenta milhões de pessoas voltarão ao poder. A França deve toda a força que tem não aos seus exércitos, mas às forças do bolchevismo e a dissensão entre nós."

"O Tratado de Versalhes e o Tratado de Saint Germain sobrevivem graças ao bolchevismo na Alemanha. O Tratado de Paz e o bolchevismo são duas cabeças do mesmo monstro. Temos que decapitá-las."

Quando Adolf Hitler anunciou esse programa, o advento do Terceiro Reich que ele proclamou ainda parecia distante. Com o tempo, o poder de Hitler foi crescendo a cada eleição. Embora incapaz de tirar Hindenburg da presidência, Hitler, no momento, lidera o maior partido da Alemanha. A não ser que Hindenburg instaure medidas ditatoriais ou que os acontecimentos tomem um rumo inesperado e frustrem todas as atuais previsões, o partido de Hitler irá conquistar o Reichstag e dominar o governo. Hitler não lutou contra Hindenburg mas contra o chanceler Bruening. Será difícil para o sucessor de Bruening manter-se no poder sem o apoio dos nacional-socialistas.

Muitos dos que votaram em Hindenburg estavam, no íntimo, do lado de Hitler, mas um senso de lealdade arraigado impeliu-os, entretanto, a votar no velho marechal-de-campo. A não ser que um novo líder apareça do dia para a noite, não há ninguém na Alemanha, com exceção de Hindenburg, capaz de derrotar Hitler - e Hindenburg tem 85 anos! Só o tempo, a.obstinação da luta francesa contra Hitler, algum erro cometido por ele próprio ou uma dissensão nas fileiras do partido pode privá-lo da oportunidade de desempenhar o papel de Mussolini da Alemanha.

O Primeiro Império alemão chegou ao fim quando Napoleão forçou o imperador austríaco a renunciar à coroa imperial. O Segundo Império terminou quando Guilherme II, a conselho de Hindenburg, procurou refúgio na Holanda. O Terceiro Império está emergindo aos poucos mas com firmeza, embora talvez dispense cetros e coroas.

Encontrei Hitler não em seu quartel-general, a Casa Marrom em Munique, mas no seu próprio lar - a residência de um almirante reformado da Marinha alemã. Discutimos o destino da Alemanha bebendo chá.

Por que o senhor se diz um nacional-socialista, já que o programa do seu partido é a própria antítese do que geralmente se acredita ser o socialismo?

O socialismo - replicou ele agressivo, deixando de lado a xícara de chá - é a ciência de lidar com o bem-estar geral. O comunismo não é o socialismo. O marxismo não é o socialismo. Os marxistas roubaram o termo e confundiram seu significado. Vou tirar o socialismo dos socialistas. O socialismo é uma antiga instituição ariana e alemã. Nossos ancestrais alemães tinham algumas terras em comum. Cultivavam a idéia do bem-estar geral. O marxismo não tem direito de se disfarçar de socialismo. O socialismo, diferentemente do marxismo, não repudia a propriedade privada. Diferentemente do marxismo, ele não envolve a negação da personalidade e é patriótico. Poderíamos ter chamado nosso partido de Partido Liberal. Preferimos chamá-lo de Nacional-Socialista. Não somos internacionalistas. Nosso socialismo é nacional. Exigimos o atendimento das justas reivindicações das classes produtivas pelo Estado com base na solidariedade racial. Para nós, o Estado e a raça são um só.

O próprio Hitler não é um alemão puro. Os cabelos escuros denunciam a presença de algum ancestral alpino. Durante anos, ele se recusou a ser fotografado. Era parte de sua estratégia - ser conhecido apenas pelos amigos para que, em um momento de crise, pudesse aparecer em qualquer lugar sem ser descoberto. Hoje em dia, ele não poderia mais passar despercebido pela mais obscura das aldeias da Alemanha. Sua aparência cria um contraste estranho com a agressividade de suas opiniões. Nenhum outro reformista de maneiras tão suaves afundou um navio do Estado ou cortou gargantas na política.

Quais são os princípios fundamentais da sua plataforma?

Acreditamos em uma mente sã em um corpo são. A nação tem que ser sadia para que a alma também o seja. Saúde moral e física são sinônimos.

Mussolini, interrompi eu, disse-me a mesma coisa. Hitler sorriu.

Os bairros miseráveis, acrescentou, são responsáveis por nove décimos, e o álcool por um décimo, de toda a depravação humana. Nenhum homem saudável é marxista. Os homens saudáveis reconhecem o valor da personalidade. Lutamos contra as forças da desgraça e da degeneração. Se fizermos uma comparação, a Bavária é saudável porque não está completamente industrializada. No entanto toda a Alemanha, incluindo a Bavária, está condenada à industrialização intensiva pelo tamanho reduzido do nosso território. Se quisermos salvar a Alemanha, temos que nos assegurar de que os fazendeiros continuem fiéis à terra. Para tanto, eles precisam ter espaço para respirar e para trabalhar.

Onde o senhor encontrará espaço para trabalhar?

Precisamos manter nossas colônias e expandir em direção ao leste. Houve um tempo em que podíamos dividir o domínio do mundo com a Inglaterra. Agora, só podemos expandir-nos em direção ao leste. O Báltico é necessariamente um lago alemão.

A Alemanha não poderia reconquistar o mundo do ponto de vista econômico sem expandir seu território?

Hitler moveu a cabeça, negando com veemência - O imperialismo econômico, assim como o imperialismo militar, depende de poder. Não pode haver comércio mundial em larga escala sem poder mundial. Nosso povo não aprendeu a pensar em termos de poder e comércio mundiais. Entretanto a Alemanha não pode expandir o seu comércio e o seu território até reconquistar o que perdeu e encontrar-se. Estamos na mesma situação de um homem que perde a casa em um incêndio. Ele precisa ter um teto antes de entregar-se a planos mais ambiciosos. Conseguimos criar um abrigo de emergência que nos mantinha protegidos da chuva. Não estávamos preparados para o granizo. Entretanto, infortúnios caíram sobre nós. A Alemanha vive sob uma verdadeira tempestade de catástrofes nacionais, morais e econômicas. Nosso sistema partidário desmoralizado é um sintoma da nossa desgraça. As maiorias parlamentares flutuam ao sabor do vento. O governo parlamentarista abre as portas para o bolchevismo."

O senhor não é a favor de uma aliança com a União Soviética como alguns militares são, não é verdade?

Hitler esquivou-se de uma resposta direta a essa pergunta. Há pouco tempo, ele esquivou-se outra vez quando o “Liberty” pediu que respondesse à declaração de Trotski de que a tomada do poder por Hitler na Alemanha envolveria uma batalha de vida ou morte entre a Europa, liderada pela Alemanha, e a Rússia Soviética. Hitler talvez não tenha interesse em atacar o bolchevismo na Rússia. Talvez ele até mesmo considere uma aliança com o bolchevismo como a última cartada se estiver perdendo o jogo. Se, como ele insinuou certa vez, o capitalismo recusar-se a reconhecer que os nacionais-socialistas são a última trincheira da propriedade privada, se o capital impedir a luta deles, a Alemanha pode ser obrigada a jogar-se nos braços tentadores da Rússia Soviética. Mas ele está determinado a não permitir que o bolchevismo se estabeleça na Alemanha. No passado, ele respondeu com cuidado às tentativas de negociação do chanceler Bruening e de outros que desejavam formar uma frente política unida. Não é provável que o mesmo ocorra no momento, em vista do crescimento constante aos votos dos nacional-socialistas. Hitler estará propenso a fazer acordos sobre quaisquer princípios básicos com outros partidos.

As alianças políticas das quais depende uma frente unida são muito instáveis. Elas tomam quase impossível uma política claramente defi­nida. Vejo, por toda a parte, o caminho tortuoso dos acordos e concessões. Nossas forças construtivas são detidas pela tirania dos números. Cometemos o erro de aplicar a aritmética e a mecânica do mundo econômico ao modo de vida. Somos ameaçados pelo constante crescimento dos números e abandono dos ide­ais. Meros números não têm importância.

Mas vamos supor que a França faça retaliações contra o senhor, invadindo suas terras mais uma vez? Ela já invadiu o Ruhr. Poderia invadi-lo de novo.

Não importa - respondeu Hitler, exaltado - quantos quilômetros quadrados o inimigo pode ocupar se o espírito nacional estiver vigilante? Dez milhões de alemães livres, prontos para morrer para que o país sobreviva, são mais fortes do que cinqüenta milhões cuja força de vontade está paralisada e cuja consciência de raça está infectada por estrangeiros. Queremos uma Alemanha maior, que una todas as tribos germânicas. Mas a nossa salvação pode começar em uma pequena região. Mesmo se tivéssemos apenas dez acres de terra mas estivéssemos determinados a defende-los com nossas próprias vidas, os dez acres iriam se tornar o foco da regeneração. Nossos trabalhadores têm duas almas: uma é alemã e a outra é marxista. Temos que acordar a alma alemã. Temos que extirpar o tumor do marxismo. O marxismo e o germanismo são antíteses. Nos meus planos para o Estado alemão, não haverá lugar para os estrangeiros, os perdulários, os usurários, os especuladores ou qualquer um que não seja capaz de fazer um trabalho produtivo.

Hitler franziu o cenho ameaçador. Sua voz dominou a sala. Ouvimos um barulho na porta. Seus seguidores, que estão sempre por perto como guarda-costas, lembraram ao líder o seu compromisso de falar em uma reunião. Hitler bebeu o chá às pressas e levantou-se.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A ORIGEM DA DIREITA

Na política a direita não se contrapõe à esquerda, como pensa o senso comum. O isolamento do indivíduo como o único determinante da sua própria natureza é um argumento ideológico, utilizado de duas formas: na política, como muleta para governos que promovem a perda dos direitos básicos dos trabalhadores via desregulamentação, e na economia, como instrumento teórico para camuflar a exploração pelo enriquecimento via acumulação de trabalho alheio.


Nesta entrevista ao jornal francês L'Humanité, o sociólogo Domenico Losurdo explica como essa opção política se expandiu falsificando o argumento da "liberdade do indivíduo".

A tradução em português de Portugal é do site Resistir.info.


A relação com o liberalismo é ou deveria ser efectivamente a clivagem estruturante da esquerda francesa e europeia?

Domenico Losurdo - Em 1948, a Declaração dos Direitos do Homem estabelecida pela Organização das Nações Unidas reconhecia direitos económicos e sociais (direito à educação, direito à livre escolha do seu trabalho e à protecção contra o desemprego, etc...)

Isto a que assistimos actualmente, nomeadamente na Europa, é precisamente o desmantelamento das realizações concretas correspondentes a estes direitos (Segurança Social, sistema de aposentadoria, etc...)

Este desmantelamento é acompanhado pela própria negação, no plano teórico, do valor destes direitos. É este duplo fenómeno que se pode caracterizar como contra-revolução neoliberal. Para responder com eficácia, parece-me necessário colocarmo-nos numa perspectiva histórica.

Esta permite compreender que os direitos do homem jamais se desenvolveram em virtude de uma dinâmica interna do liberalismo, que teria sido impedido, por razões conjunturais, de instalar na esfera económica uma lógica de direita que teria em contrapartida conseguido impor na esfera política contra os diversos conservadorismos, nomeadamente religiosos.

Esta visão linear da história é absolutamente falsa. Na verdade, o liberalismo, para além da diversidade das suas sensibilidades, tem tido tendência a recuperar para seu crédito direitos que as burguesias simplesmente tiveram de reconhecer na guerra de classe, no século passado, no contexto da guerra fria.

Nos anos 70, Friedrich A. Hayek, então inspirador da política económica da administração Reagan, falava dos direitos económicos e sociais como uma invenção ruinosa da revolução bolchevique russa. Ele não raciocinava em termos de compatibilidade ou não destes direitos com os meios financeiros do Estado. Ele, ao contrário, atacava os direitos em causa nas suas raízes, sobre a sua própria legitimidade. Hoje, vê-se triunfar a posição de Hayek, mas num contexto onde não há mais o desafio do mundo socialista. Isto não significa que seja preciso rever em baixa as ambições sociais. Ao contrário.

O liberalismo defende a liberdade?

DL - Os pais fundadores desta corrente de ideias justificavam a escravidão. O filósofo inglês Locke estava mesmo implicado pessoalmente como accionista da sociedade que geria o tráfico de escravos.

Se tomarmos os dois países mais representativos da tradição liberal, a saber, a Inglaterra e os Estados Unidos, vemos que estes são igualmente os países mais implicados no plano histórico na tragédia da escravidão dos negros. Os Estados Unidos não aboliram a escravidão dos negros senão em 1865. E mesmo depois, os negros ali não desfrutaram da liberdade. Foi só em meados do século XX que eles adquiriram direitos políticos.

A ultrapassagem da discriminação racial, da discriminação contra as mulheres, ou da discriminação censitária não são portanto os frutos do liberalismo, são ao contrário as aquisições, ainda que precárias e incompletas, das grandes lutas populares do movimento socialista e comunista.

O liberalismo não pode reivindicar nenhuma contribuição própria para a democracia política?

DL - Pode-se reconhecer ao liberalismo, nomeadamente àquele de Montesquieu, o mérito de ter colocado a questão da limitação e da separação dos poderes. O marxismo histórico frequentemente escamoteou o problema, preferindo evocar directamente a desaparecimento total do Estado.

O encerramento nesta perspectiva utópica veio agravar as dificuldades para a construção de um Estado socialista democrático. Mas não é a partir de um liberalismo qualquer que se pode verdadeiramente criticar o marxismo sobre este ponto. Pois o liberalismo é na realidade muito ambíguo.

Por um lado, ele reivindica efectivamente a limitação dos poderes; mas por outro celebra o poder absoluto sobre os escravos e os povos coloniais. John Stuart Mill, considerado como um dos liberais mais progressistas, considerava no seu tempo que certas "raças menores" – é a expressão que ele emprega – são obrigadas a uma "obediência absoluta" aos mestres do Ocidente. Não é pois a proclamar-se liberal que a esquerda em crise pode recomprar uma consciência anti-totalitária, se é que ela a procura. Ao contrário, isso não faz senão aumentar a confusão.

Um verdadeiro debate deve ao contrário iniciar-se sobre a questão do Estado e da democracia. Considerando o peso crescente do dinheiro e da riqueza nas eleições nos Estados Unidos, Arthur Schlesinger Jr., um ilustre historiador americano, considerava que se assistia de facto à reintrodução da discriminação censitária.

Como evitar esta regressão e a perda dos direitos políticos já adquiridos? A questão decisiva é saber qual conteúdo se pretende dar à democracia: é apenas a consagração das relações arbitrárias na sociedade e nomeadamente na empresa, mas igualmente entre as nações? Ou antes trata-se do processo de reconhecimento político dos direitos conquistados e do seu desenvolvimento em e por lutas sociais?

Os tenores da esquerda que se reclamam do liberalismo de facto insistem frequentemente no que parece sobretudo um liberalismo dos costumes, que se pode com efeito defender em nome do progresso humano...

DL -
A vontade de defender as liberdades individuais é evidentemente legítima. O que apresenta problema é o modo de encarar a questão. Tem-se a impressão de que a esquerda teria de escavar alhures e não no seu próprio corpus ideológico para pensar os direitos do indivíduo, sua emancipação.

Penso ao contrário que se trata de desenvolver ainda mais este corpus, aprofundá-lo. Quando em geral se fala de Marx e do marxismo, considera-se, mais ou menos explicitamente, que eles teriam insistido na igualdade, não na liberdade. Trata-se de um preconceito. O Manifesto do Partido Comunista, de que festejamos este ano o 160º aniversário, fala da luta para suprimir "o despotismo na fábrica". A luta das classes encarada por Marx não é suposta limitar-se a objectivos materiais. É uma luta pela liberdade.

Dissociar as questões societais das questões sociais, o plano político e cultural do plano económico, equivale mesmo a negar o pensamento burguês mais avançado. Antes de Marx, Hegel explicava num texto célebre de "A filosofia do direito" que um homem que se arrisca a morrer de fome encontra-se numa condição de ausência absoluta de direito, ou seja, na condição de um escravo. Quando a desigualdade material atinge um certo grau, ela se torna então uma condição de ausência de liberdade. Retorna-se à questão democrática.

Mas quando a esquerda coloca a questão democrática em termos de democracia social, ela muitas vezes é acusada de proteccionismo. Daí a acusá-la de nacionalismo não há senão um passo, por vezes dado alegremente no debate sobre a Europa...

DL -
Uma coisa é a afirmação, a defesa da identidade ou da dignidade nacional, uma outra é o chauvinismo. Tem-se tendência a fazer confusão entre as duas. A distinção parece-me entretanto muito simples: de um lado temos uma atitude universalizável; do outro, uma posição exclusivista.

A afirmação da dignidade da nação francesa, americana ou italiana é perfeitamente compatível com a afirmação da dignidade de qualquer outra nação, de todos os povos. Em contrapartida, quando o presidente Bush afirma que os Estados Unidos são a "nação eleita por Deus" para governar o mundo, esta atitude não é universalizável. Basta que um outro país tenha a mesma pretensão para que haja afrontamento.

Hoje, o chauvinismo por excelência é o dos Estados Unidos, país que posa como herói do liberalismo. E a União Europeia, servil em relação aos Estados Unidos, reproduz a sua atitude de "nação eleita por Deus" nas suas relações com os países do Terceiro Mundo. Lénine havia explicado muito bem a ligação entre o imperialismo, o nacionalismo e o racismo.

Uma das suas definições do imperialismo é a seguinte: "o imperialismo é a pretensão de um pequeno grupo de nações que se dizem eleitas" de monopolizar para si só o direito de constituir um Estado nacional e soberano, o que e equivale a dizer de excluir deste direito os povos considerados como inferiores.

A luta pela igualdade das nações é sempre actual. E é uma luta progressista, em nome das liberdades e da democracia, que se conduz contra o sistema capitalista e sua ideologia liberal.


Nota minha: A entrevista foi publicada originalmente em 30 de junho de 2008.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

GASOLINA A 4 CENTAVOS

Na Venezuela do ditador Hugo Chávez. Clique aqui e confira.

Na nossa democracia o litro chega a 3,15 na capital acreana - e deve ter novo aumento em breve.

Rio Branco fica mais próxima de Caracas que de São Paulo. Consumimos a gasolina mais cara porque não há ligação rodoviária entre as duas cidades.

Em 2009, com muita muita resistência dos democratas do PSDB, PPS, PMDB, PTB e DEM, o Congresso brasileiro aprovou a entrada da Venezuela no Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Não tá na hora, tipo, dessa parceria sair do papel? Hein, Moisés Diniz?

segunda-feira, 18 de abril de 2011

CUBA E A FOLHA DE S. PAULO

A enorme propaganda contra o regime cubano acabou por criar, como subproduto planejado, uma imagem distorcida sobre os habitantes da Ilha, apresentados ora como guerrilheiros ferozes, desconhecedores de fronteiras, ora como prisioneiros tristes e infelizes de uma ditadura.

por Gilson Caroni Filho, via Carta Maior

Alaine Gonzáles e Reinel Herrera são trabalhadores autônomos cubanos. Ambos foram escolhidos pela jornalista Flávia Marreiro, enviada especial da Folha de São Paulo a Havana, como personagens errantes de uma economia em frangalhos. Seguindo um padrão de cobertura vigente há 50 anos, a repórter da elabora um texto com pouca informação e direcionamento enviesado, não somente sobre o país, no sentido político e econômico, mas principalmente sobre o povo, sua história, sua cultura e seus hábitos.

A enorme propaganda orquestrada contra o regime cubano acabou por criar, como subproduto previsto e planejado, uma imagem distorcida sobre os habitantes da Ilha, apresentados ora como guerrilheiros ferozes, desconhecedores de fronteiras, ora como prisioneiros, tristes e infelizes, de uma ditadura. É compreensível o sucesso desse tipo de campanha, quando se avalia o poder da rede de comunicação capitalista.

É natural que o jornalismo nativo não possa perceber a dinâmica que se apresenta aos seus olhos. Se Flávia Marreiro conseguisse se desvencilhar da viseira ideológica, talvez conseguisse enxergar os personagens com outras roupagens e expectativas. Alaine e Reinel, como o restante do povo cubano, têm consciência das suas dificuldades. Por outro lado, crêem na revolução porque sabem que são participantes ativos de um processo tão rico quanto denso. Não se sentem impotentes diante dos problemas: reclamam e atuam dentro de uma estrutura política que lhes permite, independentemente do poder econômico ou dos conchavos políticos, resolver problemas que os afligem.

Como cidadão esclarecido, bem informado e politizado, o cubano é o verdadeiro crítico do regime. Critica e aponta saídas. Trabalha e, quando a nação necessita da sua presença, lá está ele, pronto para defender sua revolução com o seu próprio sangue. Aqueles que não quiseram trabalhar pela coletividade ou que sequer queriam trabalhar se foram pelo Porto Mariel, iludidos pela falsa propaganda que vinha dos Estados Unidos, onde pensavam encontrar dinheiro fácil. Flávia chegou tarde, com uma pauta envelhecida.

Nem Alaine, nem Reinel Herrera viveram os problemas da etapa anterior a 1959, quando o desemprego era superior a 16,4% e o subemprego estava em torno de 34,8%. Eles já vieram ao mundo num país de - praticamente- pleno emprego. Também não conviveram com as taxas de analfabetismo de 23,6%, nem com o sistema escolar que, de 100 crianças matriculadas nas escolas públicas, deixava 64 no meio do caminho, sem terminarem o 6º ano. Hoje, apesar de todos os problemas, a taxa de analfabetismo não chega a 3% e não existem crianças em idade escolar sem colégio.

Com uma assistência médica nacionalizada, nenhum dos dois conheceu o pais que concentrava 65% da população nas áreas urbanas, que tinha 70% da indústria farmacêutica controlados por empresas estrangeiras, em que a expectativa de vida era de 62 anos e a mortalidade infantil de 40 por mil nascidos vivos. Já a mortalidade materna era de 118,2 por 10 mil nascidos. Esses dados, por certo, não estão no departamento de pesquisa dos jornais dos Frias, Marinhos e Mesquitas. Flávia, a nossa brava repórter, talvez não disponha de outras informações que lhe seriam de extrema utilidade na cobertura da reunião do Partido Comunista Cubano.

Antes da revolução, menos de 2.500 proprietários possuíam 45% das terras do país e 8% das fazendas concentravam 71% da área disponível. Até 1959, somente 11,2% dos trabalhadores agrícolas tomavam leite, 4% comiam carne,1% consumia peixe. Na Cuba de Alaine e Herrera, o consumo de leite e carne é superior a todos os outros países do continente. Se nos anos 1980, quando os dois entrevistados nasceram, a implementação do processo revolucionário continuava, foi a década de 1960 que abriu caminho ao desenvolvimento econômico e, sobretudo aquela em que se resistiu às agressões armadas, bombardeios e à tentativa de invasão norte-americana que definiu o caráter socialista da revolução.

Todo o conjunto de medidas políticas e econômicas custou a Cuba o bloqueio econômico e diplomático imposto pelos Estados Unidos. A situação voltaria a se agravar após o fim da URSS e do bloco socialista, mas o colapso tão esperado pelo Império e seus sócios não veio.

O sistema econômico procurou proporcionar o desenvolvimento e o crescimento do país de uma forma igualitária. Ernesto Che Guevara, quando ministro da Indústria, ilustrou bem qual a diferença entre sistema econômico e desenvolvimento. Para ele, um anão enorme com tórax enchido é subdesenvolvido, porque seus curtos braços e débeis pernas não se articulam com o resto de sua anatomia. É produto de um desenvolvimento teratológico que distorceu suas formações sociais. A descrição sobre o restante da América Latina não podia ser mais precisa.

Se, de fato, o Partido decidir demitir 500 mil funcionários, enxugar o Estado e aumentar a produtividade, como relata a grande imprensa, a anatomia cubana não permite vislumbrar um mergulho na lógica fria dos ditames do mercado. A perspectiva que só a história dá, para avaliar em toda a sua dimensão, os erros e acertos, o processo que implantou, pela primeira vez, o socialismo na região, mostra um organismo social saudável, preparado para mudanças necessárias.

O célebre "mudamos ou afundamos" atribuído a Raul Castro não é, como supõe a matéria da Folha, a expressão dramática de uma situação. As crises permanentes que a revolução atravessou, impostas para fazê-la fracassar, fizeram com que a retificação de rumos e a concepção de novas idéias se tornassem elementos constitutivos da nação caribenha. Fátima Marreiro pode ter uma certeza: Cuba não afundará.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

domingo, 17 de abril de 2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

ALAGA-SHOW II

Tenho que admitir: merece algum daqueles prêmios de cidadania o atendimento do governo do Estado e da prefeitura da Capital aos desabrigados - 410 famílias de 11 bairros, totalizando 1.715 pessoas nesta quinta-feira (14), segundo o Altino. No Parque de Exposições, onde ficam os abrigos temporários, há médicos, assistentes sociais, cursos profissionalizantes, teatro, palestras sobre direitos trabalhistas e civis, cidadania básica, atividades e brinquedos para as crianças com acompanhamento especializado e até - muito legal isso - um cinema! Além, claro, do básico: água potável e comida.

É evidente que nada disso resolve o problema maior, já que este originou-se no mesmo movimento histórico que deu origem ao PT no Acre: a expulsão dos seringueiros e índios de suas terras pelos "paulistas" em meados dos anos 70, sob proteção e incentivo da Ditadura Militar.

Só para lembrar: enquanto o PT nascia da resistência organizada dos movimentos sociais rurais com o apoio das maiores categorias do funcionalismo público urbano, o agronegócio patrocinava um maciço êxodo rural que duraria até o fim dos anos 90 e que seria responsável, entre outros fenômenos, pela formação do que hoje chamamos atabalhoadamente de "periferias" ou "bolsões de miséria". Sem dinheiro para comprar casas ou terrenos nas regiões altas, as famílias ocuparam imensas regiões próximas ao rio Acre. Regiões repletas de matagais, sem energia elétrica, rede de água e esgoto. Regiões alagadiças.

É por isso que políticas públicas efetivas para o problema das enchentes em Rio Branco vão muito além da exposição midiática das ações humanitárias - e louváveis - da prefeitura, do governo do Estado, da rede de solidariedade cristã, laica ou seja lá de quem for. Até a distribuição de donativos ou bolsas tem limites estruturais: em 1988, em meio a uma campanha internacional para arrecadar alimentos e colchões para os desabrigados, caçambas do governo do Estado foram flagradas pela imprensa despejando milhares de donativos no final da antiga Estrada do Amapá. Por vários meses após a enchente, pequenas mercearias de Rio Branco continuavam lotadas de requeijão suíço, carne enlatada inglesa, damascos em calda israelenses e outras iguarias. Alguns postos da hoje extinta Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) - que tinha a função de gerenciar e fiscalizar a distribuição dos donativos - começaram a vendê-los. Anos depois vários desses postos foram ocupados e viraram moradia de espertalhões disfarçados de "solidários". E continuam assim ainda hoje, sem que nenhum governo tome uma providência para reaver o patrimônio público.

Isso ocorreu porque a assistência social aos desabrigados é dever de qualquer governo, mas a marca de um governo assistencialista é transformá-la no núcleo das suas ações. Não por razões de ordem filantrópica, mas porque o assistencialismo, em qualquer situação, é uma porta escancarada para a corrupção. É por isso que todo governo centralmente assistencialista é também visceralmente corrupto.

Só se foge disso quando se compreende o drama das atuais alagações no Acre como resultante de um processo histórico. Porque é essa compreensão que permite elaborar políticas públicas com a intensidade e alcance que o fenômeno exige (a propósito, em comparação com a sua extensão territorial integral, o perímetro urbano de Rio Branco é minúsculo como uma moeda numa piscina). O PT, por ser resultado do mesmo processo histórico, deveria melhor que ninguém ter desenvolvido essa habilidade e "ver além da superfície", mas parece resistir e investe em medidas paliativas dignas do velho PMDB.

Qual será o resultado disso?

quarta-feira, 13 de abril de 2011

ALAGA-SHOW

O rio Acre, como faz há milênios, recebeu nesse ano um grande volume de chuvas e transbordou. Não é inédito, mas provoca uma espécie de transe amnésico-histérico: poucos lembram que todo ano é a mesma coisa, o que muda é a intensidade do fenômeno.

"Rio Acre desabriga 20 famílias", "Defesa Civil distribui alimentos e água potável para desabrigados", "nível do rio sobe", "nível do rio desce", "prefeitura distribuirá hipoclorito para famílias atingidas pela enchente", "volta para casa aumenta riscos de infecção por leptospirose, micoses e outras doenças" - são estas, dentre muitas outras, as manchetes dos jornais nessa época do ano.

Mas por que não questionar: essas famílias voltam para os bairros alagadiços só para sofrer, todos os anos, as mesmas dificuldades?

Elas voltam porque são pobres. Todos os programas habitacionais do governo para pessoas em áreas de risco fundam-se em um único pressuposto: transferir as famílias para regiões mais altas. Esquecem que, nos locais de origem, elas têm a mercearia onde compram fiado para pagar no fim do mês (quando sai o dinheiro da aposentadoria, da pensão ou do trabalho braçal). Têm a escola próxima para os filhos estudarem. Têm água potável, encanada ou "enganada" (os bairros alagadiços, por serem muito baixos, alcançam os lençóis freáticos com muita facilidade por meio de poços, construídos geralmente em mutirões).

As famílias não deixam os bairros alagadiços porque constituíram nesses locais uma rede de auxílio mútuo compatível com a sua baixa renda. As casas construídas pelo governo, até onde sei, sequer levam esses pontos em consideração. Pior que isso: submetem as "vítimas da enchente" (expressão que é outra violência de ordem simbólica):

- à mesma escassez de água potável sofrida pela classe média em outros bairros (e como essas regiões são muito altas, perfurar um poço ou "cacimba" a picaretadas é uma aventura quase sempre impossível, além de perigosa).

- a ausência de sistemas de saúde e de educação que tenham - no mínimo - os mesmos problemas de superlotação e escassez de fichas que existiam nos bairros de origem.

- a inexistência de mercearias ou pequenos estabelecimentos que aceitassem vender fiado e receber no final de cada mês.

- a falta de um policiamento ostensivo para inibir crimes contra o patrimônio, tráfico de drogas e desentendimentos comuns em qualquer comunidade.

Diante de tudo isso vale perguntar: o governo - de todas as esferas, municipal, estadual, federal - tem realmente políticas públicas de habitação popular? Ou apenas distribui casas (quando distribui)? Os documentos do principal programa do governo federal, "Minha Casa, Minha Vida" a que tive acesso não citam qualquer preocupação com as questões levantadas, no máximo citam a principal preocupação dos órgãos financiadores: a renda. O governo estadual sequer possui um site relacionado a seus programas habitacionais.

Certo, pra não dizerem que só reclamo darei alguns pitacos:

- Façam estudos sobre as formas de sociabilidade nos bairros alagadiços, as estratégias de sobrevivência das "vítimas da enchente". Conheçam as hortas caseiras ou comunitárias, as criações de galinhas, patos e porcos; confiram como os poços/cacimbas servem, às vezes, para as famílias de uma rua inteira durante o verão. Vejam como as pessoas se deslocam quando precisam de atendimento médico-hospitalar, suas dificuldades e limitações. Tentem compreender a importância do transporte público e das bicicletas, no trajeto das crianças para a escola ou para o culto/missa dominical. Enfim, tentem assimilar o básico: pessoas não são objetos para que sejam jogadas sem qualquer planejamento em outra região da cidade.

- De posse de todos esses estudos e diagnósticos sociais, tentem reaplicar o que puder ser reaplicado nos locais de destino, nesses conjuntos novos que o governo planeja entregar para famílias em áreas de risco. Partindo da compreensão básica de que a renda é muito baixa, pode ser mais produtivo compreender que um modo de vida que requer uma renda maior sempre será inexequível para os novos moradores. O resultado sempre será a volta para casa por conta própria. Acompanhada ou não da venda do imóvel.

- Por fim, e aproveitando uma "carona" no projeto de pavimentação com tijolos de todas as ruas da cidade prometido pelo governador Tião Viana (PT) na campanha eleitoral, será relativamente fácil fazer o seguinte: utilizar a mão-de-obra ociosa desses novos moradores para empregá-la em olarias públicas que podem ser construídas pelo próprio governo. Para evitar problemas com a Lei de Licitações e até com a Lei de Responsabilidade Fiscal, bastaria fomentar nos bairros (com auxílio da associação de moradores) um sistema de mutirões que reunissem todos esses pais e mães de famílias para participar de toda a nova cadeia econômica: desde a produção de tijolos até a pavimentação propriamente dita. É bom que se acrescente um importante detalhe: é nos bairros alagadiços de Rio Branco onde se encontra a argila de melhor qualidade para o fabrico dos tijolos - Taquari, Triângulo, Ayrton Senna, são alguns que me vêm à mente no momento.

Se essas questões forem levantadas, a títulos de problematização e cobrança pela nossa imprensa e pelos políticos realmente interessados em soluções para o povo, estaremos a meio caminho de transformar o "Alaga-show" anual que temos em uma política exemplar de promoção de cidadania.

Sugiro ainda que os colegas jornalistas encampem essa idéia, se a considerarem exequível. Em fenômenos sociais de larga magnitude é que se torna possível compreender que o papel da imprensa não é meramente narrativo. Se a imprensa é o "quarto poder", sua função é social. É ser o contra-poder instrumentalizado pelo povo, não mera transmissora de fatos. É dar voz aos que não têm voz porque a política no capitalismo concentra e se fecha em si mesma tanto quanto o próprio capital. Seu compromisso, portanto, é com o povo.

A foto é da Contilnet.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

NENHUMA ESCOLA É ILHA


Reproduzido do blog Tabnarede, via Viomundo

Tragédias como a ocorrida na Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, sempre provocam grande comoção pública, indignação e, obviamente, tristeza pelas muitas crianças perdidas no atentado. Além desses sentimentos, tais fatos provocam também um grande tsunami de “especialistas”, mobilizados em velocidade estonteante pela mídia, para dar laudos e explicações quase matemáticas sobre as motivações do assassino. O atirador Wellington Menezes de Oliveira, segundo as informações desses “cientistas da tragédia” (que variam de “criminólogos” a policiais militares), era tímido, solitário, filho adotivo, “usuário” constante do computador (a “droga” dos tempos modernos segundo os “analistas”), ateu, islâmico, fanático, fundamentalista, portador do vírus da AIDS e, provavelmente, vítima de bullying na escola.

Certamente não há como contestar que todo ato humano, e por isso histórico, se explica a partir da análise de uma cadeia de relações complexas. Como digo aos alunos, nada tem resposta simples e direta. Entretanto, o tipo de questão levantada para entender o terrível ato de Wellington Menezes de Oliveira diz muito mais sobre nós mesmos do que sobre ele. Todos os nossos preconceitos estão embutidos nessas respostas. De fato, não sabemos, e talvez nunca saibamos, por que exatamente ele atirou contra cada uma das crianças (em sua maioria meninas), assim como não sabemos sobre as reais motivações dos muitos atentados como esse, ocorridos em países como Estados Unidos e Dinamarca. Mesmo depois de tudo o que se discutiu, ainda é difícil, por exemplo, explicar Columbine (abril de 1999).

Uma das coisas que mais tem me chamado a atenção é a recorrência da explicação que elege o bullying escolar como um dos fatores que podem desencadear esse tipo de ato violento. A explicação não é nova, Columbine é prova disso. Há mais de dez anos atrás, dois meninos entram em uma escola, de capa preta (quase como em um filme hollywoodiano) e atiram em seus colegas. “Especialistas”, gringos agora, se apressam em dizer as razões: divórcio nas famílias, videogames, filmes violentos, Marilyn Manson, porte de armas facilitado e, como não poderia faltar, bullying na escola.

É inegável que o bullying é uma realidade. É indiscutível que ele é extremamente nocivo e doloroso aos alunos que sofrem com ele. É evidente que há urgência em iniciar um debate para saber como sanar o problema. Mas a pergunta que fica é: o que de fato é o bullying? Ele é um sinal (histórico) de que? E ainda mais: ele é um problema restrito à escola? Por que os alunos são tão cruéis com seus colegas?

Michael Moore, cineasta norte-americano explosivo, tentou dar a sua interpretação para o atentado de Columbine com o documentário Bowling for Columbine (2002).  Moore, ao invés de repetir os clichês da mídia, foi implacável na destruição do senso comum das justificativas moralistas para o evento. Item por item, desde a desagregação da família, Manson, até a polêmica questão do porte de armas foram desconstruídos em sua narrativa. O foco centrou-se em respostas muito mais interessantes, localizadas não nos dois jovens assassinos, mas na sociedade americana. O imperialismo militarista dos Estados Unidos, a ação violenta em outros países, a política do medo (incentivada pelo Estado e pela grande mídia), que reforça e superestima dados sobre a violência urbana, sobre o fim de mundo, e, principalmente, a intolerância com todo tipo de diferença. Racismo, preconceito, homofobia, conflitos religiosos e luta de classes são só alguns dos ingredientes do caldeirão de ódios em que se transformou a sociedade americana.

Como crescer no Colorado, na “livre” América, e não ser conspurcado por esses valores? Como não idolatrar armas e achar que elas são um meio prático de solucionar problemas? Como viver imune a uma sociedade individualista, capitalista, que divide os seus cidadãos o tempo todo em “winners” e “loosers”? E mais ainda, como não se deixar levar por uma sociedade que até hoje não consegue lidar com a diferença entre brancos e negros? Uma sociedade que até os anos 1960 não oferecia direitos, oportunidades e tratamentos iguais a todos os seus cidadãos, tem o que para oferecer ao pensamento dos estudantes? Os americanos, ainda hoje, estão preparados para o respeito à diferença? A relação que eles mantêm com os muçulmanos diz muito. Definitivamente a liberdade e o respeito ainda não se transformaram em uma unanimidade por lá.

É claro que mesmo Moore não chega a dar respostas definitivas sobre a questão. E mais ainda: é evidente que ele considera a forma pela qual a instituição ESCOLA trata seus alunos (hierarquias e classificações hostis), ignorando muitas vezes o bullying, tem sua responsabilidade no massacre. Assim como é nítido que a venda facilitada de armas e munição são coadjuvantes importantes da história. Mas Moore foi corajoso ao lançar em cada um dos americanos a responsabilidade da tragédia e discutir aquilo que ninguém teve coragem (ou má fé) de fazer. Nem a mídia, nem o governo, nem a sociedade. É preciso encarar os “monstros”, com franqueza, e não apenas “satanizar” o ambiente escolar, para dar algum significado para esses eventos.

Ontem no Terra Magazine o antropólogo Roberto Albergaria afirmou que a mídia e a sociedade brasileira desejavam o impossível: explicações para um “desvario sem significado”. Segundo ele, o que Wellington Menezes praticou foi o que os estudos franceses chamam de “violência pós-moderna”, caracterizada por uma ruptura irracional, sem explicação. De fato, talvez tenha sido um “ato irracional”, fruto de um momento de insanidade. Mas acredito que esse tipo de resposta não nos ajuda a resolver coisas importantes sobre nós mesmos. A tragédia no Realengo, a meu ver, pode e deve ser início de um debate importante sobre a nossa sociedade.

A tragédia na escola do Rio de Janeiro acontece num contexto bastante relevante. Em outubro de 2009, Geyse Arruda foi hostilizada por seus colegas de faculdade porque, segundo eles, ela não sabia se vestir de modo “apropriado” para freqüentar as aulas. Em junho de 2010, Bruno, goleiro do Flamengo, é suspeito de matar a ex-namorada, Elisa Samudio, por não querer pagar pensão ao filho. Suposta garota de programa, Samudio foi hostilizada na opinião de muitos brasileiros. Após rompimento, Mizael Bispo, inconformado, mata sua ex-namorada Mércia Nakashima em maio de 2010. Em novembro de 2010, grupos de jovens agridem homossexuais na Avenida Paulista, enquanto Mayara Petruso incita o assassinato de nordestinos pelo Twitter. E mais recentemente, em cadeia nacional, Jair Bolsonaro faz discurso de ódio contra homossexuais e negros. Tudo isso instigado e complementado pelo discurso intolerante, preconceituoso, conservador e mentiroso do candidato José Serra à presidência da República. A mídia? Estava ao lado de Serra, corroborando em suas artimanhas, reforçando preconceitos contra Dilma, contra as mulheres e contra os tantos mais “adversários” do candidato tucano.

Wellington matou mais meninas na escola carioca. Se, por um lado, jamais saberemos as reais razões que o fizeram agir dessa forma, por outro sabemos o quanto a sociedade brasileira tem sido, no mínimo, indulgente com atos de intolerância, machismo, ódio e preconceito contra mulheres, negros e homossexuais. Se não há uma ligação direta entre esses diversos acontecimentos, eles pelo menos nos fazem pensar o quanto vale a vida de alguém em um contexto de tantos ódios? Quantas mulheres morrerão hoje vítimas do machismo? Quantos gays sofreram violência física? Quantos negros sentirão declaradamente o ódio racial que impregna o nosso país? O que é o bullying se não o prolongamento para a escola desse tipo de mentalidade? Quantas pessoas apoiaram as declarações de ódio de Bolsonaro via Facebook? Aquilo que acontece no ambiente escolar nada mais é do que um microcosmo do que a sociedade elege como valores primordiais. E o Brasil, que por tanto tempo negou a “pecha” de racista e preconceituoso, vê sua máscara cair.

Não adianta culpar o bullying, achando que ele é um problema de jovens, um problema das escolas. Não adiante grades e detectores de metal nas entradas ou a proibição da venda de armas. Como professora, sei que o que os alunos reproduzem em sala nada mais é do que ouviram da boca de seus pais ou na mídia. Não adianta pedir paz e tolerância no colégio enquanto a mídia e a sociedade fazem outra coisa. Na escola, o problema do bullying é tratado como algo independente da realidade política, econômica e social do país. Mas dá pra separar tudo isso? Dá pra colocar a questão só em “valores” dos adolescentes, da influência do malvado do computador ou dos videogames? Ou é suficiente chamar o ato de Wellington de uma “violência pós-moderna” sem explicação? Das muitas agressões cotidianas, a da escola do Realengo é apenas uma demonstração da potencialidade de nossos ódios. A única coisa que me pergunto é: teremos a coragem de fazer esse tipo de discussão?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

BULLYNG



"Caminar es un peligro y respirar es una hazaña en las grandes ciudad del mundo al revés. Quien no está preso de la necesidad, está preso del miedo: unos no duermen por la ansiedad de tener las cosas que no tienen, y otros no duermen por el pánico de perder las cosas que tienen. El mundo al revés nos entrena para ver al prójimo como una amenaza y no como una promesa, nos reduce a la soledad y nos consuela con drogas químicas y con amigos cibernéticos. Estamos condenados a morirnos de hambre, a morirnos de miedo o a morirnos de aburrimiento, si es que alguna bala perdida no nos abrevia la existencia".

Eduardo Galeano, em Patas arriba: la escuela del mundo al revés (disponível aqui).

Imagem do Arte/IG.


Adendo: Wellington Menezes de Oliveira, autor dos crimes que que chocaram o país numa escola da Zona Oeste do Rio de Janeiro, na manhã de ontem, era chamado de "Al Qaeda" pelos colegas quando estudava na mesma escola. Wellington, segundo declarações de Marcio Vinicius Moraes da Silva, ex-colega dele, ao Portal R7, era "estranho e constantemente zombado, já que não gostava de interagir com outras pessoas".

Além de conferir as caras-e-bocas dos apresentadores de TV, a sociedade deveria aproveitar esse episódio para repensar a educação pública. Que geração estamos produzindo? Que tipo de educação torna as pessoas intolerantes para as diferenças - as muitas diferenças possíveis - entre os indivíduos?

Há um ano um estudo da ONG Plan Brasil afirmou que quase um terço das crianças de 5 a 8 série já foi vítima de agressão - no próprio ambiente escolar. Ou seja, estamos produzindo, nas escolas, uma geração de intolerantes que considera qualquer indício de pluralidade ou diferença digno de ser tratado a socos e pontapés.


Por que?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

ESTADO E AUTORITARISMO

Ideologia de Estado e Autoritarismo no Brasil - Ricardo Silva. Cadernos de Pesquisa, n. 26, Abril de 2001.


Download: aqui (pdf, 330 kb)


Resumo: A consolidação da democracia no Brasil tem sido objeto da crítica e do ceticismo de uma vertente específica do pensamento político brasileiro. Trata-se de uma modalidade de ideologia de Estado que caracteriza como irrealistas e fadados ao fracasso os ensaios de organização do Estado com base no princípio da soberania popular, considerando a suposta incompatibilidade de tal princípio com as características da formação social brasileira, com o grau de educação política do povo ou com os imperativos da “necessidade econômica”.

Trata-se aqui de examinar a estrutura discursiva deste sistema ideológico, focalizando dois momentos distintos de suas mais elaboradas manifestações ao longo do século XX. Argumentar-se-á que as idéias políticas dos economistas Eugênio Gudin e Roberto Campos, desenvolvidas no período de vigência da Constituição de 1946, recriam e atualizam o sistema ideológico cristalizado na obra de sociólogos como Oliveira Viana e Azevedo Amaral, críticos veementes do constitucionalismo liberal e apologistas da Constituição autoritária de 1937.

Para além das notáveis diferenças retóricas que dão forma às idéias políticas destas duas gerações de pensadores, podemos notar que ambas tem em comum o fato de se apresentarem como racionalizações de uma ordem política simultaneamente estatista, tecnocrática e desmobilizadora.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A QUESTÃO AGRÁRIA NO ACRE

Dias antes da ocupação das casas - públicas - do Conjunto Wilson Ribeiro terminarem em porrada, levando a imprensa, irritada com a proibição do acesso ao local do crime, a produzir matérias "penosas" sobre o sofrimento de mulheres e crianças e a truculência policial, a TV Gazeta publicou outra reportagem sobre o que se concluiu como a vingança de uma quadrilha ao despejo sofrido após uma tentativa de invasão à Fazenda Jarina, localizada no Km 14 da BR 317.

A matéria foi ao ar em 20 de março de 2011 e afirmou resumidamente o seguinte: os invasores eram uma quadrilha especializada em especulação fundiária e subsidiada por sindicatos não nomeados, por sua vez amparados num também suposto obscurantismo jurídico sobre o sindicalismo rural.

A reportagem não mostrou o acampamento, nem invasores ou os patrocinadores. Não precisou. As acusações foram disparadas pelo dono da propriedade (um empresário, idoso, empreendedor, um homem de bem), que a reportagem tomou como verdadeiras após ver marcas de tiros em dois carros - que pertenceriam... a dois funcionários do local! Entrevistados, ambos afirmaram contundentes: foi a quadrilha!

Desconfiado como vocês, vasculhei a internet em busca de mais informações. Encontrei esta. Segundo o Janelao.net, que se baseou em um blog do município do Quinari, um ramal (faixa de terras utilizada para o transporte) passa dentro das terras citadas. O proprietário, irritado com o vaivém de gente, resolveu impedir o acesso, deflagrando um conflito que foi parar na delegacia com direito a negociação entre manifestantes e assessores do Governo, seis dias antes da exibição da matéria do Gazeta em Manchete.

Notem que durante o protesto compareceram aqueles velhos personagens dos conflitos agrários do Acre: jagunços armados, que felizmente foram presos por porte ilegal de armas de fogo.

Esse caso, especialmente se contrastado com a cobertura jornalística do conflito no Wilson Ribeiro, expõe parcialmente os meandros da questão agrária no Acre. Que ninguém se engane: há interesses poderosos em jogo. Ainda. Lembro que Chico Mendes, quando vivo, denunciou várias vezes um complô de latifundiários para matá-lo. Ele morreu, mas o velho espírito legado pela Ditadura Militar de eliminar os "obstáculos" (matar pessoas por razões mesquinhas) vive e anda muito bem, obrigado.

Por exemplo: os jagunços presos no Quinari foram soltos? Alguém pagou as fianças? Quem?

Não vou usar o blog para descer o malho nos ex-colegas da imprensa local. Trabalhei em várias redações locais por 11 longos anos e sei bem como funciona a máquina. Repórteres fatigados tendo que cumprir 2, 3, 4 pautas por dia (alguns se orgulham disso!), salários baixos ou atrasados, acúmulo de funções e assédio moral dos chefes são alguns dos ingredientes diários da profissão atual. Se não justificam, eles explicam por que é tão eficaz a operação de dissimular e distorcer a opinião pública em favor da classe mais "chegada" aos donos da imprensa...

Em tempo: o dono da Fazenda Jarina, por onde passa o Ramal Oliveira, é Osvaldo Ribeiro (pai do ex-prefeito do Quinari, Celso Ribeiro). O bairro onde houve o conflito com as casas do governo (do povo) chama-se Wilson Ribeiro (homenagem a um ex-deputado local). Será que são parentes?