terça-feira, 14 de junho de 2011

MANUAL DE REDAÇÃO

Ou, 10 regras da grande imprensa ao abordar "movimentos sociais"


Osvaldo da Costa, em Adital


Convenções básicas (quem não cumprir está sujeito à demissão):

1ª) Toda OCUPAÇÃO de terra deve ser chamada de INVASÃO

Ao invés de usar o termo adotado pelos movimentos sociais, “ocupação” – manifestação de pressão para o cumprimento da Constituição pelo Estado e denúncia da existência de latifúndios- é mais eficiente para o objetivo de defesa do princípio da propriedade privada a utilização da palavra “invasão” – tomar para si pela força algo que não lhe pertence.

Dessa maneira, implicitamente, estamos dizendo que discordamos dessa prática e a consideramos ilegal, e conseguimos gerar a sensação de pânico generalizado em todos os donos de propriedade, sejam elas rurais e produtivas, ou até mesmo propriedades urbanas.

Observação: essa regra não é generalizável. Para os casos em que os Estados Unidos invadem países, destroem a infra-estrutura e matam a população, deve-se utilizar o termo “ocupação”.

2ª) Regra do efeito dominó: fale só do maior para bater em todos

O acordo da grande imprensa é manter somente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na pauta dos noticiários, e evitar sempre que possível falar da existência de outros movimentos sociais. Para isso, quando se tratar de movimentos do campo, basta usar sempre a expressão genérica “movimento dos sem terra”, ou falar dos “sem terra”, sem mais detalhes.

Se a pauta exigir o detalhamento do movimento, recomenda-se associá-lo sempre ao alvo principal, com expressões como “movimento dissidente do MST”.

Essa regra ainda colabora para a desunião entre os movimentos, pois os menores se incomodam pela invisibilidade e pelo fato de terem suas ações relacionadas sempre ao MST.

3º) Reforma Agrária deve ser tratada como questão de polícia

Movimentos sociais e reforma agrária devem, sempre que possível, ser tratados na página policial, no caso de jornais impressos, e no bloco do crime e dos desastres, no caso dos telejornais.

Caso não seja possível enquadrá-los na seção policial ou em espaço próximo, use títulos para editorias que lembrem o belicismo, como “campo minado”. Não importa o que diga sua matéria, os títulos devem falar por ela, mesmo que não tenham relação com o conteúdo. Use tons sensacionalistas e fatalistas.

4º) Nunca divulgue os artigos progressistas da Constituição Federal

Os artigos da Constituição Federal que tratam da função social da terra, que integram o código agrário – 184 a 191 – nunca devem ser mencionados em reportagens sobre os movimentos sociais, para evitar a compreensão de que a ação de invasão de terras pode ter algum respaldo legal.

É sempre recomendável lembrar da lei de Segurança Nacional e da necessidade de uma legislação contra o terrorismo no Brasil. O termo “Estado de Direito” é ideal para isso. Considere qualquer manifestação uma afronta ao Estado de Direito, mesmo que ele seja apenas o Direito do Estado.

Se falar do Estado de Direito e suprimir os artigos progressistas da Constituição não for suficiente, convém colocar as reportagens próximas à cobertura de ações terroristas ou, levantar a suspeita de que há relação do movimento social com uma organização terrorista ou guerrilheira estrangeira.

Conjunto de regras para serem selecionadas e aplicadas conforme a conjuntura exigir:

5º) Levante a bola para o oportunista de plantão

Não é verdade que o papel da imprensa é apurar a verdade dos fatos. Todo aspirante deve saber que a imprensa tem poder para gerar os fatos.

Além disso, apurar fatos implica em sair da sua cadeira e nem todos eles podem ser apurados por telefone. Basta fazer uma reportagem suspeitando de algo, e procurar um oportunista que queira protagonizar a indignação pública para a suspeita ganhar dimensão de notícia.

Sempre há alguém à disposição esperando para se deslumbrar com as luzes dos holofotes. O exemplo bem sucedido mais recente foi o caso da requentada pauta da suspeita da legalidade do financiamento público para cooperativas da reforma agrária, em que o presidente do Superior Tribunal Federal (STF) desempenhou o papel de porta-voz da bancada ruralista, dando respaldo para a suspeita, e de quebra, aproveitando para atacar o governo federal.

Se não houver ninguém do Judiciário ou algum deputado, não importa, qualquer um, sem nunca ter ido a um assentamento ou acampamento pode ser transformado em “especialista” em questão agrária: sociólogos, filósofos e até jornalistas.

6º) Nem sempre devemos apurar os dois lados da notícia

Quando já conseguimos incutir um pré-julgamento na opinião pública sobre o caráter marginal das ações dos movimentos sociais, podemos reforçar essa opinião entrevistando somente o lado agredido pelas ações, as vítimas dos movimentos. Fica implícita a informação de que, como os integrantes dos movimentos são foras da lei, quem deve escutá-los é a polícia e o poder judiciário. Se ainda assim tiver que ouvi-los, seja breve e descontextualize a frase.

7º) Não deve existir noção de historicidade, nem de causa e conseqüência em nossas reportagens

Não abordar as razões da ação dos movimentos sociais, evitar a divulgação da nota à imprensa. Não importa há quanto tempo às famílias estejam acampadas, quais promessas foram feitas pelo governo, se a terra é do banqueiro que saqueou os cofres públicos ou do coronel que vive do trabalho escravo. Se detenha nas conseqüências da ação.

8°) Dramatização da repercussão das ações dos movimentos sociais

Retire o foco das motivações estruturais e causas históricas e centre a abordagem nas conseqüências para os indivíduos donos ou empregados das propriedades invadidas ou atacadas.

– fale do prejuízo econômico para o proprietário, e se possível faça uma entrevista com o mesmo ou com um familiar próximo para mostrar a comoção da família diante do ataque bárbaro. É importante mostrar o estado de choque emocional, e o ideal é que a pessoa esteja chorando.

– surte grande efeito a entrevista com trabalhadores da fazenda ou da empresa. O maior exemplo é o caso da ação no horto da multinacional Aracruz no Rio Grande do Sul, em que uma técnica de laboratório se fez passar por pesquisadora e, em prantos (!), afirmou que a destruição das mudas de eucalipto acabou com mais de vinte anos pesquisa.

Nesse caso, as reportagens conseguiram colocar os movimentos sociais como contrários à ciência e ao desenvolvimento tecnológico, evitando a pauta concreta da ação, que se centrava na expansão ilegal das terras da empresa e na depredação da natureza com o monocultivo de eucalipto.

9º) Campanha de desmoralização permanente dos movimentos sociais

É sempre bom manter semanalmente pautas de desgaste aos movimentos sociais, mesmo que não haja uma ação que renda manchete. Nesses casos, a regra é trabalhar com associação, encaixando uma reportagem que fale sobre um movimento após ou entre matérias que falem, por exemplo, de casos de corrupção no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), venda de terra e desmatamento em assentamentos da Amazônia Legal, etc.

Bata nas mesmas teclas, insista nas mesmas teses permanentemente, mesmo que elas já tenham sido usadas antes. Insista, por exemplo, que o MST irá romper com o Governo Lula desta vez, mesmo que o movimento afirme e demonstre desde o primeiro dia de governo que nunca esteve atrelado.

E quando não for possível tomar como alvo os movimentos sociais, vale mirar nas bandeiras de luta deles, alegando estarem ultrapassadas, deslegitimando-as como parte da solução atual para os problemas do país. Nesse caso, pode-se até reconhecer o valor histórico que bandeiras como reforma agrária cumpriram no Brasil e em outros países, mas deve-se usar essa manobra apenas para recusar essas propostas no presente.

10º) É fundamental saber manipular a dimensão subjetiva do telespectador ou do leitor

Não é apenas com a manipulação dos fatos e com a edição das entrevistas que podemos influenciar na interpretação que os nossos consumidores farão. Na TV, a expressão facial e o tom de voz dos repórteres, dos comentaristas e, sobretudo, dos âncoras, é determinante. A adoção do semblante sério e do tom de voz grave deve indicar a importância do tema.

Além da performance dos jornalistas como atores, é recomendável que o pano de fundo do cenário também traga imagens que gerem medo e desconfiança. O exemplo do Jornal Nacional é o mais ilustrativo: para falar da reforma agrária e dos movimentos que lutam por ela: aparece uma cerca rompida e três vultos disformes – “afinal não são pessoas, são sombras” –, empunhando ferramentas de trabalho como se fossem armas, numa ação de invasão da propriedade (e da casa do espectador).

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