domingo, 31 de março de 2013

Considerações elementares

A seguir, adapto um comentário que fiz sobre o post "Uma concepção autoritária de Estado laico e um discurso que legitima a violência", de Gutierres Fernandes Siqueira, no blog Reflexões teológicas acerca da doutrina e espiritualidade do pentecostalismo, bem aqui. É necessário ler o texto do link para poder entender o meu.

A perspectiva do autor lembra a demissão da Maria Rita Kehl do jornal O Estado de S. Paulo. O princípio é o mesmo. OESP alegou, na época, "incompatibilidade editorial", mas demitiu por conta de um artigo que contrariou a estratégia política do jornal. Colocar a demissão numa "zona de penumbra" é estratégico, pois dificulta constatar o motivo. Você pode escrever uma aberração qualquer, mas não pode colocar em xeque a estratégia social do veículo. Atualmente, todos os jornais funcionam assim porque todos dão suporte a grupos políticos que buscam, acima de tudo, o poder de convencer.

A questão de que africanos ou afrodescendentes são humanos desprovidos de humanidade por conta da maldição de Noé foi utilizada historicamente, sim, para justificar o tráfico negreiro. Há vários artigos científicos a respeito. Obviamente, e como a escravidão no Brasil perdurou até o século XIX, as consequencias dessa perspectiva ainda se fazem presentes em teologias atuais. Ou seja, não é só uma "bobagem do Feliciano", é um fenômeno social que o abrange e o ultrapassa.

Outra coisa é a exploração de mão-de-obra por empresas chinesas dentro do sistema de mercado (empresas privadas) no continente africano. Aqui o mito de Noé não se aplica, a lógica da exploração é outra. São relações de exploração privadas do trabalho, as mesmas que empresários brasileiros aplicam a trabalhadores na Bolívia, por exemplo. Detalhe: muitas dessas empresas têm sede na China, mas não são chinesas. A maior parte é norte-americana (que foram para lá justamente em busca da mão-de-obra chinesa abundante e barata). Algumas, inclusive, contratam milícias armadas para acalmar os ânimos dos trabalhadores nos canteiros de obras africanos.

E por "ditadores que escravizam países há décadas", a pretexto ou não do socialismo, há uma farta produção teórica. E grande parte da agenda de lutas do que se chama "esquerda" tem sido, há muitas décadas, pela libertação de povos do escravismo, do imperialismo etc.

Quanto ao anti-americanismo, o pentecostalismo é um fenômeno norte-americano importado pelo Brasil precisamente sob relações de colonização cultural. Não houve um desenvolvimento pentecostal no Brasil, houve missões estrangeiras que o trouxeram para cá, assim como trouxeram o catolicismo anteriormente, sendo que havia religiões anteriores, línguas anteriores, culturas anteriores plenamente desenvolvidas.

As próprias bíblias de estudo pentecostais são traduções mal-feitas de edições norte-americanas. Essas bíblias norteiam a perspectiva teológica pentecostal no Brasil e dão substância a valores historicamente datados (criados para consubstanciar uma determinada visão política), como, por exemplo, a escravidão como subproduto da maldição de Noé.

Vide, por exemplo, as notas de rodapé das bíblias pentecostais norte-americanas em Gênesis 9:25, disponíveis aqui.

Apoiar o governo do PT não coloca nenhum partido à esquerda no espectro político brasileiro. Fosse assim o PMDB seria esquerda, já que apoia o governo Dilma, assim como o PP, que foi base de apoio durante a ditadura militar. O que dá base à comparação entre a direita religiosa norte-americana e a bancada evangélica no Congresso é a sua agenda política, seu programa partidário. E, nisso, ambas são idênticas (têm que ser, considerando os fatores supra).

Deve-se a essa agenda, inclusive, o que se define como parcelas sociais de risco: mulheres, negros, homossexuais etc. Ou seja, o que se define (equivocadamente) como minoria é a maioria do povo brasileiro, mas uma maioria sob violência constante, simbólica ou real, uma vez que fatores ideológicos consideram que tais grupos devem exercer papéis sociais secundários no campo religioso e, como se não bastasse, estendem tais interpretações à vida pública, à res publica.

É por isso que a "instituição da vítima" não cabe ao evangélico, até porque é uma religião que cresce com todas as garantias legais e sem qualquer aparato repressor estatal desde a sua origem. O que há é uma oposição sistemática no campo das opiniões justamente devido a essas práticas, fenômeno que se interpreta, equivocadamente, e por parte dos próprios evangélicos, como "preconceito a evangélicos". Em outras palavras, esta definição é inadequada para descrever a oposição a valores que, embebidos de uma interpretação moral estrangeira, tentam saltar da esfera privada da religião para a vida pública, coletiva, civil.

E isto nos remete à questão do Estado laico. A definição do artigo está correta, só desconsidera que, historicamente, ela vem sendo sistematicamente descumprida. A própria ideia de uma bancada evangélica, ou de evangélicos que norteiam o mandato segundo a sua concepção religiosa já é frontalmente anti-laicidade. Assim como é anti-laicidade que uma interpretação sobre a maldição de Noé ao neto seja usada, no século XIX e hoje, para substanciar a relativização da dignidade de seres humanos.

A solução, ao meu ver, seria abolir partidos políticos com programas religiosos. Religião é o campo da vida privada, da confissão, da fé. Assim, deve-se garantir ou reafirmar todas as formas de culto e crença, inclusive em suas manifestações sociais, passeatas etc. Mas não se pode admitir que um princípio religioso reivindique um status político, porque isso viola a ideia de laicidade mencionada pelo próprio autor. Uma moral religiosa é sempre particular, é questão de fé.

O problema, nesse caso, seria teológico: cristãos, muçulmanos e judeus compartilham a ideia de que suas respectivas religiões são verdades reveladas, não devendo se submeter a leis humanas no esforço evangelizatório. Ou seja, nesses três modelos a esfera pública é algo a ser evangelizado, convertido.
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Não há, portanto, a perspectiva de que a religião é uma interpretação entre outras possíveis. Essa interpretação é contemporânea, nasceu com a democracia. Por isso, é igualmente alienígena ao cristianismo, ao judaísmo e ao islamismo.

Um problema derivado disso é: o que fazer com concepções religiosas eivadas de colonialismo cultural? Ou, para um desafio teórico mais amplo: há uma religião que não seja derivada de algum colonialismo cultural? Mais ainda: cristianismo, judaísmo e islamismo se manteriam como sistemas doutrinários se começassem a se perceber como religiões, como confissões, entre outras possíveis (eu tenho a impressão que sim)?

Por fim: a questão de como definir objetivamente a verdade se todas as proposições são interpretações da mesma foi um problema epistemológico muito bem sintetizado pelo "princípio da carruagem" de Max Weber. Trata-se, porém, de questão respondida nos seguintes termos: se toda apreensão da realidade é aproximativa, a interpretação mais próxima (da verdade) é aquela que melhor traduz os interesses materiais em disputa.

Conferir, a esse respeito, Adam Schaff (História e verdade), Gyorgy Lukács (História e consciência de classe), Michael Löwy (As aventuras de KM contra o barão de Münchausen) etc.

PS - A frase atribuída a Sartre está errada. E o sentido também.

Atualização às 14h57: Meu interlocutor informa que não entendeu o paralelo entre a demissão de Maria Rita Kehl e de Ricardo Gondim, acrescentando, porém, que o jornal em questão foi O Estado de São Paulo, e não a Folha de São Paulo. Correto, como se pode ver nesta entrevista da psicanalista ao Terra Magazine. Alteração feita no texto.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Três razões para nunca dizer “nem esquerda, nem direita”

Por Rodrigo Guimarães Nunes, em seu blog, reproduzido no Pragmatismo Político

É comum que se responda à frase “nem esquerda, nem direita” com o adágio: “mostre-me alguém que não acredita em esquerda e direita, e eu lhe mostrarei alguém de direita”. Mas este não é sempre o caso, pelo menos no que toca às intenções. Se é verdade que é de má fé o uso mais comum que da frase se faz, há muita gente, talvez cada vez mais, que a usa sinceramente. Aos cínicos, não há nada a dizer; eles sabem (e nós sabemos) de que lado estão. Este texto se dirige, portanto, a quem diz a frase de boa fé, na tentativa de convencê-los de que se trata de um engano tático. Falar em “tática”, aqui, é deixar duas coisas nas entrelinhas: que há motivos legítimos que pelos quais alguns se sentem tentados a falar desta forma, e que as intenções com que o fazem são intenções das quais, em geral, compartilho. Dizer tratar-se de uma questão tática significa, portanto, fazer a pergunta: o uso desta frase é mais benéfico ou, pelo contrário, mais prejudicial a tais intenções? É aqui que se impõe a discussão.

1 – A frase é equívoca.

Seu sentido varia conforme o contexto e, principalmente, quem a usa. Ela significava uma coisa quando era usada, principalmente a partir dos anos 70 e 80, para se referir a lutas e sujeitos políticos que não eram reconhecidos por um lado nem por outro, ou cujas pautas eram, de alguma maneira, resistidas e/ou escamoteadas por ambos: mulheres, negros, índios, gays e lésbicas… Neste caso, queria dizer: “nenhum dos lados nos reconhece e luta por nós, por isso fazemos nossa própria luta”.
No surgimento do movimento ambiental, nos anos 70 e 80, ela tinha este significado e mais um, suplementar: o meio-ambiente, questão que demorou para ser incorporada à agenda tanto da esquerda quanto da direita (e que, na maioria dos casos, o foi no nível do discurso muito mais que na prática), nos diz respeito enquanto seres vivos e habitantes deste planeta, independentemente de preferência política. Logo, seria uma questão “nem de esquerda, nem de direita”, mas de todos.
ser de esquerda direita brasil
“Nem esquerda, nem direita” é uma frase com que convém se cuidar: não só o que se quer dizer com ela pode soar de maneira muito distinta a outros ouvidos, como aquilo que soa a nossos ouvidos pode ser muito distinto da intenção, de boa ou má fé, que outros têm ao usá-la.

Ela tinha outro sentido quando começou a ser usada por atores oriundos da esquerda histórica a partir dos anos 90. Neste caso, justificava a capitulação diante da realidade, agora aceita como absoluta e imutável, da economia de mercado e dos limites atuais da democracia representativa. Foi neste sentido – de “direita e esquerda (históricas) já não existem” – que ela foi a consigna da dita Terceira Via, isto é, a adesão, por parte de forças políticas cuja origem remonta às lutas operárias dos séculos 19 e 20, ao neoliberalismo. “Não há mais esquerda e direita”, no sentido de projetos que de alguma forma fundamental se opõe; “há apenas nuances”. O tempo fez estas nuances cada vez mais imperceptíveis, uma fratura na democracia representativa que foi exposta de forma cristalina pela crise financeira iniciada em 2008 – em que partidos “de esquerda” como Labour (Inglaterra), PSOE (Espanha) e Pasok (Grécia) estão tão implicados quanto seus equivalentes “de direita”. É este o sentido do grito de “não nos representam” que se ouve das multidões na Europa e nos EUA: a democracia representativa, nos países onde supostamente tinha atingido sua forma mais acabada, transformou-se num sistema em que todas as opções são essencialmente a mesma, e todos os partidos respondem essencialmente a um cartel de interesses corporativos financeiros, energéticos e midiáticos.



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Era também com este sentido de ruptura histórica – “já não existe” – que, no mesmo período, ela passou a ser usada por atores provindos da direita histórica. Com o fim do bloco soviético, já não existe mais projetos alternativos, “não há alternativa” (como disse Thatcher) ou “o único sabor no mercado agora é baunilha” (parafraseando Stiglitz); quem não aceita isto, é um dinossauro cujo tempo passou. O triunfalismo da direita de sempre e o oportunismo da “nova” esquerda partidária convergiam nisto: “fora nós, não há nada, e quem não vê isto, está ultrapassado”. Mas convém notar que, conforme a crise atual tem deixado claro, isto se deu não por uma convergência das agendas políticas, mas porque a “nova” esquerda (isto é, a esquerda histórica que se “renovou”) incorporou a agenda da direita, acrescentando-lhe “nuances” que o tempo desbotou por inteiro.
Em virtude desta equivocidade, é uma frase com que convém se cuidar: não só o que se quer dizer com ela pode soar de maneira muito distinta a outros ouvidos, como aquilo que soa a nossos ouvidos pode ser muito distinto da intenção, de boa ou má fé, que outros têm ao usá-la.

2 – A frase abre mão de redefinir o passado.

É no sentido de uma virada ou corte histórico, de novidade, que normalmente se emprega a frase hoje: a partir de um determinado momento, a divisão entre “esquerda” e “direita” teria perdido o sentido. A primeira coisa a fazer é observar que, enquanto o momento histórico apontado como aquele da ruptura varia e sempre encontra um novo “agora”, a frase em si já é usada assim há pelo menos 15 anos. A segunda é perguntar se o desaparecimento desta distinção política implica o desaparecimento das divisões sociais: ainda se pode falar de “pobres” e “ricos”, os que “têm acesso” e os que “não têm acesso”, os que “têm oportunidades” e os que “não têm oportunidades”? Foi nestas divisões, afinal, que a distinção entre esquerda e direita se originou. Introduzir uma distinção em termos de “mais” e “menos” – “mais ou menos” acesso, “mais ou menos” oportunidade – não parece suficiente para eliminar as divisões. No limite, sempre restam aqueles que têm “muito pouco” e os que têm “demais”; uma distância que, nas três últimas décadas tendeu, de forma geral no mundo, a aumentar.
A frase pode ser entendida como um exercício legítimo de distanciamento em relação ao desastre das experiências do “socialismo real”: os gulags, as coletivizações forçadas que levaram a mortes em massa, as ditaduras de um só partido. (Sem embargo, é curioso notar como, enquanto o socialismo real “foi testado e falhou”, o capitalismo real, em seus mais de cinco séculos de colonialismo, escravagismo, miséria sistêmica, negação de direitos e destruição ambiental, sempre nos pede que o julguemos de acordo com seu estado ideal: “é verdade que há muitos problemas – mas um dia haverá abundância para todos!”.) Mas então “esquerda” foi apenas aquilo?
O que dizer dos desejos de igualdade, liberdade e reconhecimento que animaram os indivíduos cujas lutas formaram aquilo que se veio a chamar de esquerda – e que, em muitos casos, acabaram oprimidos pelas instituições (partidos, sindicatos, estados) que contribuíram para criar? Por trás do esforço para escamotear este patrimônio e tornar “esquerda” sinônimo dos horrores feitos sob este nome, existe, no uso cínico que muitos fazem da frase, o desejo de afirmar que lutar contra as divisões que existem e buscar-lhe alternativas inevitavelmente acabará em desastre. É do papel de quem não tem interesse em que as coisas mudem dizer que o “melhor é inimigo do bom” (Voltaire), que “não há alternativa”; é do papel de quem tem o desejo de mudanças não ajudá-los. E se os desejos de mudança ainda existem, é fundamentalmente porque as divisões não acabaram, pelo contrário, estão sempre ressurgindo, em outros limites e de novas formas. E se alguém pode e deve encarnar estes desejos, é justamente aqueles que “não têm” – renda, acesso, oportunidades, reconhecimento.
Aceitar que se reduza a esquerda histórica a seus horrores não seria, então, admitir que os opressores de hoje reduzam aqueles que ontem lutaram e aqueles que hoje desejam àqueles que ontem oprimiram? Sim, os horrores foram muitos. Mas a inventividade e ousadia de milhões de homens e mulheres, quer se identificassem como “esquerda” ou não, que acreditaram na possibilidade de alternativas; e a riqueza daquilo que eles, por mais frágil e temporário que tenha sido, souberam construir – isto também foi o que historicamente se chamou de esquerda. Permitir que esta memória suma por trás da sombra de ditadores é enterrar estes mortos de novo, negar-lhes em morte os sonhos que apenas os vivos poderão, talvez, um dia redimir. É, ainda, negar aos vivos uma herança, e participar da negação da possibilidade de seus desejos por parte daqueles que são… “vivos demais”.

3 – A frase abre mão de redefinir o presente.

Com frequência, hoje, ela é usada de boa fé por quem pensa o seguinte: “existem partidos e instituições que se dizem de esquerda, mas se comportam como direita; e existem aqueles que não são de direita, mas que, mesmo que bem intencionados, estão completamente desconectados do presente e são, portanto, inteiramente irrelevantes”. Neste caso, ela está muito próxima do sentido que movimentos à margem da esquerda “clássica” nos anos 70 e 80 lhe emprestavam: ninguém nos representa, logo temos que fazer nossa própria luta. Existe uma diferença importante entre um momento e outro, contudo, que é precisamente o fato de que, entre aquele momento e agora, houve um outro em que o sentido de “nem esquerda nem direita” foi redefinido – e foi redefinido, como vimos, por quem empregava a frase com o intuito de dizer: “fora nós, não há alternativa, e quem não vê isto, está ultrapassado”.
Quanto à segunda parte do pensamento resumido no parágrafo anterior, é bom deixar claro: dizer que “esquerda” não é sinônimo de “dinossauro” não significa que o mundo não seja habitado por inúmeros dinossauros que se reivindicam de esquerda, aparentemente imunes a qualquer meteoro que os possa extinguir. Mas o que mais importa é a primeira parte, “a esquerda que assim se diz não o é, logo não existe esquerda”. Deixemos de lado sua lógica defeituosa (se eu digo “x não é de esquerda”, eu presumo a existência de alguma coisa chamada “esquerda” com que posso compará-lo); o sentimento que ela expressa é absolutamente real e amplamente compartilhado. O problema, contudo, é que ela aceita os termos impostos por quem se está criticando: se eu digo “não existe esquerda” porque um partido “que se diz de esquerda” não o é, estou consentindo exatamente aquilo que este partido quer me dizer – que ele “é a esquerda”, e fora dele “não há alternativa”. De maneira mais geral, isso significa admitir que a esquerda se reduz àquelas forças constituídas que reivindicam o nome; e, num sentido ainda mais geral, implica aceitar a redução da política à política representativa.
É aí que se encontra todo o impasse hoje: não apenas o sistema representativo colapsou muitas das diferenças que eram relevantes para que se distinguisse “esquerda” e “direita”, ele demonstra imensas dificuldades para reconhecer novas divisões surgidas no seio da sociedade. Mais do que isso, o próprio sistema hoje implica uma divisão, cada vez mais patente, entre “não-representados” e “representados demais”. É do papel do sistema, como mecanismo de auto-defesa, negar que esta e outras divisões existem. Mas o que importa, ainda e sempre, é que elas existem e implicam lados. São os lados que se opõem ao longo dessas divisões, e os sujeitos sociais que aí se confrontam, que devem definir, hoje, o que é esquerda e direita. Quando se diz que o atual momento está “para além de direita e esquerda”, o que se quer dizer é direita e esquerda dentro do espectro representativo representam a mesma (ou cada vez mais a mesma) coisa. Mas é só a este espectro que se reduz a política?
Afirmar os desejos de mudança de hoje passa por reconhecer as divisões que os sustentam, e que aqueles que não querem a mudança têm, portanto, todo interesse em esconder. E se a divisão mais aguda atualmente é que existe entre sub- e sobre-representados, representados “demais” e “de menos”, o primeiro passo para tornar o problema visível é, justamente, negar aquilo que a política representativa tenta afirmar: que ela é o limite absoluto, fora do qual não há nada. É preciso, portanto, dizer que a política se estende para além da política representativa e constituída; que ela hoje se dá, principalmente, naquelas divisões que a política constituída pretende ignorar. É preciso, sobretudo, apontar estas divisões e torná-las claras: há, sim, várias questões hoje que opõe um “eles” e um “nós”.
Com efeito, talvez seja justamente aquele caso em que a inexistência de divisões seria mais fácil de aceitar – o ambiental – o que melhor as exponha. Porque se é verdade que a mudança climática nos põe a todos, enquanto habitantes do mesmo planeta, no mesmo barco – como no Titanic, não estamos todos neste barco do mesmo modo. Pelo contrário, a questão ambiental evidencia diferenças claras quanto à distribuição de recursos, custos e efeitos. A distribuição dos recursos marca divisões tanto entre países e regiões do mundo quanto internas à países e mesmo cidades: tanto internacional quanto nacional e localmente, alguns consomem muitos recursos enquanto outros consomem muito poucos. Os custos, igualmente, se distribuem conforme as linhas da divisão internacional do trabalho, mas também regional e socialmente dentro de cada país: o passivo ambiental e social da exploração de novos recursos cai desproporcionalmente sobre alguns países (o petróleo na Nigéria), regiões (o fracking na Carolina do Norte, nos EUA; a região norte, no Brasil) e, principalmente, um determinado tipo de população (pobres, indígenas); os lucros e benefícios vão desproporcionalmente para países, regiões e grupos mais ricos. Finalmente, os efeitos da mudança climática afetam desproporcionalmente os mais pobres, desde os impactos sobre populações em áreas de risco a migrações forçadas e a suba do preço de alimentos por conta de eventos climáticos extremos. Em outras palavras, a questão ambiental é inteiramente atravessada por questões sociais e políticas, porque ela é inteiramente atravessada por divisões sociais e políticas. Nós podemos querer nos iludir quanto a isto; mas o poderosíssimo lobby exercido pelas indústrias automobilística e petrolífera, do agribusiness, da especulação imobiliária e das construtoras, no Brasil e em todo mundo, sabe muito bem que este é o caso.
O uso de “nem esquerda nem direita” é perigoso, portanto, porque um de seus sentidos – o principal – consiste em negar a existência de divisões. Se eu e meu adversário usamos as mesmas palavras, mas ele tem mais poder que eu para definir seu sentido, é hora de eu começar a usar outras.
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Em 1997, um grupo de movimentos sociais, organizações e intelectuais franceses assinou um manifesto dirigido ao Partido Socialista, que então se apresentava às eleições, com o título: “Nós somos a esquerda”. Em outras palavras, o que eles afirmavam era: “se vocês querem dizer que nos representam e esperam contar com nosso voto, esta é a plataforma que vocês devem adotar”.
Não se trata de propor imitar este exemplo, que, em retrospecto, não foi bem-sucedido, mas sim de ver aí um gesto mais radical que a repetição de uma frase de sentido equívoco e que serve tão bem ou melhor àqueles que têm intenções contrárias às nossas. Mais radical porque, ao invés de situar-se nos termos do debate impostos por aqueles que queremos criticar, se situa diagonalmente a eles, expondo seu ponto cego e tornando a raiz do problema visível de uma forma que a outra frase (que pode ser entendida de muitas formas) não consegue. Trata-se, neste caso, de afiançar a continuidade da existência de divisões e choques de interesse, e de expor o limite da democracia representativa, que cada vez mais trabalha para escamoteá-las; de afirmar que são estas divisões, e não a trajetória passada deste ou daquele político ou deste ou daquele partido, que deve definir por onde passa hoje a linha que separa “esquerda” e “direita” hoje; e, finalmente, de dizer que é a partir desta redefinição que se forma, por trás da “esquerda” – instituída, representativa –, uma outra esquerda que ainda não se fez ouvir, e que se fará ouvir através de ou apesar das instituições que reivindicam este nome.
Trata-se, em suma, de não aceitar a imagem que nos oferecem do presente e do passado, mas de dedicar-se ativamente a uma nova triagem que, descobrindo virtualidades passadas e presentes que se pretendia ocultar, abrem novos futuros possíveis.
Qual seria o conteúdo de um tal “nós”, no Brasil e no mundo, hoje?
Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em filosofia pelo Goldsmits College, Universidade de Londres; atualmente é professor colaborador e pesquisador pós-doutoral CAPES/PNPD-Fapergs no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da da PUCRS, onde coordena o grupo de pesquisa Materialismos (http://materialismos.wordpress.com). É editor da revista Turbulence (www.turbulence.org.uke esporadicamente publica no blog OrangoQuango(http://orangoquango.wordpress.com)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Entrevista com pesquisadora que descobriu agrotóxico no leite materno

Por Manuela Azenha, no Brasil de Fato

A repórter Manuela Azenha esteve em Cuiabá, Mato Grosso, onde assistiu à defesa de tese da pesquisadora Danielly Palma. A ela coube pesquisar o impacto dos agrotóxicos em mães que estavam amamentando na cidade de Lucas do Rio Verde. A seguir, o relato:

Lucas do Rio Verde é um dos maiores produtores de grãos do Mato Grosso, estado vitrine do agronegócio no Brasil. Apesar de apresentar alto IDH (índice de desenvolvimento humano), a exposição de um morador a agrotóxicos no município durante um ano é de aproximadamente 136 litros por habitante, quase 45 vezes maior que a média nacional — de 3,66 litros.

Desde 2006, ano em que ocorreu um acidente por pulverização aérea que contaminou toda a cidade, Lucas do Rio Verde passou a fazer parte de um projeto de pesquisa coordenado pelo médico e doutor em toxicologia, Wanderlei Pignatti, em parceria com a Fiocruz. A pesquisa avaliou os resíduos de agrotóxicos em amostras de água de chuva, de poços artesianos, de sangue e urina humanos, de anfíbios, e do leite materno de 62 mães. A pesquisa referente às mães coube à mestranda da Universidade Federal do Mato Grosso, Danielly Palma.

A pesquisa revelou que 100% das amostras indicam a contaminação do leite por pelo menos um agrotóxico. Em todas as mães foram encontrados resíduos de DDE, um metabólico do DDT, agrotóxico proibido no Brasil há mais de dez anos. Dos resíduos encontrados, a maioria são organoclorados, substâncias de alta toxicidade, capacidade de dispersão e resistência tanto no ambiente quanto no corpo humano.

A repórter Manuela Azenha esteve em Cuiabá, Mato Grosso, onde assistiu à defesa de tese da pesquisadora Danielly Palma. No dia seguinte à defesa, Danielly concedeu uma entrevista ao Viomundo.

A sua pesquisa faz parte de um projeto maior?
Minha pesquisa foi um subprojeto de uma avaliação que foi realizada em Lucas do Rio Verde e eu fiquei responsável pelo indicador leite materno. Mas a pesquisa maior analisou o ar, água de chuva, sedimentos, água de poço artesiano, água superficial, sangue e urina humanos, alguns dados epidemiológicos, má formação em anfíbios.

E essas pesquisas começaram quando e por que?
Começamos em 2007. A minha parte foi no ano passado, de fevereiro a junho. Lucas do Rio Verde foi escolhido porque é um dos grandes municípios produtores mato-grossenses, tanto de soja quanto de milho e, consequentemente, também é um dos maiores consumidores de agrotóxicos. Em 2006, quando houve um acidente com um desses aviões que fazem pulverização aérea em Lucas, o professor Pignati, que foi o coordenador regional do projeto, foi chamado para fazer uma perícia no local junto com outros professores aqui da Universidade Federal do Mato Grosso. Então, começaram a entrar em contato com o pessoal e viram a necessidade de desenvolver projetos para ver a que nível estava a contaminação do ambiente e da população de Lucas.

E qual é o nível de contaminação em que a população de Lucas se encontra hoje? O que sua pesquisa aponta?
Quanto ao leite materno, 100% das amostras indicaram contaminação por pelo menos um tipo de substância. O DDE, que é um metabólico do DDT, esteve presente em 100%, mas isso indica uma exposição passada porque o DDT não é utilizada desde 1998, quando teve seu uso proibido. Mas 44% das amostras indicaram o beta-endossulfam, que é um isômero do agrotóxico endossulfam, ainda hoje utilizado. Ele teve seu uso cassado, mas até 2013 tem que ir diminuindo, que é quando a proibição será definitiva. É preocupante, porque é um organoclorado que ainda está sendo utilizado e está sendo excretado no leite materno.

Foram essas duas substâncias as registradas?
Não, tem mais. Foi o DDE em 100% das mães [que estão amamentando]; beta-endossulfam em 44%; deltametrina, que é um piretróide, em 37%; o aldrin em 32%; o alpha-endossulfam, que é outro isômero do endossulfam, em 32%; alpha-HCH, em 18% das mães, o DDT em 13%; trifularina, que é um herbicida, em 11%; o lindano, em 6%.

E o que essas substâncias podem causar no corpo humano?
Todas essas substâncias tem o potencial de causar má formação fetal, indução ao aborto, desregulamento do sistema endócrino — que é o sistema que controla todos os hormônios do corpo — então pode induzir a vários distúrbios. Podem causar câncer, também. Esses são os piores problemas.

Você disse que as mães foram expostas há mais de dez anos. As substâncias permanecem no corpo por muito tempo?
Permanecem. No caso dos organoclorados, de todas as substâncias analisadas, o endossulfam é o único que ainda está sendo utilizado. Desde 1998 os organoclorados foram proibidos, a pesquisa foi realizada em 2010, e a gente encontrou níveis que podem ser considerados altos. Mesmo tendo sido uma exposição passada, como as substâncias ficam muito tempo no corpo, esses sintomas podem vir a longo prazo.

Durante a sua defesa de mestrado, em que essa pesquisa foi apresentada, os membros da banca ressaltaram o quanto você sofreu para realizar a pesquisa. Quais foram as maiores dificuldades?
A minha maior dificuldade foi em relação à validação do método. Porque, quando você vai pesquisar agrotóxicos, tem de ter uma precisão muito grande. Como são dez substâncias com características diferentes, quando acertava a validação para uma, não dava certo para outra. Então, para ter um método com precisão suficiente para a gente confiar nos resultados, para todas as substâncias, foi um trabalho que exigiu muita força de vontade e tempo. Foi praticamente um ano só para validar o método.

Essas mães que foram contaminadas exercem ou exerceram que tipo de atividade? Como elas foram expostas ao agrotóxico?
Das 62 mulheres que eu entrevistei, apenas uma declarou ter contato direto com o agrotóxico. Ela é engenheira agrônoma e é responsável por um armazém de grãos. Três mães residem na zona rural, trabalhando como domésticas nas casas dos donos das fazendas. É difícil dizer que quem está longe da lavoura não está exposto em Lucas do Rio Verde, pela localização da cidade, com as lavouras ao redor. Mas a maioria das entrevistadas trabalha no comércio, são professoras do município, algumas donas de casa, mas não são expostas ocupacionalmente. A questão é o ambiente do município.

Mas a contaminação se dá pelo ar, pela alimentação?
A alimentação é uma das principais vias de exposição. Mas, por se tratar de clorados, que já tiveram seu uso proibido, então eu posso dizer que o ambiente é o que está expondo, porque também se acumulam no ambiente. No caso da deltametrina e do endossulfam, que ainda são utilizados, o uso atual deles é que está causando a contaminação. Mas, nos usos passados [dos agrotóxicos agora proibidos], a causa provavelmente foi a exposição à alimentação — na época em que eram utilizados — e o próprio meio ambiente contaminado.

Quais são as principais propriedades dessas substâncias encontradas?
Os organoclorados têm em comum entre si os átomos de cloro na sua estrutura, o que dá uma grande toxicidade a eles. Eles têm alta capacidade de se armazenar na gordura, alta pressão no vapor e o tempo de meia-vida deles é muito longo, por isso que para se degradar demora muito tempo. São altamente persistentes no ambiente, tanto nos sedimentos, solo, corpo humano, e têm a capacidade de se dispersar. Tanto que no Ártico, onde eles nunca foram aplicados, são encontrados resíduos de organoclorados.

O professor Pignati comentou que a Secretaria da Saúde dificultou um pouco a pesquisa de vocês, mas que vocês fizeram questão da participação do governo. Por que?
Nós vimos a importância da participação deles porque, quando a exposição da população está num nível elevado e está tendo uma incidência maior de certas doenças, é lá na ponta que isso vai estourar, é no PSF (Programa Saúde da Família). Então, a gente queria que a Secretaria da Saúde acompanhasse para ver em que nível de exposição essa população está e para que tome medidas. Para que recebam essas pessoas com algum problema de saúde e saibam diagnosticar, saibam de onde está vindo e o porquê de tantas incidências de doenças no município.

Se a maioria dessas substâncias não está mais sendo utilizada, o que pode ser feito daqui para frente para diminuir o impacto delas sobre o ambiente e a saúde?
Em relação a essas substâncias que não estão sendo mais utilizadas, infelizmente, não temos mais nada a fazer. Já foram lançadas no ambiente e nos organismos das pessoas. A gente pode parar e pensar no modelo de desenvolvimento que está sendo posto, com esse alto consumo de agrotóxico e devemos tomar cuidado com as substâncias que ainda estão sendo utilizadas para tentar evitar um mal maior.

Como que o agrotóxico pode afetar o bebê?
Esses agrotóxicos são lipofílicos e se acumulam no tecido gorduroso, então ficam no organismo e passam para o sangue da mãe. Através da placenta, como há troca de sangue entre mãe e feto, acabam atingindo o feto. E alguns tem a capacidade de passar a barreira da placenta e atingir o feto. Durante a lactação, o agrotóxico acaba sendo excretado pelo leite humano.

Então, mesmo que não amamente o filho, ele pode nascer com resíduo de agrotóxico?
Sim, isso se a contaminação da mãe for muito elevada.

Foi o caso nas mães [pesquisadas] de Lucas do Rio Verde?
Alguns níveis [encontrados] consideramos altos, até porque o leite humano deveria ser isento de todas essas substâncias. Deveria ser o alimento mais puro do mundo. E a gente vê que isso não ocorre, tanto nos meus resultados quanto em trabalhos realizados no mundo inteiro que evidenciaram essa contaminação. A criança acaba sendo afetada desde a vida uterina e depois na amamentação é mais uma quantidade de agrotóxicos que ela vai receber. Mas é sempre bom lembrar do risco-benefício do aleitamento materno. Nunca se deve incentivar a mãe a parar de amamentar porque seu leite está contaminado. As vantagens do aleitamento materno são muito maiores do que os riscos da carga contaminante que o leite pode vir a ter.

Quais os riscos dessa contaminação?
Os riscos saberemos somente com um acompanhamento a longo prazo dessas crianças. O que pode acontecer são problemas no desenvolvimento cognitivo e, dependendo da carga que o bebê receba desde a gestação, pode causar má formação, que pode só ser percebida mais tarde.

Esse acompanhamento dos efeitos dos agrotóxicos no corpo humano já foi feito ou ainda é uma coisa a fazer?
Quanto ao sistema endócrino, existem evidências. Estudos comprovaram a interferência dos agrotóxicos. Quanto a câncer, má formação e ações teratogênicas (anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal), estudos realizados em animais apontam para uma possível ação dos agrotóxicos nesse sentido. Mas no ser humano não tem como você testar uma única substância. Quando fazem pesquisas, sempre são encontradas mais de uma substância no organismo e, portanto, não se sabe se é uma ação conjunta dessas substâncias que elevou aquele efeito ou se foi a ação de uma substância apenas.

Os resultados da pesquisa são alarmantes?
Foram alarmantes, mas ao mesmo tempo já esperávamos por esse resultado, até porque já tínhamos em mãos resultados da parte ambiental. Vimos que a exposição da população estava muito alta. Com o ambiente contaminado daquela forma, já era esperado encontrar a contaminação do leite, uma vez que o ambiente influencia na contaminação humana também.

O que será feito com esses resultados?
Os resultados já foram encaminhados às mães e, no início do projeto, assumimos o compromisso de, no final, nos reunirmos com elas e explicarmos os resultados. Esperamos que as autoridades do município e de todas as regiões produtoras acordem para o modelo de desenvolvimento que eles estão adotando, porque não adianta ter um IDH alto, ter boa educação e sistema de saúde, se a qualidade de vida em termos de exposição ambiental é péssima.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A PALAVRA DE DEUS E A ESCRAVIDÃO

Dando continuidade ao artigo anterior, "Da maldição de Cam", disponibilizo alguns versículos da bíblia, no Antigo e no Novo Testamento, e pronunciamentos de líderes evangélicos e católicos sobre a escravidão. Ao leitor interessado em utilizar alguma das citações recomendo que se consulte a fonte original, indicada em cada trecho, para que se evite divergências com números de página, traduções, novas edições, editoras etc.

Um detalhe importante é que as traduções bíblicas para a língua portuguesa usam a expressão servidão no lugar de escravidão, mas são as características desta última que se indicam na própria narrativa. Para uma distinção entre ambas, vide os verbetes da Wikipedia, Escravidão e Servidão.




NA BÍBLIA (Antigo Testamento)

1 Regulamentação das surras nos escravos


A reserva bíblica é para não se arrancar os dentes ou se furar os olhos.

Êxodo21:20 Se alguém ferir a seu servo, ou a sua serva, com pau, e morrer debaixo da sua mão, certamente será castigado;
Êxodo21:21Porém se sobreviver por um ou dois dias, não será castigado, porque é dinheiro seu.

Êxodo21:26E quando alguém ferir o olho do seu servo, ou o olho da sua serva, e o danificar, o deixará ir livre pelo seu olho.
Êxodo21:27E se tirar o dente do seu servo, ou o dente da sua serva, o deixará ir livre pelo seu dente.

2 Regulamentação de compra e venda de escravos

Era permitido vender os filhos ou a si mesmo para saldar dívidas.

Êxodo21:7 E se um homem vender sua filha para ser serva, ela não sairá como saem os servos.

Era permitido comprar o irmão como escravo, mas, a cada 50 anos, esse tipo de escravo específico deveria ser liberto. Não havia regulamentação no caso de compra de irmãs escravas.

Levítico25:39 Quando também teu irmão empobrecer, estando ele contigo, e vender-se a ti, não o farás servir como escravo.
Levítico25:40 Como diarista, como peregrino estará contigo; até ao ano do jubileu te servirá;

3 Regulamentação da alforria de escravos:

Se fossem hebreus podiam ser declarados livres após 6 anos de serviços. Se um proprietário desse uma mulher ao escravo, ambos e os eventuais filhos também seriam propriedade do dono.

Se fossem estrangeiros, permaneciam escravos até decisão em contrário do proprietário.

A venda de filhas como escravas tem regulamentação contraditória. Em uma parte diz-se que o homem e a mulher hebreus são libertos igualmente após seis anos:

Deuteronômio15:12 Quando teu irmão hebreu ou irmã hebréia se vender a ti, seis anos te servirá, mas no sétimo ano o deixarás ir livre.

Em outra parte é dito que a filha escrava não é liberta da mesma forma que os escravos homens. Acrescenta-se que, se ela não agradar (sexualmente) ao dono poderá ser comprada de volta por outro hebreu. Se ela se casar com o filho do dono terá que ser tratada como nora. Se o filho arrumar outra mulher, não será diminuido o mantimento da primeira. Mas se nada disso for possível é que ela será liberta, mas sem dinheiro algum.

Êxodo21:7 E se um homem vender sua filha para ser serva, ela não sairá como saem os servos.

Todos os escravos homens hebreus serão libertos no ano do Jubileu. As escravas mulheres, novamente, não é claro, depende de qual verso você lê. Escravos não-hebreus não tem a mesma sorte. Eles serão cativos pela vida toda.

4 Regulamentação do sobre o estupro de escravas

Se um homem violentar uma escrava casada, basta oferecer um animal como sacrifício no templo. A tradução da versão King James Version (KJV) acrescenta que a escrava deve ser também chicoteada. Não há regulamento sobre escravas solteiras.

Levítico19:20 E, quando um homem se deitar com uma mulher que for serva desposada com outro homem, e não for resgatada nem se lhe houver dado liberdade, então serão açoitados; não morrerão, pois ela não foi libertada.
Levítico19:21 E, por expiação da sua culpa, trará ao SENHOR, à porta da tenda da congregação, um carneiro da expiação,
Levítico19:22 E, com o carneiro da expiação da culpa, o sacerdote fará propiciação por ele perante o SENHOR, pelo pecado que cometeu; e este lhe será perdoado.

5 Regulamentação da escravização de prisioneiros de guerra
Estabelece o direito de raptar uma mulher de outro país. Para isso, o interessado deve matar os pais da moça, levá-la para casa, raspar-lhe a cabeça, cortar-lhe as unhas e tirar as suas roupas. Deve também deixá-la de luto por um mês, prazo em que, ao final, autoriza-se manter relações sexuais. Se a raptada não agradar sexualmente ao raptor pode ser expulsa.

Deuteronômio21:10 Quando saíres à peleja contra os teus inimigos, e o SENHOR teu Deus os entregar nas tuas mãos, e tu deles levares prisioneiros,
Deuteronômio21:11 E tu entre os presos vires uma mulher formosa à vista, e a cobiçares, e a tomares por mulher,
Deuteronômio21:12 Então a trarás para a tua casa; e ela rapará a cabeça e cortará as suas unhas.
Deuteronômio21:13 E despirá o vestido do seu cativeiro, e se assentará na tua casa, e chorará a seu pai e a sua mãe um mês inteiro; e depois chegarás a ela, e tu serás seu marido e ela tua mulher.
Deuteronômio21:14 E será que, se te não contentares dela, a deixarás ir à sua vontade; mas de modo algum a venderás por dinheiro, nem a tratarás como escrava, pois a tens humilhado.



 NA BÍBLIA (Novo Testamento)


1 Nas parábolas de Jesus

Jesus utiliza a relação escravo-senhor para exemplificar como um discíuplo deve cumprir as ordens do mestre.


Lucas17:7 Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa?
Lucas17:8 E que, antes, não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois, comerás tu e beberás?
Lucas17:9 Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o que lhe havia ordenado?
Lucas17:10 Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer.

Em outra passagem, Jesus compara o reino dos céus a um rei que, ao fiscalizar o trabalho dos escravos, nota que eles não têm dinheiro e vende os servos, sua a mulher e filhos.


Mateus18:23Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos
Mateus18:24 E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos
Mateus18:25 Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga.

2 O apóstolo Paulo e a escravidão

Em diversos inquéritos disponiveis na Biblioteca Nacional sobre fuga e recaptura de escravos, uma das mais frases mais citadas é a de Paulo que ordena os escravos a obedecerem os senhores tanto quanto obedecem a eles obedecem a Cristo - há, portanto, a clara diferenciação entre escravidão política, material, e a escravidão metafórica, espiritual, utilizada por diversas correntes evangélicas para tentar hiper-interpretar os trechos do Novo Testamento sobre a escravidão.


Efésios6:5 Quanto a vós outros, servos, obedecei a vosso senhor segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo,

Outras passagens ensinam o comportamento próprio dos escravos para seus senhores e vice-versa:

Colossenses3:22 Servos, obedecei em tudo ao vosso senhor segundo a carne, não servindo apenas sob vigilância, visando tão-somente agradar homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor.

Colossenses4:1 Senhores, tratai os servos com justiça e com eqüidade, certos de que também vós tendes Senhor no céu.

1Timóteo6:1 Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra o próprio senhor, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados.

Tito2:9 Quanto aos servos, que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe motivo de satisfação; não sejam respondões
Tito2:10 não furtem; pelo contrário, dêem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador.


3 O apóstolo Pedro e a escravidão

O apóstolo Pedro também apoiava a escravidão e também ensinou os escravos a serem submissos a seus senhores. O argumento é mais desenvolvido que em Paulo. Em declarações dirigidas diretamente aos escravos, o apóstolo dá a entender que Jesus também sofreu e foi injustiçado, logo, os escravos não podem desejar ser melhores que o Filho de Deus.

1Pedro 2:18 Servos, sede submissos, com todo o temor ao vosso senhor, não somente se for bom e cordato, mas também ao perverso;
1Pedro 2:19 porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus.
1Pedro,2:20 Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus.



TEÓLOGOS E LÍDERES CRISTÃOS (CATÓLICOS E EVANGÉLICOS)


"A escravidão foi estabelecida por decreto do Deus Todo-poderoso. Ela é sancionada pela bíblia em ambos os testamentos, desde Gênesis até Apocalipse. Ela existiu em todas as eras, encontrada entre pessoas das maiores civilizações, e nas nações com as maiores proficiências das artes." - DAVIS, Jefferson (presidente dos Estados Confederados da América) citado por PURIM, Paulo Roberto. A bacia das Almas, Ed. Mundo Cristão, 2011, p. 21.

"Escravidão entre os homens é natural, porque alguns são escravos naturalmente, de acordo com o Filósofo (Polit. i, 2). Agora, a escravidão pertence ao direito das nações, como diz Isidoro (Etym, v.4). Portanto os direitos das nações é um direito natural." - AQUINO, Tomás. Suma Teológica I, Ed. Loyola, 2003.

"A causa primeira da escravidão é o pecado, que leva o homem ao domínio do seu semelhante - o que não acontece salvo pela vontade de Deus, no qual não há injustiça, e o qual sabe aplicar punições para todo tipo de ofensas." -
AGOSTINHO, A cidade de Deus, Livro 19, capítulo 15.

"Qualquer um que ensinar um escravo, sob o pretexto da piedade, a desprezar seu mestre e a fugir dos deveres, e a não servir seu mestre com boa vontade e toda a honra, que seja amaldiçoado" -
Declaração do Sínodo de Gangra, 340 e.c. Disponível em: http://averdadeiraeunicaigrejadecristo.blogspot.com.br/2011/12/canones-do-concilio-de-gangra.html

"A escravidão em si, considerada em sua essência natural, de forma alguma contraria as leis naturais e divinas. Não é contrário às leis naturais e divinas vender, comprar, trocar ou dar um escravo." - Instrução 20,
O SANTO OFÍCIO (Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé), 20 de junho de 1866. Biblioteca Apostolica Vaticana. Disponível em: http://www.vaticanlibrary.va/

"Certamente é uma questão de fé que esse tipo de escravidão em que um homem serve seu mestre como seu escravo, seja totalmente legal. Ela é provada pelas Sagradas Escrituras. Também é provado pela razão porque é razoável que todas as coisas que são capturadas em uma guerra justa passam o poder e a propriedade para os vitoriosos, então pessoas capturadas em uma guerra passam a ser propriedades dos captores. Todos os teólogos são unânimes quanto a isso." -
PAPA GREGÓRIO IX, Quaestiones Morales Theologicae, Lyons, 1668 - 1692, Tomo VIII, De Quarto Decalogi Praecepto, Tract. IV, Disp. I, Q. 3. Biblioteca Apostolica Vaticana. Disponível em: http://www.vaticanlibrary.va/

"Agora, meu caro senhor, se, dadas as evidências contidas na Bíblia que provam a legalidade da escravidão entre o povo de Deus em qualquer dispensação, a assertiva ainda é feita, mesmo à mostra dessas evidências, de que a escravidão já foi um dia o maior pecado - em qualquer lugar e sob quaisquer circunstâncias - pode você, ou qualquer homem são acreditar que a mente capaz de tal decisão, não é capaz de pisotear a Palavra de Deus em qualquer outro assunto?" - PASTOR THOMAS STRINGFELLOW, A Brief Examination of Scripture Testimony on the Institution of Slavery (Locust Grove, VA, 1841). Disponível em: http://utc.iath.virginia.edu/christn/chestsat.html

"Se possuir escravos fosse um mal moral, não se pode supor que os Apóstolos inspirados, que não temiam homem algum, e estavam prontos para entregar as suas vidas para a causa de Deus, teriam tolerado por um momento sequer dentro da Santa Igreja... ao provar esse tema justificado pela autoridade das Escrituras, a sua moralidade também é provada, pois a Lei Divina nunca sanciona ações imorais" - PASTOR RICHARD FURMAN
, presidente da Convenção Estadual Batista da Carolina do Sul, Exposition of the Views of the Baptists, Relative to the Coloured Population in the United States in a Communication to the Governor of South Carolina (1838). Disponível em: http://www.yale.edu/glc/archive/1035.htm

"Nós temos uma grande lição para ensinar ao mundo sobre as relações entre as raças: que certas raças são permanentemente inferiores às suas capacidades que outras, e que os Africanos que estão em nossos cuidados só conseguem atingir a quantidade de civilização e desenvolvimento que são capazes - podem apenas contribuir para o benefício da humanidade na posição em que Deus os colocou para nós (isto é, a de escravos)" -
REVERENDO JAMES WARLEY MILES, God in History: A Discourse Delivered Before the Graduating Class of the College of Charleston (March 29, 1863). Disponível em: http://archive.org/details/discoursedeliver00mile

Com informações do blog Razão X Fé

domingo, 10 de março de 2013

A MALDIÇÃO DE CAM



A bíblia narra, em Gênesis 9:18-27, a maldição do patriarca Noé ao neto, Canaã. Noé foi flagrado bêbado e nu pelo filho, Cam, e, irritado, condenou o filho deste, Canaã, a ser escravo dos irmãos Cuxe, Mizraim e Pute e também dos tios Sem e Jafé.

Ainda segundo a bíblia, descendentes de Canaã se proliferaram em duas frentes: uma ocupou a região onde é hoje o Estado de Israel e outra foi para o sudeste da África. E é aqui onde a história fica interessante.

A escravidão, fenômeno antigo na história humana, ganhou força nas américas com a chegada dos europeus. A pilhagem dos recursos do novo continente enriqueceu as cortes europeias e exigiu que a igreja legitimasse o escravismo africano.

Em 1452, o papa Nicolau V (1397-1455) emitiu a bula Dum Diversitas, autorizando os reis da Espanha e de Portugal a escravizarem não-cristãos. O papa mirava os povos do Oriente Médio, que resistiam ao evangelho e suas cruzadas, mas a medida beneficiou os traficantes negreiros a partir do século XV. Porém, desde 324 a igreja proibia, sob pena de excomunhão, que se ajudasse na fuga de escravos.

Apesar de aceitar a escravidão como força de trabalho legítima, o poder papal não a justificava com a narrativa bíblica sobre o desafortunado Canaã. Oficialmente, para a Santa Sé, a escravidão era uma questão de "costume dos povos". As frentes missionárias nos países do Novo Mundo pensavam de forma diferente. Uma carta do padre jesuíta Manuel da Nóbrega (1517-1570), por exemplo, afirma: “Por serdes descendentes de Can e terdes descoberto a vergonha de seu pai deverão os negros serem escravos dos brancos por toda a eternidade”.

A versão dos missionários traz uma dupla corruptela, uma dificuldade que os papas souberam contornar. Primeiro: Noé amaldiçoou o neto, Canaã, e não o filho, Cam. Segundo: a maldição foi sobre Canaã, não sobre seus descendentes.

Apesar de contrariar a própria bíblia, foi a versão modificada que atravessou os séculos e passou a justificar toda forma de atrocidades contra escravos no Novo Mundo. Com o tempo, outra narrativa do livro sagrado, a do genocídio hebreu à cidade que tinha o mesmo nome do neto de Noé, Canaã, foi também atribuída à "maldição de Cam".

A nova versão ficou assim:

1 - o primeiro grupo de descendentes de Cam que se estabeleceu no Oriente Médio foi eliminado pelos hebreus, por ordem divina, para dar cumprimento à maldição de Noé (a trágica narrativa deste genocídio está no livro de Josué, na bíblia). Em 1948, no calor do fim da Segunda Guerra Mundial, o direito de posse do povo judeu sobre a região foi um dos argumentos usados por judeus para criar ali o atual Estado de Israel.

2 - o segundo grupo de descendentes de Cam, que ocupou partes da África (especificamente o Egito, segundo os livros de Salmos 78:51, 105:23-27 e 106:22 e I Crônicas 4:40), serviu para justificar a escravidão ao longo dos séculos XV e XIX. Considerava-se todos os africanos descendentes de Cam, e, como tais, responsáveis pela própria escravidão. A cor da pele, negra, reforçava a versão modificada da narrativa bíblica, servindo-lhe como "prova" - acreditava-se que a cor era a degradação da pele humana, resultante da maldição.

Hoje sabe-se que a África é habitada há cerca de 200 mil anos, bem antes da data atribuída pela própria bíblia ao dilúvio (em torno de 2.000 a.C). Sabe-se também que a variada pigmentação da pele e outras características físicas dos seres humanos (e de outros animais e plantas) resultam da adaptação dos corpos às condições naturais, como calor ou frio, escassez ou fartura de alimentos, variedades de nutrientes, relevos e outros. Com o advento da democracia, sabe-se que narrativas religiosas (e suas modificações) devem ter validade somente para quem nelas acredita, não se aplicando aos demais.

Nada disso impede que o pastor Marcos Feliciano, deputado e atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, propague como se fossem universais as suas concepções religiosas sobre afrodescendentes e homossexuais. Como ele, muita gente está também convencida de que negros são o resultado de uma maldição, homossexuais são uma ameaça à família, sexo antes do casamento invoca a ira divina etc. A força dessas narrativas é tão poderosa que muitos negros, homossexuais, mulheres e outros grupos submetem-se a elas por questões de segurança pessoal, mesmo que não sejam religiosos.

É outra questão, tema para outro artigo, mas a proliferação de crenças contrárias aos direitos humanos no âmbito religioso é um sintoma cristalino do preço que o Brasil paga, e vai pagar por alguns anos, da precarização do seu sistema educacional. Será necessário muito tempo, planejamento e investimentos para corrigir os estragos da agenda neoliberal que viabilizou, entre outras coisas, o protagonismo político de concepções fundamentalistas sobre a vida social. As forças que legitimaram Feliciano e seu eleitorado são as mesmas que, nos anos 80 e 90, levaram milhões ao desemprego e à miséria.

Há que se afirmar o básico, o caráter supra-religioso da democracia. Significa que democracia e religião podem conviver, mas a democracia não pode assimilar os valores morais de uma religião. Religiões abraâmicas têm enorme dificuldade de compreendê-lo, não foram criadas para isso. Não se consideram, por exemplo, opções de fé. Consideram-se, cada uma, verdades irrefutáveis com validade universal. Excetuadas as múltiplas interpretações pessoais, o indivíduo que professa outra crença é considerado, pelo religioso de ordem abraâmica, um condenado à danação eterna enquanto não se arrepender.

Este ponto de tensão, acentuado no caso do cristianismo pentecostal, não pode ser solucionado. Fazer com que os cristãos percebam que ele incentiva a exclusão, a miséria, a perda de direitos e outros problemas sociais, enquanto há recursos para combater tudo isso, é o grande desafio da geração atual. Felizmente não é muito difícil, para alguém racional, entender que é errado combater leis nacionais de controle da violência baseando-se na interpretação de uma religião, qualquer que seja.

Entender que alguém é negro porque foi amaldiçoado por Noé, além de ignorar histologia básica (que, infelizmente, só se aprende nos bancos escolares), reforça um mito criado para justificar um dos crimes mais hediondos de todos os tempos, a escravidão na África. Quem o defende utiliza os mesmos argumentos - depois da sangrenta epopeia da luta por direitos civis nas américas e na própria África - dos antigos traficantes de navios negreiros. De quebra, tambem mostra que ignora o que diz a própria bíblia sobre a maldição.

Para não justificar monstruosidades históricas, como fazem Feliciano e outros, deve-se compreender que qualquer religião vale para quem nela acredita e isto se faz pela fé. Ou seja, não se pode estender assuntos religiosos para a vida geral. Socialmente as pessoas são e devem ser diferentes na medida das suas escolhas individuais. Desconsiderar isso é o caminho mais rápido para uma ditadura, como já ocorreu na história do judaísmo, do islamismo e do próprio cristianismo.

Outra questão é o que fazer quando uma interpretação religiosa choca-se frontalmente contra os direitos elementares dos seres humanos. É possível, para este religioso, entender a sua opção religiosa como opção e não como verdade universal?

Há momentos em que interpretações religiosas evidenciam a sua origem dedicada a dominar a consciência de povos inteiros em prol de um país conquistador qualquer.

Este é um desses momentos.

Por isso escrevi esse artigo.

Se você é cristão, pense nisso.