quarta-feira, 29 de maio de 2013

Epistemologias do Sul

Maria Paula Meneses, na Revista Crítica de Ciências Sociais


Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações:
aprender que existe o Sul;
aprender a ir para o Sul;
aprender a partir do Sul e com o Sul. 1


1
A procura especulativa do conhecimento é uma componente central da cultura humana. Mas o vasto campo das interrogações abrangidas pela reflexão filosófica excede em muito a racionalidade moderna, com as suas zonas de luz e sombra, as suas forças e fraquezas. Foi a partir desta constatação que, em 1995, Boaventura de Sousa Santos propôs o conceito de “epistemologia do Sul”, o qual veio a suscitar vários debates.2 Este número da Revista Crítica de Ciências Sociais ambiciona alargar a discussão sobre a diversidade epistemológica do mundo, apresentando algumas das controvérsias que o tema tem gerado.23456789101112131415161718192021
A constituição mútua do Norte e do Sul e a natureza hierárquica das relações Norte‑Sul permanecem cativas da persistência das relações capitalistas e imperiais. No Norte global, os ‘outros’ saberes, para além da ciência e da técnica, têm sido produzidos como não existentes e, por isso, radicalmente excluídos da racionalidade moderna. A relação colonial de exploração e dominação persiste nos dias de hoje, sendo talvez o eixo da colonização epistémica o mais difícil de criticar abertamente. A relação global etno-racial do projecto imperial do Norte Global vis à vis o Sul Global – metáfora da exploração e exclusão social – é parte da relação global capitalista. Esta hierarquização de saberes, juntamente com a hierarquia de sistemas económicos e políticos, assim como com a predominância de culturas de raiz eurocêntrica, tem sido apelidada por vários investigadores de ‘colonialidade do poder’. Uma dasexpressões mais claras da colonialidade das relações de poder acontece com a persistência da colonização epistémica, da reprodução de estereótipos e formas de discriminação.
A entrada no século XXI, porém, exige uma etnografia mais complexa, que torne visíveis alternativas epistémicas emergentes. Um dos elementos mais críticos desta etnografia é a estrutura disciplinar do conhecimento moderno. As disciplinas académicas representam uma divisão de saberes, uma estrutura organizativa que procura tornar gerível, compreensível e ordenado o campo do saber, ao mesmo tempo que o disciplina, endossando e justificando desigualdades entre saberes e criando outras formas de opressão, que perpetuam a divisão abissal da realidade social; o que não está conforme o definido pela racionalidade moderna volatiliza-se e desaparece.
Este desaparecimento ou subalternização de outros saberes e interpretações do mundo significa, de facto, que estes saberes e experiências não são considerados formas compreensíveis ou relevantes de ser e estar no mundo; sendo estas epistemologias “outras” declaradas não existentes, ou descritas como reminiscências do passado, condenadas a um esquecimento inevitável. Como Boaventura de Sousa Santos tem vindo a argumentar, no campo do conhecimento esta divisão radical entre saberes atribuiu à ciência moderna o monopólio universal de distinção entre o verdadeiro e o falso, gerando as profundas contradições que hoje persistem no centro dos debates epistemológicos.
As críticas pós-coloniais revelam questões fulcrais de conhecimento/poder, especialmente a persistência da dominação epistémica de matriz colonial para além do processo das independências políticas. Neste sentido, o pós- -colonial deve ser visto como o encontro de várias perspectivas e concepções sobre o conhecimento e o poder, um idioma que procura reflectir sobre os processos de ‘descolonização’, que nos espaços da metrópole, quer nos espaços colonizados.
Deste modo, a problemática da pós-colonialidade passa por uma revisão crítica de conceitos hegemonicamente definidos pela racionalidade moderna, como sejam história, cultura ou conhecimento, a partir de uma perspectiva e condição de subalternidade. Como os ensaios que integram esta edição revelam, revisitar estes conceitos integra várias exigências: a histórica, ou seja, a necessidade de repensar todos os passados e perspectivas futuras à luz de outras perspectivas, que não as do Norte global; a ontológica, que passa pela renegociação das definições do ser e dos seus sentidos; e, finalmente, a epistémica, que contesta a compreensão exclusiva e imperial do conhecimento, desafiando o privilégio epistémico do Norte global.
Uma das batalhas políticas mais importantes do século XXI é travada, sem dúvida, em torno do conhecimento. O desafio à hegemonia cultural resultou numa abertura à diversidade de saberes. A preocupação com uma abertura à diversidade epistémica tem sido um dos temas de referência em vários projectos em curso no CES. Com este número temático pretende-se questionar a possibilidade de diálogos entre várias realidades históricas, entre experiências presentes e as suas memórias, as quais apontam continuidades e descontinuidades de poder nas marcas herdadas das relações coloniais.
Os cenários pós-coloniais têm-se desenvolvido no mundo de formas distintas, como os ensaios que integram este número testemunham. As realidades que são hoje designadas como pós-coloniais não podem ter como referencial uma bitola única. A diversidade da “América Latina” é distinta da que ocorre em África ou nos contextos europeus. E, dentro de cada um destes macrocosmos, existe uma infinidade de microcosmos, todos infinitamente distintos entre si. Contudo, se esta diferença espácio-temporal apela para a diferença dentro do Sul, a experiência colonial comum permite a constituição de um Sul global, onde a condição pós-colonial se impõe cada vez mais na análise e caracterização das condições políticas específicas.
A presença de diferentes lógicas e diferentes formas de pensar, exige a possibilidade de diálogo e de comunicação entre culturas. A tradução intercultural, como proposta metodológica, revela o Sul global como um conjunto de epistemologias, extremamente dinâmicas.
Novos actores, novas experiências têm vindo a ser reveladas e discutidas, alargando a base dos debates produzidos pelas críticas da modernidade à herança colonial. Neste ponto, destaco duas questões fundamentais. A primeira refere-se ao questionamento interno do papel da racionalidade moderna na persistência das diferenças imperiais e coloniais existentes no Norte global; a segunda diz respeito ao impacto das propostas pós-coloniais na produção, reprodução e apropriação de conhecimentos quer numa interacção com a ciência moderna, quer para além desta.
Os artigos recolhidos neste número percorrem uma vasta gama de tópicos, coerentes entre si na procura de outros saberes. De forma consistente, contribuem para reforçar um diálogo sobre as políticas do conhecimento, propondo pistas para outras cartografias de experiências e saberes.
O índice deste número temático aponta para a complexidade dos debates epistemológicos na actualidade. A abertura cabe a Boaventura de Sousa Santos, com o título sugestivo de “Para uma epistemologia do Sul: filosofias à venda, douta ignorância e a aposta de Pascal”. A proposta teórica deste artigo assenta na recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais que, por via do capitalismo e do colonialismo, foram subalternizados, transformados nos ‘damnés’ da terra, historica e sociologicamente transformados em objectos ou matéria prima dos saberes dominantes, considerados os únicos válidos. Os conceitos subjacentes à posição defendida são os de sociologia das ausências, sociologia das emergências, ecologia de saberes e tradução intercultural. A partir do resgate de tradições ocidentais marginalizadas, desacreditadas ou esquecidas pelo cânone da ciência e da filosofia modernas, o autor desafia o projecto epistemológico imperial moderno, apontando a presença de epistemologias do Sul dentro do Norte global.
Esta proposta é alvo de análise por João Arriscado Nunes, que, no seu artigo “O resgate da epistemologia”, procura avaliar, a partir de uma análise ontológica, as transformações e crises que ocorreram no seio do projecto da epistemologia moderna. Revisitando de forma crítica o pragmatismo filosófico como a forma mais radical de crítica da epistemologia convencional, o texto explora as possibilidades de criação de um espaço de diálogo entre a crítica como projecto filosófico e a proposta de uma epistemologia do Sul global. Para o autor, este projecto epistémico passa a abranger explicitamente todos os saberes, o que leva à necessidade de estabelecer as condições da sua produção e validação, conforme o ensaio analisa.
O artigo de Nelson Maldonado-Torres, “A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento: modernidade, império e colonialidade”, dá conta do profundo questionamento que a crítica filosófica pós-colonial tem vindo a dirigir às diferenças coloniais e imperiais através da forma como produziram e mantêm as narrativas imperiais. Através de uma crítica detalhada das raízes das concepções modernas do Ocidente, o autor revela as implicações resultantes de uma utilização persistente e acrítica de muitas noções e conceitos repletos de pressupostos coloniais e racistas. Partindo de uma leitura crítica de Fanon, Nelson Maldonado‑Torres avança com uma proposta de diversidade radical e de geopolítica descolonial.
O ensaio “Para decolonizar os estudos de economia política e os estudos pós--coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global” apresenta a proposta de Ramón Grosfoguel para ampliar o debate epistémico, centrando-se numa análise crítica e detalhada da descolonização do capitalismo global. A busca de “outros” projectos utópicos como horizonte de emancipação ganha sentido através do desenhar de cartografias outras das relações de poder do sistema mundo, que este autor conceptualiza como Europeu/Euro--Norte-americano moderno, colonial capitalista e patriarcal.
A abertura à diversidade da produção académica ancorada nos espaços de enunciação é analisada por Paulin Hountondji, cujo ensaio “Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos” é revelador da problemática associada ao local de referência da produção de conhecimento. Os silêncios paradigmáticos sobre a complexidade do passado e do presente africano resultam na exclusão epistémica da realidade social, política e económica do cânone das ciências sociais e humanas, a qual se realiza através da particularização e periferização do “fenómeno africano”. Este imaginário, produto das fantasias epistémicas ocidentais, é posto em causa por Paulin Hountondji, que advoga a apropriação, pelos próprios africanos, do saber acumulado sobre si.
É fundamental que as diferentes culturas possuam imagens concretas sobre si próprias e sobre as outras, assim como das relações de poder e de saber que as unem. Todavia, estas representações reflectem sempre as relações históricas de dominação e de diálogo que as constituíram. A partir desta tese, Maria Paula Meneses, debruçando-se sobre a análise de um suposto caso de tráfico humano em Moçambique, discute a importância das traduções etnográficas como forma de alargar as epistemologias do Sul. Neste ensaio, intitulado “Corpos de violência, linguagens de resistência: as complexas teias de conhecimentos no Moçambique contemporâneo” a autora problematiza os mal- -entendidos resultantes da incompreensão das diferenças culturais, sugerindo que a tradução requer um persistente envolvimento com a aprendizagem da diferença como forma de a compreender e ultrapassar, exigindo envolvimento directo (incluindo lutas entre experiências e saberes) e produzindo transtornos profundos nas expectativas pessoais e culturais.
Vários dos artigos que integram este número temático alertam para o risco do relapso das reificações funcionalistas da “tradição”; a insistência na tradição como forma de contrapor a racionalidade moderna a outros saberes e experiências, considerados tradicionais porque anteriores à modernidade, limita a possibilidade crítica e analítica da estrutura conceptual sobre a qual assentam as concepções ideológicas da modernidade.
No fecho destas reflexões, um texto de Liazzate Bonate questiona a aparente estagnação e falta de criatividade na jurisprudência muçulmana, desafiando o postulado da jurisprudência islâmica clássica sobre o “encerramento dos portões da ijtihad”. A tradição da descentralização da autoridade religiosa e a ausência de uma tensão importante entre as várias escolas de jurisprudência islâmica ajudaram os ulama a manter uma considerável autonomia em relação ao Estado. Simultaneamente, a inexistência de uma autoridade centralizada ou hierarquia entre os estudiosos da religião tornou difícil qualquer tentativa de controlo por parte das autoridades seculares. Numa situação que se distingue do ambiente judaico-cristão, as esferas religiosa e secular existiram de forma separada, o que suscitou, como Liazzate Bonate sugere, que em lugar de um direito divino, o Islão reconhecesse a necessidade do direito sancionado de forma divina.
Finalmente, a encerrar este número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais, Margarida Gomes e Túlio Moniz apresentam-nos, em Espaço Virtual, a avaliação de três páginas electrónicas, espaços abertos à discussão da pluralidade epistémica, testemunhas da vitalidade da discussão e da pesquisa em torno da problematização do conhecimento.
Os desafios e o debate sobre o que constitui conhecimento válido, de quem, para quem e sobre quem, continuam. Tal como outros números temáticos desta Revista, o presente procura contribuir para a descolonização do saber, articulando, de forma consistente, perspectivas críticas à epistemologia moderna, em estreita associação com abordagens contra-disciplinares; em conjunto, procuram alterar os sentidos e explicações dominantes, desafiando as fundações das relações epistémicas imperiais. As epistemologias do Sul procuram incluir o máximo das experiências de conhecimentos do mundo, incluindo, depois de reconfiguradas, as experiências de conhecimento do Norte. Abrem-se pontes insuspeitadas de intercomunicação, algumas das quais são objecto de questionamento neste número temático. A complexidade dos debates em torno do conhecimento – para além da ciência e da técnica – fica aqui esboçada, como proposta de alargamento a uma reflexão mais ampla sobre este mundo tão complexo e diverso.
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Notas

1  Boaventura de Sousa Santos (1995), Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition. New York: Routledge.
2  Vejam-se vários dos artigos que integram os livros organizados por Boaventura de Sousa Santos, nomeadamente Conhecimento prudente para um futuro decente: ‘Um discurso sobre as ciências’ revisitado (Porto: Afrontamento, 2003) e Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais (Porto: Afrontamento, 2004). E ainda, a título de exemplo, Walter Mignolo “Citizenship, Knowledge, and the Limits of Humanity”, American Literary History, 18(2), 2006, 312‑331; Huish, Robert, “Logos a Thing of the Past? Not So Fast, World Social Forum!”, Antípode, 38(1), 2006, 1-6.

domingo, 19 de maio de 2013

POEMA FULEIRO

Era uma vez

Numa terra não muito distante

Uma ruma de cabos eleitorais

Militantes de campanha

De governos passados

Que entraram na máquina pública

Ilegalmente

Sem saber de nada.


Nunca se viu

Nesse lugar

Truculência e selvageria policial

Professor incapaz de açinar o nome

Agressão moral em postos de saúde.


Nunca se viu

Fulano pedir emprego

Em troca do voto

Fazer campanha de grátis

E, contratado, reclamar do serviço

Fazer greve

Exigir aumento.


Nunca se viu.


Numa terra não muito distante.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Chega de subjetividade - entrevista a Beatriz Sarlo

Denise Mota, na revista Trópico

Beatriz Sarlo: crítica ao excesso de importância dada a testemunhos para a compreensão da história

“Quando a lenda vira fato, imprima-se a lenda.” A máxima, ironicamente cunhada por John Ford em “O homem que matou o facínora” (1962), vem sendo obedecida com toda diligência pela história, e é por isso que está no centro da mais nova discussão proposta pela pensadora argentina Beatriz Sarlo em seu recém-lançado “Tiempo pasado, cultura de la memoria y giro subjetivo - Una discusión”.

Contemporânea e participante das transformações engendradas nos anos 60 e 70, Sarlo, quatro décadas depois, oferece um novo desafio: reconstruir o passado a partir de fatos, e não de lendas. Interromper o entendimento do testemunho como “ícone da Verdade”, como grafa à pág. 23 de seu livro. Escrever a história com eqüidade na valorização das fontes de informação. “Eu não confio mais na memória do que nas informações jornalísticas, nos programas políticos, nos livros”, afirma. “A memória, em geral, não expande as dimensões intelectuais de um período.”

O foco de “Tiempo pasado” (ed. Siglo XXI, 168 págs., 25 pesos argentinos -cerca de R$ 18) está posto sobretudo na compreensão dos anos de ditadura na América Latina. Em como -na falta de provas materiais que atestassem os crimes militares- o depoimento em primeira pessoa terminou por se transformar, de recurso para busca da verdade, em algo inquestionável, “sagrado” e visto francamente como superior a qualquer outra maneira de obter informação.

A autora não questiona a pertinência e o papel do testemunho para processos jurídicos e morais. O que debate é o porquê de a memória ter se tornado, nas sociedades contemporâneas, material sobre a qual recai maior dose de confiança. O porquê de o relato em primeira pessoa -relacionado à experiência vivida, seja diretamente aos fatos ou como vivência subseqüente- não estar submetido aos métodos de crítica, comparação e análise dedicados a outras fontes da história. “Não se pode prescindir do relato em primeira pessoa, mas tampouco se pode deixar de problematizá-lo. A idéia da verdade em si é um problema”, argumenta (pág. 163).

Essa “cultura da memória” é questionada por Sarlo em outros aspectos, para além da falta de rigor metodológico que lhe acompanha: a subjetividade natural a que está sujeita; as influências externas que modificam ou pelo menos condicionam o que é “lembrado” pelos participantes diretos dos fatos. Por terem vivido a experiência da qual trata a investigação histórica, recebem uma espécie de salvo-conduto para suas afirmativas e provocam um “giro subjetivo” na compreensão do passado.

Dessa maneira, a história passa a ser erigida por visões individuais, e não pelo acúmulo de dados provenientes de diversos registros e instâncias e que, por intensificar as possibilidades de compreensão do objeto em foco, o tornaria tanto mais complexo quanto completo. Cita Susan Sontag (pág. 26) para deixar clara a pulsão de seu livro: “É mais importante entender do que recordar, ainda que para entender seja necessário, também, recordar”.

A pesquisadora apresenta sua preocupação quanto ao império do depoimento já na capa de “Tiempo pasado”. Nela, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami olha pela nesga de uma porta quase fechada. Ao seu redor, as colinas de Teerã se erguem, altaneiras, aparentemente infinitas. Seu olhar, no entanto, alcança somente uma ínfima parte dessa vastidão: a porção que lhe é permitido vislumbrar pelo vão de uma porta que nem mesmo totalmente aberta está.

Beatriz Sarlo propõe a derrubada dessa porta, para que a história tenha condições de fazer o passado surgir tão amplamente quanto lhe seja possível apresentar-se.

A autora bonaerense de 63 anos, professora de literatura argentina por duas décadas na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e diretora, desde 1978, da revista de cultura e política “Punto de vista”, conversou com Trópico sobre seu livro.

*

A capa de “Tiempo pasado” mostra Kiarostami olhando a paisagem através de uma porta semi-aberta. Reescrever a história a partir da memória seria ter essa visão parcial de algo muitíssimo mais amplo e importante que nos cerca?

Beatriz Sarlo: Gostaria de me referir primeiro à foto de Kiarostami: nela um homem se esforça para olhar pela fenda de uma porta que, na verdade, não está sustentada por nenhum muro, nem à esquerda nem à direita. Se esse homem girasse sua cabeça para os lados, poderia perceber o extenso território que o rodeia e que ele decidiu captar somente através de uma brecha. Acredito que a fotografia trata basicamente sobre o ponto de vista: alguém, que pode ver a partir de outras perspectivas, elege o lugar de visão que lhe parece mais significativo; além disso, como se de uma pequena fenda semi-aberta, ela enquadra a paisagem que é o seu objeto.
Escrever uma história (de ficção ou do que aconteceu no passado) implica sempre a eleição desse ponto de vista de onde se vêem alguns objetos e de onde provavelmente outros se percam. O historiador, assim como o novelista, é consciente dessa eleição, do recorte e das elipses. No caso da memória em primeira pessoa, a eleição se dá de antemão: o eu de quem recorda é a fenda entre as duas partes da porta.
Não se trata de uma escolha, mas de um lugar de enunciação desde o momento no qual se decide falar em primeira pessoa. E muitas vezes esse lugar do eu não é objeto nem de crítica nem de reflexão porque se considera que está investido da autoridade de “quem viveu” a história.

Se a história contemporânea vem sendo entendida a partir de testemunhos e se há uma proposição em seu livro de que a memória seja ferramenta de compreensão, mas não a única prova, isso quer dizer que a história que foi reconstruída a partir de depoimentos não tem solidez?

Sarlo: O que trato de apresentar em meu livro é que uma reconstrução feita somente a partir da memória é insuficiente e provavelmente muito menos rica do que uma reconstrução que trabalhe com todas as fontes possíveis: não só testemunhos, mas também as fontes escritas, que são indispensáveis para a compreensão do movimento das idéias na história.
A memória não só está ancorada na primeira pessoa mas também permanece carregada de todos os rasgos de subjetividade. Inclusive quem, já idoso, recorda o passado, tem uma visão que pode se inscrever no modo nostálgico da reconstrução. “Éramos jovens, idealistas e revolucionários”: esse tema que se repete, no caso argentino, quando falam os protagonistas dos anos 60 e 70.
Eu não confio mais na memória do que nas informações jornalísticas, nos programas políticos, nos livros de onde saíram as idéias que mobilizavam esses jovens. A memória, em geral, não expande as dimensões intelectuais de um período, como a da radicalização política na América Latina, que apoiava suas ações, suas táticas e suas dissensões em livros.
Pessoalmente, me interessa mais e me parece mais significativa a repercussão e a expansão das teses sobre a dependência de Cardoso e Faletto do que a forma em que hoje um ex-militante conta uma história política. Eu quero saber por que a pequena burguesia de origem universitária tornou-se peronista revolucionária e procuro no mundo das idéias porque aí há chaves que não aparecem quando alguém rememora “minha primeira ação política”.
No entanto, os fatos do terrorismo de Estado somente são acessíveis por memórias de testemunhas e sobreviventes, porque não há outras fontes, já que os militares responsáveis as destruíram. Onde não há outras fontes, o testemunho é essencial.

A realização de julgamentos como os que estão sendo enfrentados por Pinochet, ainda que possa reparar juridicamente parte de uma história que se sabe de arbitrariedade, e que seja ferramenta para a democracia, é uma medida de bases históricas frágeis, porque pouco precisa e/ou parcial?

Sarlo: Os julgamentos que foram feitos na Argentina às três juntas militares fundaram a democracia, já que colocaram em um cenário social espetacular os crimes da ditadura. Apesar dos retrocessos e indultos, outros julgamentos continuaram a buscar não somente uma verdade mas também uma condenação.
Nesse sentido, o caso argentino é muito singular. Em outros países da América Latina, funcionaram comissões pela verdade, cujas descobertas não foram à Justiça porque havia pactos políticos que impediram que chegassem ali ou, simplesmente, como no caso do Uruguai, porque em um plebiscito se impôs a posição de que não houvesse julgamentos. Esse plebiscito aconteceu em um momento muito turbulento na Argentina, com insurreições militares devido à condenação dos responsáveis pelo terrorismo de Estado, e provavelmente muitos uruguaios acreditaram que essa instabilidade chegaria a seu país se tivesse início uma etapa de julgamentos.
O caso do Chile é diferente, já que aí a democracia levou quase 15 anos para julgar Pinochet, que não havia se retirado do governo derrotado e sem forças, senão que conservava peso militar e civil.

Fatos da história recente, como o 11 de Setembro ou a Guerra do Iraque, receberam massiva atenção midiática, em um cenário que entendemos como de liberdade de expressão, com diversificação de fontes. Na sua análise, a memória terminou por ocupar preponderância no que se refere a fatos dos anos 60 e 70, mas esse protagonismo tende a perder força quanto mais avancem as possibilidades de produção e de alcance da informação?

Sarlo: A memória e as histórias orais têm peso preponderante quando não há outras fontes, como mencionei anteriormente. A respeito de fatos contemporâneos, em que as fontes são de diferentes tipos, as memórias pessoais têm que ser confrontadas com a massa de informação que sai dos meios escritos e de toda outra forma de conservação dos acontecimentos.
Existem modas, e portanto não sabemos como se construirá, daqui a meio século, a história do nosso presente. A história oral tem muita importância hoje, porque se ocupa de e deixa que se escute a voz de sujeitos que antes eram invisíveis, mas é impossível saber se as tendências da história continuarão a reconhecer à história oral esse lugar de primeira linha. Quando se observa como vem sendo escrita a história nos últimos dois séculos, descobre-se que ela teve diferentes poéticas, diferentes esquemas narrativos, diferentes estruturas de personagens etc.

De forma bastante cautelosa, a sra. reforça em diversos momentos de seu livro a importância dos testemunhos como fonte insubstituível para reparação jurídica, social e moral, particularmente quando trata das ditaduras na América Latina. No entanto, também deixa claro que o depoimento em primeira pessoa não é superior frente a outras fontes de informação. Preocupou-lhe que a discussão proposta por “Tiempo pasado” não fosse entendida com a necessária serenidade, ainda mais dadas as circunstâncias atuais de seu país, que, assim como o Uruguai, continua a debater publicamente e a investigar os crimes da ditadura?

Sarlo: Sabia que estava escrevendo um livro que ia na contramão de um discurso progressista oficial sobre o passado recente. Hoje o discurso que prevalece é o de uma memória mais ou menos idealizada dos anos 60 e 70, como se, para manter a condenação ao terrorismo de Estado, fosse necessário montar uma versão não completamente detalhada e explícita de quem fomos aqueles que fizemos parte da esquerda política.
Para evitar a chamada “teoria dos dois demônios” (que afirmaria que o terrorismo de Estado foi simétrico ao terrorismo de guerrilha, o que é um absurdo porque jamais a responsabilidade do Estado pode ser comparada à de um cidadão), difunde-se uma versão da década de 70 em que a violência política de esquerda permanece sem ser questionada e não é submetida a críticas, salvo a exceção de Pilar Calveiro (ex-militante de esquerda argentina, pesquisadora e doutora em ciências políticas pela Unam – Universidade Nacional Autônoma do México; autora de livros como “Politica y/o Violencia”, 2005).

Ao final de “Tiempo pasado”, a sra. aponta a literatura como expressão em que se olha de fora para dentro, “como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não somente padecê-lo”. É humanamente impossível transformar um pesadelo pessoal em ferramenta para a vida?

Sarlo: Não sei o que pode ser essa transformação. Mas sei que a densidade formal e semântica da literatura permite ver a própria experiência “como se estivéssemos distante” e, portanto, permite refletir um pouco.

Está definitivamente abandonado seu projeto de fazer uma biografia intelectual das décadas de 60 e 70, idéia que está na origem da investigação que resultou em “Tiempo pasado”?

Sarlo: Ainda estou muito próxima de “Tiempo pasado”, envolvida com a discussão do livro. Deverão passar alguns anos antes que, sem a pretensão de estabelecer alguma verdade, talvez tome a primeira pessoa. Mas inclusive, se passarem esses anos, não tenho certeza de que vá fazer isso. Penso (e isso é completamente pessoal) que somente toleraria usar a primeira pessoa se conseguisse construir uma escrita em torno a isso. E quem pode prever que vai conseguir fazer uma escrita do eu?

sexta-feira, 3 de maio de 2013

A poética da relação

Édouard Glissant, no Buala

O texto é um artigo do autor sobre seu livro, Poétique de la Relation (Paris: Gallimard, 1996), sem tradução no Brasil (há uma edição em Portugal pela Sextante). Publico porque considero os conceitos avanços notáveis sobre as noções de "tolerância", "diversidade" e outras.

Do exílio à errância, a medida comum é a raiz, que em ambos os casos falta. É por aí que há que começar12.

Gilles Deleuze e Félix Guattari criticaram os conceitos de raiz e, porventura, de enraizamento. A raiz é única, é uma origem que de tudo se apodera e que mata o que está à volta; opõem‑lhe o rizoma, que é uma raiz desmultiplicada, que se estende em rede pela terra ou no ar, sem que nenhuma origem intervenha como predador irremediável. O conceito de rizoma mantém, assim, a noção de enraizamento, mas recusa a ideia de uma raiz totalitária.

O pensamento do rizoma estaria na base daquilo a que chamo uma poética da Relação, segundo a qual toda a identidade se prolonga numa relação com o Outro.

Estes autores fazem um elogio do nomadismo, presumível libertador do ser, talvez por oposição à sedentariedade, cuja raiz intolerante fundaria a lei. Kant, no início da Crítica da razão pura, faz já corresponder os céticos aos nómadas, e diz também que de vez em quando «eles rompem com o laço social». Parece assim estabelecer uma correlação entre sedentarismo, verdade e sociedade, por um lado, e nomadismo, ceticismo e anarquismo, por outro. Esta aproximação a Kant sugere‑nos que o interesse do conceito de rizoma parece provir do seu anticonformismo, mas que daí não se poderia inferir uma função de subversão, uma capacidade do pensamento rizomático de abalar a ordem do mundo, pois assim regressaríamos à pretensão da ideologia que esta teoria pretende contestar3.

Mas não estará o nómada sobredeterminado pelas suas condições de existência? E o nomadismo por uma obediência a contingências constrangedoras, e não por um desejo de liberdade? É o caso do nomadismo circular: muda de direção à medida que partes do território ficam esgotadas, a sua função é garantir, através dessa circularidade, a sobrevivência de um grupo. Nomadismo dos povos que se deslocam nas florestas, das comunidades arawaks que navegavam de ilha em ilha nas Caraíbas, dos contratados agrícolas que peregrinam de quinta em quinta, da gente do circo que atua de terra em terra, todos eles movidos por um movimento determinado em que nem a audácia nem a agressão intervêm.

O nomadismo circular é uma forma não intolerante da sedentariedade impossível.
Oponhamos‑lhe o nomadismo invasor, o dos hunos, por exemplo, ou o dos Conquistadores, que tem como objetivo conquistar terras através do extermínio dos seus ocupantes. Este nomadismo não é prudente nem circular, não mede os seus efeitos, é um salto absoluto em frente: um nomadismo em flecha. Mas os descendentes dos hunos, dos vândalos ou dos visigodos, tal como os descendentes dos Conquistadores, que impunham os seus clãs, acabaram por se ir estabilizando, fundindo‑se nas suas conquistas. O nomadismo em flecha é um desejo devastador de sedentarismo4.

Edouard Glissant  
Edouard Glissant

Nem num caso nem noutro, o nomadismo circular ou o nomadismo em flecha, se manifesta a raiz. Aquilo que «agarra» o invasor, antes de ser cativado pela sua conquista, é o em‑frente; e aliás também não poderia dizer‑se que a sedentariedade forçada constituiria o verdadeiro desenraizamento do nómada circular. Do mesmo modo, o sofrimento do exílio não pesa nesses casos, nem o gosto pela errância se acentua. A relação com a terra é demasiado imediata, ou predadora para que a preocupação de identidade (essa reivindicação ou esse conhecimento de uma linhagem inscrita num território) a ela esteja ligada. A identidade adquirir‑se‑a quando as comunidades tiverem tentado, através do mito ou da palavra revelada, legitimar o seu direito a essa posse de um território. Afirmação que pode surgir muito antes da sua resolução efetiva.

Daí às múltiplas formas da legitimidade, frequentemente e longamente contestada, que em seguida traçarão as dimensões feridas ou apaziguadoras do exílio ou da errância.

Na Antiguidade ocidental, o homem no exílio não se sente inferiorizado nem desapossado, porque não se sente oprimido pela falta – em relação a uma nação, que para ele ainda não existe. Parece até que uma experiência da viagem e do exílio tenha sido então considerada necessária à realização do ser, a acreditar nas biografias de inúmeros pensadores gregos, como Platão e Aristóteles. Platão será um dos primeiros a tentar fundar a legitimidade, não ainda – ou já não – da comunidade num território, mas da Cidade na racionalidade das suas leis. Num momento em que Atenas, a sua cidade, estava já ameaçada por uma desregulação «final»5.

Nessa época, a identificação faz‑se com uma cultura – que é concebida como civilização – e não ainda com uma nação6.

O Ocidente pré‑cristão partilha esta maneira de ver e de sentir com a América pre‑colombiana, com a África dos grandes conquistadores e com a maior parte dos países da Ásia. Foi contra a generalização (a pulsão de um identitário universal) promovida pelo Império Romano que primeiro se exerceram as ações sucessivas do nomadismo em flecha e da sedentarização. O particular resiste então ao universal generalizador, para em breve engendrar, em círculos concêntricos (províncias, depois nações), os particularismos.

A ideia de civilização ajudará pouco a pouco a manter juntos esses contrários, que inicialmente só se identificam por oposição ao Outro.

Na época dos nomadismos invasores, a paixão de se definir adquire a feição da aventura pessoal. Ao longo dos seus périplos, os conquistadores constituem impérios que se desmoronam com a sua morte. As suas capitais deslocam‑se com eles. «Roma não está em Roma, está sempre onde eu estou.» Não é a raiz que importa, mas sim o movimento. O pensamento da errância não se destaca, travado pela realidade insana desse nomadismo demasiado funcional, cujos fins nunca teria podido conhecer.

Centro e periferias equivalem‑se.

Os conquistadores são a raiz móvel e efémera dos seus povos.

É pois aí, no Ocidente, que o movimento se torna fixo e que as nações se pronunciam até se repercutirem no mundo. Essa fixação, esse enunciado e essa expansão requerem então que a ideia de raiz ganhe pouco a pouco esse sentido intolerante que Deleuze e Guattari certamente pretendiam recusar. Se regressamos a esse episódio ocidental, é precisamente porque ele proliferou pelo mundo.

O modelo propagou‑se.

A maior parte das nações que se libertaram do colonialismo tenderam a formar‑se em torno da ideia de poderio, pulsão totalitária da raiz única, e não de uma relação fundadora com o Outro. O pensamento cultural de si era dual, opondo o cidadão ao bárbaro. Não houve nada mais absolutamente oposto ao pensamento da errância do que esse período da história das humanidades em que as nações ocidentais se constituíram e que depois se repercutiram no mundo.

Esse pensamento da errância, que ia a contracorrente da expansão nacionalista, transforma‑se então «em» aventuras muito pessoais – tal como o aparecimento das nações fora precedido da deriva dos construtores de impérios. A errância do trovador, ou a de Rimbaud, não é ainda a vivência densa (opaca) do mundo, mas é já o desejo apaixonado de contrariar a raiz. Ao mesmo tempo, a realidade do exílio é sentida como uma falta (temporária), sendo interessante notar que ela dirá, antes de mais, respeito à língua. No Ocidente, as nações constituíram‑se sobre o modo da intransigência linguística, e o exilado confessa de bom grado que aquilo que mais o afeta é a impossibilidade de comunicar na sua língua. A raiz é monolingue. Com o trovador, com Rimbaud, a errância é vocação, que apenas se diz pelo desvio. É o apelo, e ainda não a plenitude, da Relação.

Contudo, e isso é um imenso paradoxo, os livros fundadores da comunidade, o Antigo Testamento, a Ilíada, a Odisseia, as Canções de Gesta, as Sagas, a Eneida ou as epopeias africanas eram livros de exílio e, muitas vezes, de errância. Essa literatura épica é espantosamente profética: diz a comunidade, mas através da relação do seu fracasso aparente ou, em todo o caso, da sua superação, e a errância, considerada como tentação (desejo de contrariar a raiz) e quase sempre sentida nos factos. Os livros coletivos do sagrado ou da historicidade contêm em si o exato contrário das suas turbulentas pretensões. Neles, a legitimidade da posse de um território, sempre mitigada pela relativização da própria noção de território. Livros do despertar para a consciência coletiva, eles introduzem assim a percentagem de mal‑estar e de angústia que permitem ao indivíduo reencontrar‑se, sempre que ele se torna um problema para si mesmo. A vitória dos gregos na Ilíada depende de um embuste, Ulisses, ao regressar da sua Odisseia, é apenas reconhecido pelo seu cão, o David do Antigo Testamento é desonrado pelo adultério e pelo homicídio, a Canção de Rolando é a crónica de uma derrota, as personagens das Sagas estão marcadas pelo signo de uma fatalidade incontornável, e assim por diante.

Esses livros fundam algo de muito distinto de uma certeza absoluta, dogmática ou totalitária (independentemente da utilização religiosa que deles será feita): são livros de errância, para além da procura ou do triunfo do enraizamento que o movimento da História exige.

Alguns desses livros são dedicados à suprema errância, como o Livro dos mortos egípcio. Precisamente aquilo cuja função é consagrar a comunidade intransigente, já transige, matizando, portanto, o triunfo comunitário em errâncias reveladoras 7.

Em L’intention poétique e Le discours antillais (de que a presente obra constitui um eco reformulado, ou a repetição em espiral), abordei esta dimensão de uma literatura épica, interrogando‑me se nos dias de hoje não nos seriam ainda necessárias obras fundadoras que se baseassem numa semelhante dialética do desvio: afirmando, por exemplo, o rigor político, mas também o rizoma da relação múltipla com o Outro, e fundando as razões de viver de qualquer comunidade numa forma moderna do sagrado, que seria, em suma, uma poética da Relação8.

Este movimento (entre outros, noutras regiões do mundo, que serão igualmente decisivos) levou, assim, do nomadismo primordial à sedentarização das nações ocidentais e depois à Descoberta e à Conquista que se cumpriram, até aos limites do místico,  na Viagem.

Nesse percurso, a identidade, pelo menos no que toca a esses viajantes ocidentais que forneceram a massa dos descobridores e dos conquistadores, reforça‑se antes de mais de modo implícito («a minha raiz é a mais forte»), e em seguida é exportada explicitamente como valor («o ser vale pela sua raiz9»), obrigando os povos visitados ou conquistados à longa e dolorosa busca de uma identidade que deverá sobretudo opor‑se às desnaturações provocadas pelo conquistador. Variante trágica da procura de identidade.

Durante um período histórico de mais de dois séculos, a identidade afirmada dos povos terá de ser conquistada contra os processos de identificação ou de aniquilamento desencadeados por esses invasores. Se no Ocidente a nação é antes de mais um «contrário10», para os povos colonizados a identidade será, em primeiro lugar, um «oposto a», isto é, em princípio, uma limitação. O verdadeiro trabalho da descolonização terá sido superar esse limite.

A dualidade do pensamento de si (há o cidadão, e há o estrangeiro) repercute‑se na ideia que se tem do Outro (há o visitante e o visitado; aquele que parte e aquele que permanece; o conquistador e a sua conquista). O pensamento do Outro só deixará de ser dual no momento em que as diferenças forem reconhecidas. O pensamento do Outro «compreende», a partir de então, a multiplicidade, mas de uma maneira mecânica que cultiva ainda as subtis hierarquias do universal generalizante. Reconhecer as diferenças não obriga a envolver‑se na dialética da sua totalidade. No limite, «posso reconhecer a tua diferença e pensar que ela te prejudica.

Posso pensar que a minha força está na Viagem (faço a História) e que a tua diferença é imóvel e muda». Há um passo a dar antes de entrar verdadeiramente na dialética da totalidade. Parece aqui que, ao contrário da mecânica da Viagem, essa dialética é movida pelo pensamento da errância.

foto de Jordi Burchfoto de Jordi Burch

Se supusermos que a procura da totalidade, a partir desse contexto não universal das histórias do Ocidente, passou pelos seguintes estádios:

– pensamento do território e de si (ontológico, dual)
– pensamento da viagem e do outro (mecânico, múltiplo)
– pensamento da errância e da totalidade (relacional, dialético), teremos de convir que esse pensamento da errância se afasta implicitamente da desestruturação das compacticidades nacionais, há pouco triunfantes, e, simultaneamente, dos aparecimentos difíceis e incertos das novas formas de identidade que nos solicitam. Assim, o desenraizamento pode contribuir para a identidade e o exílio tornar‑se proveitoso, quando são vividos não como uma expansão de território (um nomadismo em flecha) mas como uma procura do Outro (por nomadismo circular). O imaginário da totalidade permite esses desvios, que afastam do totalitário.

A errância não provém de uma renúncia nem de uma frustração em relação a uma situação de origem que se tivesse deteriorado (desterritorializado) – não é um ato determinado de recusa, nem uma pulsão incontrolável de abandono. Por vezes, é abordando os problemas do Outro que nos encontramos a nós mesmos; as histórias contemporâneas fornecem‑nos alguns exemplos flagrantes disso: por exemplo, o trajeto de Frantz Fanon, da Martinica para a Argélia. É bem a imagem do rizoma, que nos faz reconhecer que a identidade não está só na raiz, mas também na Relação. É que o pensamento da errância é também pensamento do relativo, que é o substituído mas também o relatado. O pensamento da errância é uma poética, que subentende que a certo momento ela se diz.
O dito da errância é o da Relação.

Contrariamente ao nomadismo em flecha (descoberta ou conquista), contrariamente à situação de exílio, a errância comunica com a negação de todo o polo ou de toda a metrópole, estejam eles ligados ou não à ação conquistadora de um viajante. Não nos cansamos de repetir que o que este exportava em primeiro lugar era a sua língua. Por isso as línguas do Ocidente eram consideradas veiculares e faziam as vezes de metrópoles. Por oposição, o dito da Relação é multilingue. Além das imposições das potências económicas e das pressões culturais, ele opõe‑se em direito ao totalitarismo das intenções monolingues.

Poderá parecer, neste caso, que nos afastámos bastante dos sofrimentos e das preocupações daqueles que suportam a injustiça do mundo. A sua errância é, com efeito, imóvel. Não viveram o luxo do desenraizamento, melancólico e extrovertido. Não viajam. Mas para eles o saber da raiz passa agora a ser‑lhes dado pela intuição da Relação: é essa uma das constantes do nosso mundo. Viajar já não é o lugar de um poder, mas o momento de um prazer, se bem que privilegiado. A obsessão ontológica do conhecimento dá lugar à fruição de uma relação, de que o turismo é a forma elementar e, a maior parte das vezes, caricatural. Os que ficam sobressaltam‑se com essa paixão do mundo, comum a todos. Acontece‑lhes sofrer os tormentos do exílio interior.

Não falo daqueles que, no seu próprio país, suportam a opressão de um Outro, como é o caso dos negros da África do Sul. Porque neste caso a solução é visível, a resolução determinada; só a força se lhe opõe. Falo desse exílio interior que atinge os indivíduos, quando as soluções não são, ou não são ainda, no que toca às relações de uma comunidade com o seu meio, por ela globalmente consentidas. Essas soluções, esboçadas através de resoluções precárias, permanecem o apanágio de alguns, que assim são marginalizados.

O exílio interior é a viagem para fora dessa prisão. Introduz de forma imóvel e exacerbada o pensamento da errância. A maior parte das vezes, distrai‑se em compensações parciais de prazer, em que o indivíduo se consome. O exílio interior predispõe ao conforto das coisas, que não distrai da angústia.

Se o exílio pode pulverizar o sentido da identidade, o pensamento da errância, que é pensamento do relativo, quase sempre o reforça. Não é certo, pelo menos aos olhos de um observador, que a errância perseguida dos judeus tenha reforçado muito mais o seu sentido identitário do que a sua fixação em terra palestina. Os exílios dos judeus transformavam‑se em vocação de errância, por referência a uma terra ideal, cujo poder poderá ter sido delido pela terra concreta (o território) eleita e conquistada. Mas isto trata‑se tão‑só de conjeturas minhas. Porque se se pode comunicar no imaginário da errância, as experiências dos exílios são incomunicáveis.

O pensamento da errância não é nem apolítico nem antinómico de uma vontade de identidade que no fundo mais não é do que a procura de uma liberdade num determinado meio. Se ela contraria as intolerâncias territoriais, à predação da raiz única (que hoje torna tão difíceis os processos identitários), é porque, na poética da Relação, o errante, que já não é o viajante, nem o descobridor, nem o conquistador, procura conhecer a totalidade do mundo e sabe já que nunca conseguirá fazê‑lo – e que é aí que reside a beleza ameaçada do mundo.



O errante recusa o estatuto universal, generalizante, que reduzia o mundo a uma evidência transparente, atribuindo‑lhe um sentido e uma finalidade pressupostos. Mergulha nas opacidades da parte do mundo a que acede. A generalização é totalitária: elege, do mundo, um painel de ideias ou de factos que destaca e que tenta impor, fazendo viajar os modelos. O pensamento da errância concebe a totalidade, mas renuncia de bom grado à pretensão de a comandar ou de a possuir.

Os livros fundadores ensinam que a dimensão do sagrado nunca é mais do que o aprofundamento do mistério da raiz, matizado pelas variantes da errância. Na verdade, o pensamento da errância é postulação do sagrado que nunca se revela e que nunca se apaga. Lembremo‑nos que Platão, que conhecia o poder do Mito, desejara banir os poetas, impositores do obscuro, para longe da República. Desconfiara da palavra abissal. Não a encontraremos nós nos meandros imprevisíveis da Relação? Nada obriga a pensar que as humanidades não conseguirão transmutar, nesse pensamento da errância, as opacidades anteriormente enraizadoras do Mito e as claridades desmultiplicadas da filosofia política, conciliando Homero e Platão, Hegel e o griot africano.

Mas para isso haveria que adivinhar se, vindas de outras partes do mundo, e agindo ainda subterraneamente, outras suculências da Relação não poderão rasgar de súbito outras vias, contribuindo em breve para corrigir as exclusões etnocêntricas e simplificadoras que uma tal perspetiva terá podido suscitar.

Quanto ao domínio da literatura, duas criações contemporâneas fazem, quanto a mim, o jogo da errância e da Relação, sem que seja necessário que eu as isole num Panteão que elas recusariam.
A obra de certo modo teológica de William Faulkner. Tratar‑se‑ia aí de escavar as raízes de um lugar evidente, o sul dos Estados Unidos. Mas a raiz adquire a aparência de um rizoma, as certezas não estão fundadas, a relação é trágica. A disputa acerca da fonte, o enigma sagrado, mas agora inexprimível, do enraizamento, fazem desse universo de Faulkner um dos momentos palpitantes da moderna poética da Relação. Em tempos, lamentei que um tal universo não se tivesse expandido mais: nas Caraíbas, na América Latina. Mas essa reação provinha, porventura, do despeito inconsciente de quem se sentira excluído.

A obra errática de Saint‑John Perse em busca daquilo que se move, daquilo que tende ao absoluto11. Obra que convida à totalidade – até à exaltação irredutível de um universal que se esgota, de tanto ser dito.

(…)



  • 1. Ao contrário das notas com asterisco, as notas com número estão agrupadas no final do livro.
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  • 2. O poeta Monchoachi organizou na cidade de Le Marin, no sul da Martinica, uma série de conferências sobre este tema da errância. Creio que fui um dos primeiros contactados para o abordar neste contexto. As Caraíbas são terra de enraizamento e de errância. Os exílios antilhenses testemunham‑no.
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  • 3. Kant, na Crítica da razão pura, apresenta deste modo o que diz sobre a Relação: A unidade incondicionada da relação isto é ela mesma, não enquanto inerente mas enquanto subsistente (Pléiade, vol. I, p. 1468) Quer esta relação contribua para a unidade sistemática dos fins (princípio moral) ou para a unidade dos conhecimentos (princípio arquitetónico), podemos reconhecer‑lhe aqui duas qualidades: antes de mais, que ela é o elo que garante a permanência do pensamento no indivíduo; em seguida, que ela faz parte da substância. Esta diferença que Kant parece estabelecer entre substância e subsistência é preciosa. Seja como for, a ideia de Relação não intervém nele enquanto abertura para a pluralidade, na medida em que ela seria totalidade. Para Kant, a pluralidade tem lugar no tempo, não no espaço. No espaço há existência, que parece não se diferenciar em si mesma.
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  • 4. Não nos deteremos aqui na ideia de que esta devastação tenha podido desencadear, em relação ao declínio do Império Romano, por exemplo, um retorno positivo da história e engendrar um negativo fecundante. Subentende‑se geralmente que o nomadismo em flecha dá origem a novas eras, enquanto o nomadismo circular permaneceria endógeno e sem devir. Trata‑se, pura e simplesmente, de legitimar o ato da conquista.
  • 5. O Diálogo platónico substitui a função do Mito. Este funda a legitimidade da sua posse de um território, apoiando‑se quase sempre nos rigores não interrompidos de uma filiação. O Diálogo funda a justiça da Cidade sobre a revelação de uma razão que organiza as sucessões rigorosas da ordem política.
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  • 6. Através da noção ocidental de civilização, resume‑se o adquirido de uma sociedade, para o projetar, de imediato, num devir que é também e quase sempre uma expansão. Quando se diz civilização, torna‑se implícita a própria vontade de civilizar. Esta ideia está ligada à paixão de a impor ao Outro.
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  • 7. Hegel mostra, no Livro III da Estética, como as obras fundadoras de comunidades surgem, de modo espontâneo, no momento em que a consciência ingénua se assegura da sua legitimidade – sejamos claros: do seu direito à posse de um território. Nesse sentido, o pensamento épico está muito próximo do mito. 
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  • 8. A superação necessária do mítico ou do épico foi dada na razão política que organiza a Cidade. A palavra épica é obscura e abissal; trata‑se de uma das condições da ingenuidade. A razão política é evidente. Superar pode ser a contradição.
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  • 9. Isto é, essencialmente pela língua, como já dissemos.
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  • 10. A ideia de civilização manterá juntos estes contrários: o universal generalizante será o princípio da sua ação no mundo, que realizará os conflitos de interesse numa conceção finalista da História.
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  • 11. A tensão poética para a totalidade em nada recusa as minúcias daqueles que se empenham num determinado lugar. Não há contradição na matéria, e Saint‑John Perse não ofusca Faulkner. É, antes, possível que o demasiado‑dito do universal, em que Saint‑John Perse tanto se arriscou, se disperse diante da Relação, sem a tocar verdadeiramente. O discurso generalizante nem sempre acompanha o grito dos povos nem dos países que se nomeiam. Aliás, o espírito universalizante apoia‑se de bom grado na tendência para negar histórias e tempos particulares – periféricos – (Borges ou Saint‑John Perse), e a aspiração a esse universal tende a negar espaços e devires singulares (V. S. Naipaul). Através de uma tensão da mesma natureza, muitos intelectuais do nosso país, em vez de arriscarem em obras as suas próprias imperfeições fecundas, deleitam‑se com as perfeições realizadas, e tranquilizadoras, do Outro. Chamam‑lhes universal. Sentem nisso um amargo e legítimo prazer, que os autoriza a elevarem‑se acima daquilo que poderiam ter podido partilhar em redor. O seu afastamento em relação a uma linha de medida comum leva‑os assim, tão calmamente, a ajuizar sobre aquilo que balbucia em sua volta. Mas essa serenidade é crispada.