segunda-feira, 29 de julho de 2013

O ARTIGO DE JAMES PETRAS SOBRE O BRASIL

O sociólogo norte-americano James Petras, um dos mais refinados estudiosos da política e da economia mundial, publicou no último dia 21, em seu site (em inglês), um artigo poderoso sobre a conjuntura brasileira: Brazil: extractive capitalism and the great leap backward ("Brasil: capitalismo extrativo e o grande salto para trás", em tradução livre).

O texto analisa o fenômeno da desindustrialização, a questão ambiental, os protestos de rua em junho/julho, a herança política e econômica e a tragédia da política de alianças do nosso país. Trata-se de uma das mais completas - e ousadas - análises da situação contemporânea brasileira no contexto mundial a que tive acesso nos últimos anos.

Apesar de bem longo - cerca de 15 páginas - o texto merece ser lido tanto pelas conexões que faz quanto pelo silêncio com que foi recebido no Brasil. Nenhum jornal ou site o reproduziu até agora.

Para ler a tradução da agência portuguesa Resistir.info, clique aqui.

terça-feira, 23 de julho de 2013

GÉRSON ALBUQUERQUE: A GREVE DA EDUCAÇÃO E A CRISE DOS SINDICATOS

A luta dos trabalhadores da educação sempre foi referência no Acre. Nos anos 90, muitos sindicatos surgiram como resultado das conquistas dos professores, fornecendo, inclusive, prestígio e lideranças para o projeto eleitoral do Partido dos Trabalhadores. Desde 1999 distribuídos entre o sindicato dos professores licenciados (Sinplac) e dos Trabalhadores em Educação (Sinteac), os professores vivem hoje uma crise de representatividade resultante exatamente dessa proximidade. Nesse artigo, Gerson Albuquerque, historiador e professor da Universidade Federal do Acre (UFAC), analisa um dos efeitos perversos dessa aproximação sindicato/governo: a contratação de seguranças para impedir a entrada de "indesejáveis" no local de uma assembléia, no auditório do CEBRB - e propõe a sua superação. Coerente com um fenômeno que o cientista político Israel Souza define como "hegemonia em declínio da FPA", Albuquerque lembra o caráter público das greves e dos sindicatos e desnuda o absurdo a que pode chegar a intromissão de interesses particulares (privados) na vida sindical.


“A volta do cipó de aroeira”

Gerson Albuquerque (*)

Acompanho, desde a Universidade Federal do Acre, os movimentos de colegas trabalhadores em educação acreanos, em luta por melhores condições de vida e de trabalho, por salários dignos e por respeito ao ofício que exercem. Infelizmente não tenho tido oportunidade de assistir às suas assembleias e reuniões, mas acesso, sempre que possível, aos vídeos postados em canais alternativos e uma ou outra reportagem de televisão e me solidarizo com sua greve e suas reivindicações, feliz por saber que o sindicalismo de “faz de contas” não mais manobra e engana a maioria desses trabalhadores, como fez na última década.

Nesse sentido, ao ouvir a fala do presidente do Sinteac, assumindo ter sido o contratante de “leões de chácara” para impedir o acesso de pessoas “estranhas à categoria” ao espaço público da quadra do Colégio Estadual Rio Branco, onde ocorreria a assembleia dos trabalhadores em educação, na última sexta-feira, 19 de julho de 2013, não pude deixar de perceber sua evidente e completa incapacidade para o cargo de presidente do maior sindicato de trabalhadores do estado do Acre.

Se tivesse o mínimo de compreensão sobre o que significa dirigir um sindicato desse porte, especialmente, de trabalhadores em educação, João Sandim, teria conhecimento que, para evitar qualquer tipo de dúvida, bastaria entregar um crachá de identificação aos integrantes da categoria, no momento de assinarem a lista de presença para a confecção da obrigatória ata de cada reunião.

Esse procedimento, além de facilitar a visualização e contagem de votos no momento de aprovação ou desaprovação das propostas, resolveria o problema do controle de quem pode ou não se expressar com voz e voto em cada assembleia, sem cercear o direito de ir e vir de qualquer cidadão, integrante de outra categoria, pais, mães e os próprios alunos interessados em acompanharem o ritmo das negociações e o desenrolar do movimento grevista.

Como historiador e militante de movimentos sociais na cidade de Rio Branco ignoro acontecimento como esse em que a direção de uma agremiação de trabalhadores, em greve, tenha impedido ou tentado impedir a entrada de pessoas “estranhas” aos locais de suas assembleias.

As diretorias de sindicatos de trabalhadores não podem transformá-los em congregações secretas e obscuras, assim como não podem impedir o acesso de não sindicalizados aos locais de reuniões e, principalmente, em assembleias de greve. Tal impedimento é equivocado não apenas por seu caráter antidemocrático e escuso, mas porque fere o estado de direito.

Não se pode esquecer que reuniões como essas decidem por toda uma categoria de trabalhadores, independente da totalidade de seus membros serem sindicalizados ou não. Logo, todos devem ter prévio conhecimento dos locais e horários onde serão realizadas e a garantia do livre acesso às assembleias, sem coerção ou qualquer forma de assédio ou constrangimentos.

Os diretores dos sindicatos que representam os trabalhadores em educação e os professores licenciados do Acre não devem esquecer a natureza pública dessas entidades, principalmente, porque se trata de agentes públicos, pagos com verbas públicas e vinculados a um serviço público essencial. Suas discussões, decisões e posicionamentos não podem ser fechados ao público porque atingem toda a sociedade.

Contratar e colocar “leões de chácara” em portões de um prédio ou escola pública para barrar a entrada de quem quer que seja é atitude ilegal; obrigar trabalhador a se sindicalizar é ilegal; impedir não sindicalizado de ter acesso a uma assembleia de greve é imoral e ilegal; obrigar um trabalhador a apresentar seu contracheque ou holerite ou carteira de associado a quem quer que seja para ter acesso a uma assembleia pública é um ato espúrio, imoral e ilegal.

A atitude do presidente do Sinteac evidencia o fundo do poço da desmoralização de um tipo de representação sindical que passou a viver da barganha, subordinação e busca de obter vantagens pessoais frente ao Poder Executivo acreano. Cinismo, despreparo e autoritarismo estão estampados no rosto do presidente do Sinteac ao anunciar que contratou os seguranças para impedir que pessoas “estranhas” à categoria, tais como “professores da Ufac” e o “pessoal da telexfree” tivessem acesso ao local da malograda assembleia.

Não sei e não me interessa saber quem é o “pessoal da telexfree”, mas, dentre os professores da Ufac, onde trabalho desde 1989, tenho certeza de que não tem nenhum colega interessado em tumultuar greve ou assembléia de greve de outros trabalhadores, principalmente, da área da educação. No ano passado, fizemos uma greve de quatro meses e sabemos muito bem os riscos, custos e os significados de um movimento paredista. Durante nossa greve, nunca tivemos tumulto em assembleias porque a dirigimos de forma democrática, respeitando as divergências cumprindo literalmente tudo o que a categoria decidia.

Nunca impedimos alunos e nem qualquer outra pessoa de participar e falar em nossas reuniões. Muito pelo contrário, posto que esse é um tipo de movimento que ganha força com a solidariedade e o apoio daqueles que o honram com suas presenças.

Lamentavelmente João Sandim e outros que lhe dão sustentação (anti)política deixaram de compreender o que significa a justa e solidária luta dos trabalhadores em defesa de seus direitos, com independência e autonomia frente aos patrões ou a gestores públicos autoritários, ardilosos e incompetentes. Sua fala titubeante, bem ao modo dos serviçais de plantão, atinge, de forma leviana e covarde, a todos nós que nada temos com os problemas que enfrenta; com sua falta de credibilidade junto à categoria que deveria representar. Seus atos e palavras são uma tentativa desesperada de transferir para outros sua incapacidade e isso é algo absolutamente inaceitável.

No mais, a histérica cantilena conservadora e reacionária sempre retorna à boca dos autocratas de plantão e seus sequazes nesses momentos em que a sociedade ou setores da sociedade não mais se deixam enganar pela retórica vazia daqueles que controlam o aparelho estatal e – no contexto da greve da educação – os atordoados diretores do Sinplac, Sinteac e CUT.

Estes, incapazes de enfrentar o debate franco e aberto no campo das ideias, passam a utilizar a estrutura sindical e/ou governamental para difamar e tentar desmoralizar seus críticos rotulando-os de “baderneiros”, “anarquistas”, “terroristas”, “marginais” ou coisa desse gênero. O próximo passo é fazer uso da força bruta e chamar a polícia para conter os “baderneiros”. Esse pífio desfecho todos nós já conhecemos.

A “nota de repúdio” assinada pela CUT – Acre e publicada no final da semana passada, tem como única finalidade tentar desqualificar e criminalizar os integrantes da categoria de trabalhadores em educação que não aceitam um simulacro de negociação na qual aos trabalhadores resta voltar para seus locais de trabalho, satisfeitos com as promessas vazias e o engodo do jargão de tecnocratas empenhados na impossível tarefa de ocultar o “sol com a peneira” e dizer amém às ordens de um chefe de estado que nos deve muitas explicações sobre as denúncias e inquéritos policiais acerca dos escandalosos desvios de verbas públicas destinadas a projetos fáusticos, tipo o “cidade do povo” e o “ruas do povo”, sob o invólucro do malfadado cartel G-7.

Com sua “nota de repúdio” a direção da CUT – Acre, deixa cair a máscara e passa a atuar como uma espécie de “capitão do mato” a perseguir, difamar e criminalizar todos aqueles que levantam suas vozes contra as ordens do barracão/sede do executivo estadual/municipal acreano.

É dever de todos nós, trabalhadores de outras categorias, nos solidarizar à justa greve de professores e demais trabalhadores em educação que não recuam e não se deixam enganar na luta por seus direitos. Essa greve, apesar das diretorias sindicais, “é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”, como dizia o poeta. É um espectro zunindo nos ouvidos de sindicalistas pelegos, sanguessugas da categoria e de governantes ilegítimos porque autoritários; autoritários porque incompetentes; e incompetentes porque
não sabem que a coisa pública não pode ser gerida como a cozinha ou a privada de suas casas.

(*) Professor Associado do Centro de Educação, Letras e Artes - Universidade Federal do Acre - UFAC.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A CARTA DO MPL/SP À PRESIDENTA DILMA

Em 24 de junho, após a Presidência da República anunciar uma série de medidas em reação às passeatas que tomaram conta do país, o núcleo paulista do Movimento do Passe Livre (MPL) divulgou, em resposta, uma carta aberta. De forma didática, o documento expõe as razões da luta do MPL.

Apesar da tarifa na capital acreana, R$ 2,40, ser somente 60 centavos mais barata que a de São Paulo, o custo do transporte público em Rio Branco não esteve na pauta dos protestos locais.

Trata-se de detalhe curioso, uma vez que o impacto da tarifa atinge diretamente os mais pobres: quem ganha salário mínimo (R$ 678) tem que destinar, em média, 15% do orçamento só para chegar e voltar do trabalho, 22 vezes ao mês. Se descontada a previdência (9%), esse percentual sobe.


Carta aberta do MPL-SP à presidenta

À Presidenta Dilma Rousseff,

Ficamos surpresos com o convite para esta reunião. Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem acontecendo no país nas últimas semanas. Esse gesto de diálogo que parte do governo federal destoa do tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a política desta gestão.

Parece que as revoltas que se espalham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho tem quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos.

O Movimento Passe Livre, desde o começo, foi parte desse processo. Somos um movimento social autônomo, horizontal e apartidário, que jamais pretendeu representar o conjunto de manifestantes que tomou as ruas do país. Nossa palavra é mais uma dentre aquelas gritadas nas ruas, erguidas em cartazes, pixadas nos muros.

Em São Paulo, convocamos as manifestações com uma reivindicação clara e concreta: revogar o aumento. Se antes isso parecia impossível, provamos que não era e avançamos na luta por aquela que é e sempre foi a nossa bandeira, um transporte verdadeiramente público.

É nesse sentido que viemos até Brasília.

O transporte só pode ser público de verdade se for acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um direito universal. A injustiça da tarifa fica mais evidente a cada aumento, a cada vez que mais gente deixa de ter dinheiro para pagar a passagem.

Questionar os aumentos é questionar a própria lógica da política tarifária, que submete o transporte ao lucro dos empresários, e não às necessidades da população. Pagar pela circulação na cidade significa tratar a mobilidade não como direito, mas como mercadoria. Isso coloca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola, até o hospital, até o parque passa a ter um preço que nem todos podem pagar.

O transporte fica limitado ao ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para seus moradores. É para abri-las que defendemos a tarifa zero.

Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posicionamento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no rol dos direitos sociais do artigo 6o da Constituição Federal.

É por entender que o transporte deveria ser tratado como um direito social, amplo e irrestrito, que acreditamos ser necessário ir além de qualquer política limitada a um determinado segmento da sociedade, como os estudantes, no caso do passe livre estudantil.

Defendemos o passe livre para todas e todos!

Embora priorizar o transporte coletivo esteja no discurso de todos os governos, na prática o Brasil investe onze vezes mais no transporte individual, por meio de obras viárias e políticas de crédito para o consumo de carros (IPEA, 2011).

O dinheiro público deve ser investido em transporte público!

Gostaríamos de saber por que a presidenta vetou o inciso V do 16º artigo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12) que responsabilizava a União por dar apoio financeiro aos municípios que adotassem políticas de priorização do transporte público.

Como deixa claro seu artigo 9º, esta lei prioriza um modelo de gestão privada baseado na tarifa, adotando o ponto de vista das empresas e não o dos usuários. O governo federal precisa tomar a frente no processo de construção de um transporte público de verdade.

A municipalização da CIDE, e sua destinação integral e exclusiva ao transporte público, representaria um passo nesse caminho em direção à tarifa zero.

A desoneração de impostos, medida historicamente defendida pelas empresas de transporte, vai no sentido oposto. Abrir mão de tributos significa perder o poder sobre o dinheiro público, liberando verbas às cegas para as máfias dos transportes, sem qualquer transparência e controle.

Para atender as demandas populares pelo transporte, é necessário construir instrumentos que coloquem no centro da decisão quem realmente deve ter suas necessidades atendidas: os usuários e trabalhadores do sistema.

Essa reunião com a presidenta foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões. Os movimentos sociais no Brasil sempre sofreram com a repressão e a criminalização. Até agora, 2013 não foi diferente: no Mato Grosso do Sul, vem ocorrendo um massacre de indígenas e a Força Nacional assassinou, no mês passado, uma liderança Terena durante uma reintegração de posse; no Distrito Federal, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foram presos há poucas semanas em meio às mobilizações contra os impactos da Copa do Mundo da FIFA.

A resposta da polícia aos protestos iniciados em junho não destoa do conjunto: bombas de gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades; manifestantes foram perseguidos e espancados pela Polícia Militar; outros foram baleados; centenas de pessoas foram presas arbitrariamente; algumas estão sendo acusadas de formação de quadrilha e incitação ao crime; um homem perdeu a visão; uma garota foi violentada sexualmente por policiais; uma mulher morreu asfixiada pelo gás lacrimogêneo.

A verdadeira violência que assistimos neste junho veio do Estado – em todas as suas esferas.

A desmilitarização da polícia, defendida até pela ONU, e uma política nacional de regulamentação do armamento menos letal, proibido em diversos países e condenado por organismos internacionais, são urgentes.

Ao oferecer a Força Nacional de Segurança para conter as manifestações, o Ministro da Justiça mostrou que o governo federal insiste em tratar os movimentos sociais como assunto de polícia. As notícias sobre o monitoramento de militantes feito pela Polícia Federal e pela ABIN vão na mesma direção: criminalização da luta popular.

Esperamos que essa reunião marque uma mudança de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, tem sofrido diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público; às comunidades atingidas por remoções; aos sem-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos assassinados pela polícia nas periferias.

Que a mesma postura se estenda também a todas as cidades que lutam contra o aumento de tarifas e por outro modelo de transporte: São José dos Campos, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Goiânia, entre muitas outras.

Mais do que sentar à mesa e conversar, o que importa é atender às demandas claras que já estão colocadas pelos movimentos sociais de todo o país. Contra todos os aumentos do transporte público, contra a tarifa, continuaremos nas ruas!

Tarifa zero já!

Toda força aos que lutam por uma vida sem catracas!

Movimento Passe Livre São Paulo

24 de junho de 2013

sexta-feira, 19 de julho de 2013

A MORTE DE TAYNÁ, A TORTURA E A IMPRENSA





Por Uraniano Mota, no Direto da Redação
 
O inquérito do assassinato da menina Tayná, no Paraná, ilustra o tempo de trevas que  sobrevive no Brasil.

Em breves linhas lembramos que toda a imprensa noticiou que uma linda jovem de 14 anos, Tayná Andrade da Silva,  havia sido  estuprada e morta por quatro empregados de um parque de diversões, no dia 25 de junho. E que os frios estupradores confessaram o seu hediondo crime, depois de um rápido e eficiente trabalho da polícia.

Os apresentadores na tevê bradavam, elevavam a tensão em nossas veias: “E aí, o que devia ser feito com esses animais?”, e mostravam as imagens das quatro feras.

Assim estávamos nós com a nossa consciência insatisfeita, porque clamávamos pelo sangue desses monstros, quando, passados alguns dias, a brava perita Jussara Joeckel descobriu que jamais houve qualquer violência sexual contra Tayná.

Mais, que o exame de DNA no  sêmen encontrado na calcinha da jovem não pertence aos tidos como culpados. E para o cúmulo do absurdo, a perita afirma que a menina foi morta depois dos “assassinos” presos.

Escândalo. A perita Jussara teve a sorte de ser apoiada por uma jornalista à altura, Joice Hasselmann.

A repórter divulgou a análise e registrou no Blog da Joice que em meio aos gritos e ao bate-boca de uma reunião na Secretaria de Segurança, um integrante da Polícia Civil chegou ao extremo da pergunta: "Será que na contraprova nós não conseguimos um laudo com resultado inconclusivo?".

Sabe-se agora que o preso Adriano teve um cabo de vassoura enfiado no ânus,  amarrado de ponta-cabeça e agredido com uma máquina de choque, para que confessasse o crime.

A máquina de choque foi usada com uma haste de metal introduzida no seu ânus. Adriano, internado em hospital, tem sinais de perfuração no intestino. E todos os presos, depois de torturados, tiveram que assinar sem ler os “seus” depoimentos escritos.

Infelizmente, este é um caso exemplar da polícia brasileira, de Norte a Sul do país. Prende-se o culpado, para depois iniciar-se a investigação que prove a sua culpa.

A investigação, todos sabemos, é sempre a mesma: porradas primeiro, uma pergunta depois. Se o culpado não responder logo o que se quer provar, tudo mal. Pau de arara e choques elétricos como método infalível de apuração. Se responder conforme a acusação, tudo mais ou menos.

A tortura continua, mas dessa vez para selar o depoimento, ou como gritam os torturadores: “Ah, então você escondia o jogo, não é, safado? Você vai ver agora o que um criminoso merece”. Pelo medo e terror, selam assim a culpa do culpado.

O costume da tortura se transformou em uma coisa tão banal, que os advogados falam nas entrevistas em invalidação do inquérito, porque contaminado pela violência. Isso é óbvio. Daí os doutores partem para a soltura dos presos, com a posterior cobrança ao Estado pela prisão indevida. O que é justo.

Mas da ação lhes escapa o maior horror: eles parecem não  ver que os policiais deveriam responder, antes de tudo, pela tortura, porque esse é um crime condenado, imprescritível em nossa Constituição e em todos os tribunais civilizados. O fundamental lhes escapa: a mais severa punição prisional para o torturador.

Mais. Chamamos a atenção para o comportamento da imprensa que reproduz as versões  da polícia sem um filtro, sem uma dúvida. Os repórteres copiam o Boletim de Ocorrência, e de tal modo que repórter policial é o mesmo que policial repórter. Mas isso é igualzinho ao tempo da ditadura.

É igual àqueles malditos anos em as mortes de “terroristas” eram reproduções exatas da Agência Segurança Press. Se não, olhem o que se falou sobre o assassinato da menina de 14 anos nas tevês:

“Polícia termina investigação sobre morte da menina Tayná”, em Clique aqui 05/07/2013. 

“Polícia conclui inquérito e afirma que os suspeitos mataram Tayná, em Clique aqui , 05/07/2013

Os exemplos da imprensa brasileira, que reproduz de modo literal o que a polícia lhe sopra, ao fim de torturante inquérito, poderiam ser mostrados a um infernal  infinito.

E o mais grave, leitor. Agora mesmo, neste preciso instante, um preso comum está sendo torturado, sofrendo empalação ou é morto. Isso em plena democracia. Era bom que transformássemos o caso Tayná em um começo de real mudança, nas delegacias de polícia e na imprensa.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

AS PARALISAÇÕES E A LÓGICA HIGIENISTA

Charge: Maringoni
Manifestantes que fixaram cartazes e faixas em determinados locais pretensamente públicos nos últimos eventos em Rio Branco encontraram diversos níveis de resistência. A máquina pública ganhou vida autônoma. A burocracia, de meio administrativo, passou a ser um fim em si mesma e propôs a superação da própria atividade política. O sentido da res publica (lat. coisa pública), a exposição do conflito de idéias que integram a própria vida pública, foi substituído por um valor estético: a estética da ordem, na circunscrição dos espaços autorizados pela ordem. Tal inversão não é original nem surpreendente. É um sintoma do mal.

Em Arquitetura da Destruição (Undergångens arkitektur, 1989), o diretor sueco Peter Cohen tenta entender a irrefreável ascensão do fenômeno nazista. A velha e sombria pergunta que ainda hoje paira sobre a Alemanha - como foi possível? - é respondida de forma inovadora por Cohen, que foge das fórmulas prontas, como o poder econômico dos judeus na Europa (e o antissemitismo daí decorrente), o blecaute socioeconômico originado da primeira guerra mundial, a inteligência política de Adolf Hitler etc. No argumento de Arquitetura... todos esses fatores se entrelaçaram sobre um sólido fundamento: a higienização dos espaços públicos, doutrina nascida na própria Europa na primeira metade do século XIX.

A idéia de que espaços físicos organizados garantiriam a ordem política foi um dos subprodutos do liberalismo, doutrina que defende o individualismo econômico como salvaguarda da ação política. No alvorecer do século XX, liberalismo, individualismo e higienismo ultrapassaram de mãos dadas as comportas da Europa e desaguaram, via colonialismo, nos países da América Latina. No Novo Mundo veio a metamorfose: enquanto o liberalismo serviu como apelo moral para que os grupos enriquecidos no velho regime, em busca de maiores lucros, chegassem ao poder, o individualismo foi sacrificado no altar das conveniências pelos mesmos grupos. Só o higienismo, glorioso portador da mensagem mais profunda da civilização que o produzira - o progresso supõe a ordem - foi copiado como uma mensagem de valor universal, incontornável e irresistível, dos Estados Unidos à Terra do Fogo.

Embora não trabalhe nessa perspectiva - certamente por identificar a estética nazista como um fenômeno estritamente alemão -, Cohen fornece ferramentas importantes para compreender, a partir dos ingredientes históricos que forjaram e deram legitimidade social às idéias de Adolf Hitler, a estrutura atual dos Estados forjados na mesma lógica temporal.

No Brasil, práticas colonialistas mobilizaram vultosos recursos, intelectuais e financeiros, para construir uma civilização nos trópicos - a partir do olhar europeu. O primeiro ciclo da borracha (1879-1912) pavimentou o caminho na região norte: entre os preparativos do golpe militar que implantou no país o ideal europeu da república (1889) e os da primeira guerra mundial (1914-1918) surgiu a guerra do Acre (1899-1903). Bem aqui, no auge da ideologia higienista que constituía a percepção colonial sobre o novo mundo, erguida sobre uma poderosa base econômica, consolidou-se a vida urbana na Amazônia. Hitler tinha, ao final do conflito acreano, 14 anos de idade.

Práticas adequadas de alimentação, de vestuário, de expressão cívica, de moralidades e outros pormenores foram inseridos e disciplinados no convívio acreano desde então. Embora o exotismo de tais práticas fosse equiparável apenas à sua voracidade, o Estado brasileiro tratou de se apropriar dessas características para construir, tal e qual na Alemanha da mesma época - se é correta a abordagem estética de Arquitetura... - um sistema de organização dos espaços coeso, disciplinado.

Coesão, disciplina. Ordem, progresso. São características que outro filme genial, A onda (Die welle, 2008), de Dennis Gansel, capta do fascismo. A marca da mente nazifascista (de qualquer época), para Gansel, é a incapacidade de perceber ordem fora de sua ordem. Trata-se do velho problema da universalização da perspectiva pessoal, que impede o portador de cogitar a validade de outras ordens que não entende, pois entendê-las implicaria em violar o sentido de universalidade da sua própria ordem.

A impossibilidade de superar esquemas de sentido pessoais, aplicados ao mundo como se fossem regras com validade geral e universal, é definida nas ciências humanas como ideologia. Isso explica por que atos políticos que não se encaixam na ordem são considerados portadores de perigo iminente e "devem ser contidos", mas não explica o fenômeno histórico da identificação com uma ordem específica. Assim, a lógica higienista tem muito a nos dizer.

No caso do Acre e de outros Estados brasileiros onde vários grupos têm saído às ruas para protestar precisamente contra a insustentabilidade do seu legado urbano, houve resistência em alguns espaços públicos, alegando-se a necessidade de se manter a limpeza, a ordem das repartições.

Parece um argumento lógico. No entanto, qual seria o sentido de defender os espaços públicos da invasão das questões públicas? Justifica-se, em nome da ordem, restringir os debates políticos, sobre questões políticas, aos espaços autorizados dos próprios setores políticos?

A resposta parece surpreendentemente una e óbvia. É preciso, porém, averiguar o sintoma que pulsa latente em fenômenos desse tipo. Transformar o desafio em aprendizado.

Toda a evolução da máquina política acreana, desde os seus primórdios, consistiu no desenvolvimento da lógica estrutural que motivou o nazismo: o higienismo, o liberalismo, o individualismo e outros elementos, longe de criarem um modelo social, produziram uma cisão tão profunda que muitos amazônidas não reconhecem suas cidades como tais. Embora a distância física que separa seringais e municípios seja mínima, a distância simbólica, aquilo que lhes foi agregado como valor específico, criou um abismo intransponível que muitos se esforçam em aumentar, a machadadas, enquanto em outras partes do mundo - na Alemanha, inclusive - os jovens vão às ruas para dizer "não" a todo o metabolismo sociopolítico engendrado há 300 anos.

Felizmente, em assuntos humanos, é possível renunciar a heranças malditas. Não é obrigatório, por enquanto, defender um legado político cujas origens não se compreende, especialmente se ficam claras as suas intenções. No nível puramente individual, trata-se de não reproduzir práticas destrutivas. Numa leitura social, se considerada a abordagem de Arquitetura... é um sinal do poder dos (múltiplos) colonialismos entre nós. Um péssimo sinal.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

DECLARAÇÃO DE COCHABAMBA


Da página institucional da Unasur

Tradução livre

Transcrição oficial da Declaração de Cochabamba, subscrita quinta-feira à noite pelos presidentes, assessores e diplomatas enviados à cidade boliviana para uma Reunião Extraordinária da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL).

Infográfico do Portal Terra
  
 
Perante a situação a que foi submetido o Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Evo Morales, por parte dos governos da França, Portugal, Itália e Espanha, denunciamos à comunidade internacional e aos diversos organismos multilaterais:

A flagrante violação dos Tratados Internacionais que regem a convivência pacífica, a solidariedade e a cooperação entre nossos Estados, que constitui um ato insólito, inamistoso e hostil, configurando um fato ilícito que afeta a liberdade de trânsito e deslocamento de um Chefe de Estado e sua delegação oficial.

O atropelo e as práticas neocoloniais que ainda subsistem em nosso planeta em pleno século XXI.

A falta de transparência sobre as motivações das decisões políticas que impediram o trânsito aéreo da aeronave presidencial boliviana e do seu presidente. O agravo sofrido pelo presidente Evo Morales ofende não só o povo boliviano, mas todas as nossas nações.

As práticas ilegais de espionagem põem em risco os direitos cidadãos e a convivência amistosa entre nações.

Frente a estas denúncias estamos convencidos que o processo de construção da Pátria Grande, no qual estamos comprometidos, deve consolidar-se no pleno respeito à soberania e independência dos nossos povos, sem a ingerência dos centros hegemônicos mundiais, superando as velhas práticas pelas quais se pretende impor países de primeira e de segunda classe.

Assim, nós, Chefes de Estado e de Governo de países da União de Nações Sul-americanas - UNASUL, reunidos em Cochabamba, Bolívia, a 4 de Julho de 2013,
1- Declaramos que a inaceitável restrição à liberdade do Presidente Evo Morales Ayma, convertendo-o virtualmente num refém, constitui gravíssima violação de direitos não só do povo boliviano como de todos os países e povos da América Latina e cria um perigoso precedente nas relações diplomáticas e tratados internacionais em vigor.

2. Recusamos as atuações claramente violatórias de normas e princípios básicos do direito internacional, como a inviolabilidade dos Chefes de Estado.

3. Exigimos dos governos da França, Portugal, Itália e Espanha que expliquem as razões da decisão de impedir o sobrevôo do avião presidencial do Estado Plurinacional da Bolívia pelo seu espaço aéreo.

4. Da mesma forma, exigimos dos governos da França, Portugal, Itália e Espanha que apresentem desculpas públicas formais sobre esses graves eventos.

5. Apoiamos a Denúncia apresentada pelo Estado Plurinacional da Bolívia ao Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pela gravíssima violação de Direitos Humanos e colocação em perigo concreto da Vida do Presidente Evo Morales. Além disso, apoiamos o direito do Estado Plurinacional da Bolívia de realizar todas as ações que considere necessárias perante os Tribunais e instâncias competentes.

6. Concordamos em formar uma Comissão de Acompanhamento, encarregando nossos Chanceleres da tarefa de realizar as ações necessárias para o esclarecimento dos fatos.

Finalmente, no espírito dos princípios estabelecidos no Tratado Constitutivo da Unasul, exortamos a todos os Chefes de Estado signatários a subscrever a presente Declaração. De igual modo, convocamos a Organização das Nações Unidas e organismos regionais que ainda não o fizeram, a pronunciar-se sobre este fato injustificável e arbitrário.

Cochabamba, 4 de Julho de 2013.


Nota minha: estima-se em 50 milhões o número de mortos durante a aventura européia no novo mundo (expressão, também, européia). Os aimarás, povo do presidente Evo Morales, tiveram que aprender a língua dos colonizadores (espanhol), e adotar o seu sistema político e econômico.

Desde a semana passada jornais do mundo inteiro alertaram sobre a existência de uma rede de espionagem dos Estados Unidos sobre o Brasil. Para saber mais, clique aqui.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

ZIZÉK: A CAMINHO DE UMA RUPTURA GLOBAL

 
Slavoj Žižek: radical psicótico-ressentido


Por Slavoj Žižek, no London Review of Books via Brasil de Fato

Tradução Vila Vudu

Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como uma daquelas na qual a única resposta a problemas particulares seria a solução universal: a revolução global. É expressão condensada da diferença entre período reformista e período revolucionário: em período reformista, a revolução global permanece como sonho que, se serve para alguma coisa, é apenas para dar peso às tentativas para mudar alguma coisa localmente; em período revolucionário, vê-se claramente que nada melhorará, sem mudança global radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário: as muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta do serviço; e era necessária uma quebra total, para resolver todos os problemas do dia a dia. Por exemplo, o problema de dar suficiente comida às pessoas.

Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e protestos dos últimos anos são sinais de que se aproxima uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável nas erupções é que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por que há confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento como Turquia, Suécia ou Brasil?

Com algum distanciamento, pode-se ver que a revolução de Khomeini em 1979 foi o caso original de “dificuldades no paraíso”, dado que aconteceu em país que caminhava a passos largos para uma modernização pró-ocidente, e era o mais estável aliado do ocidente na região.

Antes da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal de estado estável, a combinar pujante economia liberal e islamismo moderado. Pronta para a Europa, um bem-vindo contraste com a Grécia mais “europeia”, colhida num labirinto ideológico e andando rumo à autodestruição econômica. Sim, é verdade: aqui e ali sempre viam-se alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos armênios; prisão de jornalistas; o status não resolvido dos curdos; chamamentos a uma “grande Turquia” que ressuscitaria a tradição do Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis religiosas). Mas eram descartados como pequenas máculas que não comprometeriam o grande quadro.

E então, explodiram os protestos na praça Taksim. Não há quem não saiba que os planos para transformar um parque em torno da praça Taksim no centro de Istambul em shopping center não foram “o caso”, naqueles protestos; e que um mal-estar muito mais profundo ganhava força. O mesmo se deve dizer dos protestos de meados de junho no Brasil: foram desencadeados por um pequeno aumento na tarifa do transporte público, e prosseguiram mesmo depois de o aumento ter sido revogado. Também nesse caso, os protestos explodiram num país que – pelo menos segundo a mídia – estava em pleno boom econômico e com todos os motivos para sentir-se confiante quanto ao futuro. Nesse caso, os protestos foram aparentemente apoiados pela presidente Dilma Rousseff, que se declarou satisfeitíssima com eles.

O que une protestos em todo o mundo — por mais diversos que sejam, na aparência — é que todos reagem contra diferentes facetas da globalização capitalista

É crucialmente importante não vermos os protestos turcos meramente como sociedade civil secular que se levanta contra regime islamista autoritário, apoiado por uma maioria islamista silenciosa. O que complica o quadro é o ímpeto anticapitalista dos protestos. Os que protestam sentem intuitivamente que o fundamentalismo de mercado e o fundamentalismo islâmico não se excluem mutuamente.

A privatização do espaço público por ação de um governo islamista mostra que as duas modalidades de fundamentalismo podem trabalhar de mãos dadas. É sinal claro de que o casamento “por toda a eternidade” de democracia e capitalismo já caminha para o divórcio.

Também é importante reconhecer que os que protestam não visam a nenhum objetivo “real” identificável. Os protestos não são, “realmente”, contra o capitalismo global, nem “realmente” contra o fundamentalismo religioso, nem “realmente” a favor de liberdades civis e democracia, nem visam “realmente” qualquer outra coisa específica. O que a maioria dos que participaram dos protestos “sabem” é de um mal-estar, de um descontentamento fluido, que sustenta e une várias demandas específicas.

A luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com jornalistas e teóricos tentando explicar seu “real” conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa, o que esteja acontecendo dentro dos próprios protestos. É apenas luta contra governo corrupto? É luta contra governo islâmico autoritário? É luta contra a privatização do espaço público? A pergunta continua aberta. E de como seja respondida dependerá o resultado de um processo político em andamento.

Em 2011, quando irrompiam protestos por toda a Europa e todo o Oriente Médio, muitos insistiram que não fossem tratados como instâncias de um único movimento global. Em vez disso, argumentavam, haveria uma resposta específica para cada situação específica. No Egito, os que protestavam queriam o que em outros países era alvo das críticas do movimento Occupy: “liberdade” e “democracia”. Mesmo entre países muçulmanos, haveria diferenças cruciais: a Primavera Árabe no Egito seria contra um regime autoritário e corrupto aliado do ocidente; a Revolução Verde no Irã, que começou em 2009, seria contra o islamismo autoritário. É fácil ver o quanto essa particularização dos protestos serve bem aos defensores do status quo: não há nenhuma ameaça direta à ordem global como tal. Só uma série de problemas locais separados…

O capitalismo global é processo complexo que afeta diferentes países de diferentes modos. O que une todos os protestos, por mais multifacetados que sejam, é que todos reagem contra diferentes facetas da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global é hoje expandir o mercado, invadir e cercar o espaço público, reduzir os serviços públicos (saúde, educação, cultura) e impor cada vez mais firmemente um poder político autoritário. Nesse contexto, os gregos protestam contra o governo do capital financeiro internacional e contra seu próprio estado ineficiente e corrupto, cada dia menos capaz de prover os serviços sociais básicos. Nesse contexto, os turcos protestam contra a comercialização do espaço público e contra o autoritarismo religioso. E os egípcios protestam contra um governo apoiado pelas potências ocidentais. E os iranianos protestam contra a corrupção e o fundamentalismo religioso. E assim por diante.

Nenhum desses protestos pode ser reduzido a uma única questão. Todos lidam com uma específica combinação de pelo menos dois problemas, um econômico (da corrupção à ineficiência do próprio capitalismo); o outro, político-ideológico (da demanda por democracia à demanda pelo fim da democracia convencional multipartidária). O mesmo se aplica ao movimento Occupy. Na profusão de declarações (muitas vezes confusas), o movimento manteve dois traços básicos: primeiro, o descontentamento com o capitalismo como sistema, não apenas contra um ou outro corrupto ou corrupções locais; segundo, a consciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidária não tem meios para combater os excessos capitalistas. Em outras palavras, é preciso reinventar a democracia.

A causa subjacente dos protestos ser o capitalismo global não significa que a única solução seja “derrubar” o capitalismo. Nem é viável seguir a alternativa pragmática, que implica lidar com problemas individuais enquanto se espera por transformação radical. Essa ideia ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente contraditório e inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas com os EUA protegerem seus próprios agronegócios e agronegociantes; pregar a democracia anda de mãos dadas com apoiar o governo da Arábia Saudita.

Essa inconsistência abre um espaço para a intervenção política: onde o capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, ali há uma oportunidade para insistir em que ele obedeça àquelas regras. Exigir coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não pode pagar para ser coerente e consistente é pressionar todo o sistema. A arte da política está em impor demandas específicas as quais, ao mesmo tempo em que são perfeitamente realistas, ferem o coração da ideologia hegemônica e implicam mudança muito mais radical. Essas demandas, por mais que sejam viáveis e legítimas, são, de fato, impossíveis. Caso exemplar é a proposta de Obama para prover assistência pública universal à saúde. Por isso as reações foram tão violentas.

Um movimento político começa com uma ideia, algo por que lutar, mas, no tempo, a ideia passa por transformação profunda – não apenas alguma acomodação tática, mas uma redefinição essencial –, porque a própria ideia passa a ser parte do processo: torna-se sobredeterminada.​* Digamos que uma revolta comece com uma demanda por justiça, talvez sob a forma de demanda pela rejeição de uma determinada lei. Depois de o povo estar profundamente engajado na revolta, ele percebe que será preciso muito mais do que a demanda inicial, para que haja verdadeira justiça. O problema então é definir, precisamente, em que consiste esse “muito mais”.

A perspectiva liberal-pragmática entende que os problemas podem ser resolvidos gradualmente, um a um: “Há gente morrendo agora em Rwanda, então esqueçam a luta anti-imperialista e vamos impedir o massacre”. Ou: “Temos de combater a pobreza e o racismo já, aqui e agora, não esperar pelo colapso da ordem capitalista global”. John Caputo argumenta exatamente assim em After the Death of God (2007):

Eu ficaria perfeitamente feliz se os políticos da extrema-esquerda nos EUA fossem capazes de reformar o sistema oferecendo assistência universal à saúde, redistribuindo efetivamente a riqueza mais equitativamente com um sistema tributário [orig. Internal Revenue Code (IRC)] redefinido, restringindo o financiamento privado de campanhas eleitorais, autorizando o voto universal, para todos, tratando com humanidade os trabalhadores migrantes, e levando a efeito uma política externa multilateralista que integrasse o poder dos EUA dentro da comunidade internacional etc. Ou seja, intervindo sobre o capitalismo mediante reformas profundas, de longo alcance… Se depois de fazer tudo isso, Badiou e Žižek ainda reclamarem de um monstro chamado Capitalismo a nos assombrar, eu estaria inclinado a receber o tal monstro com um bocejo.

Não se trata de “derrubar” o capitalismo. Mas de construir lógicas de uma sociedade que vá além dele. Isso inclui novas formas de democracia

O problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se pode alcançar tudo isso dentro do capitalismo, por que não ficar aí mesmo? O problema é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual. Mas e se os emperramentos e mau funcionamento do capitalismo, que Caputo listou, não forem meras perturbações contingentes, mas necessários por estrutura? E se o sonho de Caputo é um sonho de ordem capitalista universal, sem sintomas, sem os pontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas de hoje são sustentados pela combinação de demandas sobrepostas, e é aí que está a sua força: lutam por democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismo e o sexismo, especialmente quando dirigidos contra imigrantes e refugiados; contra a corrupção na política e nos negócios (poluição industrial do meio ambiente etc.); pelo estado de bem-estar contra o neoliberalismo; e por novas formas de democracia que avancem além dos rituais multipartidários. Questionam também o sistema capitalista global como tal, e tentam manter viva a ideia de uma sociedade que avance além do capitalismo.

Duas armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que realmente interessa é abolir o capitalismo liberal-parlamentar; todas as demais lutas são secundárias”), mas, também, o falso gradualismo (“no momentos temos de lutar contra a ditadura militar e por democracia básica, todos os sonhos de socialismo devem ser, agora, postos de lado”).

Aqui, ninguém se deve envergonhar de acionar a distinção maoista entre antagonismo principal e antagonismos secundários, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje. Há situações nas quais insistir no antagonismo principal significa perder a oportunidade de acertar golpe significativo, no curso da luta.

Só uma política que tome plenamente em consideração a complexidade da sobredeterminação merece o nome de estratégia. Quando se embarca numa luta específica, a pergunta chave é: como nosso engajamento ou desengajamento nessa luta afeta outras lutas?

A regra geral é que quando uma revolta contra regime semidemocrático começa – como no Oriente Médio em 2011 – é fácil mobilizar grandes multidões com slogans (por democracia, contra a corrupção etc.). Mas muito rapidamente temos de enfrentar escolhas muito mais difíceis. Quando a revolta é bem-sucedida e alcança o objetivo inicial, nos damos conta de que o que realmente nos perturbava (a falta de liberdade, a humilhação diária, a corrupção, o futuro pouco ou nenhum) persiste sob novo disfarce. Nesse momento somos forçados a ver que havia furos no próprio objetivo inicial. Pode implicar que se chegue a ver que a democracia pode ser uma forma de des-liberdade, ou que se pode exigir muito mais do que apenas a mera democracia política: que a vida social e econômica tem de ser também democratizada.

Em resumo, o que à primeira vista tomamos como fracasso que só atingia um nobre princípio (a liberdade democrática) é afinal percebido como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o princípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande passo em qualquer educação política.

Representantes da ideologia reinante mobilizam todo o seu arsenal para impedir que cheguemos a essa conclusão radical. Dizem-nos que a liberdade democrática implica suas próprias responsabilidades, que tem um preço, que é sinal de imaturidade esperar demais da democracia. Numa sociedade livre, dizem eles, devemos agir como capitalistas e investir em nossa própria vida: se fracassarmos, se não conseguirmos fazer os necessários sacrifícios, ou se de algum modo não correspondermos, a culpa é nossa.

Em sentido político mais direto, os EUA perseguem coerentemente uma estratégia de controle de danos em sua política externa, recanalizando os levantes populares para formas capitalistas-parlamentares aceitáveis: na África do Sul, depois do apartheid; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia, depois de Suharto etc. É nesse ponto que a política propriamente dita começa: a questão é como empurrar ainda mais adiante, depois que passa a primeira, excitante, onda de mudança; como dar o passo seguinte, sem sucumbir à tentação “totalitária”; como avançar além de Mandela, sem virar Mugabe.

O que significaria isso, num caso concreto? Comparemos dois países vizinhos, Grécia e Turquia. À primeira vista, talvez pareçam completamente diferentes: Grécia, presa na armadilha da ruinosa política de austeridade; Turquia em pleno boom econômico e emergindo como nova superpotência regional. Mas e se cada Turquia contiver sua própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como Brecht diz em sua Elegias Hollywoodenses (orig. Hollywood Elegies’ [1942]),

A vila de Hollywood foi planejada segundo a ideia
De que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,
Chegaram à conclusão de que Deus
Embora precisando de céu e inferno, não precisava
Planejar dois estabelecimentos, mas
Só um: o paraíso. Que esse,
para os pobres e infortunados, funciona
como inferno.[1]

Esses versos descrevem bastante bem a “aldeia global” de hoje: aplicam-se ao Qatar ou Dubai, playgrounds para os ricos, que dependem de manter os trabalhadores imigrantes em estado de semiescravidão, ou escravidão. Exame mais detido revela semelhanças entre Turquia e Grécia: privatizações, o fechamento do espaço público, o desmonte dos serviços sociais, a ascensão de políticos autoritários. Num plano elementar, os que protestam na Grécia e os que protestam na Turquia estão engajados na mesma luta. O melhor caminho talvez seja coordenar as duas lutas, rejeitar as tentações “patrióticas”, deixar para trás a inimizade histórica entre os dois países e buscar espaços de solidariedade. O futuro dos protestos talvez dependa disso.

Slavoj Žižek é um filósofo e teórico crítico esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. 

------------------------------------------------------

Notas da tradução:

* Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreveu (no seu pior modo evolucional) que a humanidade só se propõe problemas que seja capaz de resolver. E se invertermos a ganga dessa frase e declararmos que, regra geral, a humanidade propõe-se problemas que não pode resolver, e assim dispara um processo cujo desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própria tarefa é redefinida?

[1] Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem ambição literária, só para ajudar a ler [NTs].

segunda-feira, 1 de julho de 2013

URBANIDADE NA AMAZÔNIA

Poucas coisas são tão desajeitadas quanto o viver urbano na Amazônia.

Euclides da Cunha, ao visitar Manaus no começo do século XX, resumiu muitíssimo bem esse paradoxo. Disse ele, em 1905:

- Cidade comercial e insuportável. O crescimento abrupto levantou-se de chofre fazendo que trouxesse, aqui, ali, salteadamente entre as roupagens civilizadoras, os restos das tangas esfiapadas dos tapuios. Cidade meio caipira, meio européia, onde o tejupar se achata ao lado de palácios e o cosmopolitismo exagerado põe ao lado do ianque espigado... o seringueiro achamboado, a impressão que ela nos incute é a de uma maloca transformada em Gand.

Com ligeiras alterações, a descrição cabe para a Rio Branco atual. Ao longo dos anos, a cidade tem passado por vários projetos de modernização que visam adequá-la, sempre em nome do progresso, pela melhoria das condições de vida da população, à condição de cópia de cidades metropolitanas. Com o Plano de Desenvolvimento Sustentável (PDS) do Partido dos Trabalhadores (PT) deu-se um passo além: em vez de copiar, busca-se agora ser um exemplo para as demais.

Há algum tempo li numa dessas revistas de viagem que "se Nova Iorque quer ser Londres, São Paulo quer ser Nova Iorque". Emendo: "Se Manaus quer ser São Paulo, Rio Branco também quer ser São Paulo".

O resultado desse interminável Ctrl C + Ctrl V é trágico.

Nos últimos 300 anos, onde quer que tenham se instalado (florestas tropicais, savanas africanas, desertos árabes etc), as cidades impuseram uma lógica disciplinar que dizimou ou submeteu todas as formas de associação humana, como povoados, vilas, tribos, clãs etc. Ainda hoje uma das formas pelas quais esta dizimação se realiza é associar estas formas anteriores de sociabilidade com atraso, miséria, subdesenvolvimento.

Em contrapartida, a lógica citadina é associada com progresso, prosperidade, desenvolvimento. A própria palavra urbano passou a significar também polido, educado, civilizado.

Vergado sob o extraordinário peso dessa narrativa, o homem amazônico não se reconhece como homem. É um não-ser, alguém que ainda precisa começar a existir, pois não é moderno. A modernidade é que lhe dá uma identidade. É pela modernidade que vem o emprego, o dinheiro, o prestígio, a possibilidade de sobreviver.

Isso explica tantos conflitos por micropoder, que se vê praticamente a todo o instante em todos os lugares (e suas reações trágicas, geralmente violentas). A necessidade constante e neurótica de afirmação na modernidade pressupõe estados de espírito simultaneamente alterados e hiperautoindulgentes.

O camponês acreano costuma acenar ao passar de barco pelas colocações vizinhas. Alguns também gritam: "Oba!". É uma saudação calculada na medida exata da distância com o interlocutor e acima do ruído da embarcação. Seu objetivo é informar a sua própria passagem e, ao mesmo tempo, verificar se está tudo bem com seus iguais.

Nas periferias de Rio Branco muitas famílias criam galinhas, patos e outros bichos, que vendem ou trocam por itens estratégicos da cesta básica. Cada quintal, chamado de terreiro, é uma miniatura do modo de vida na colônia em plena cidade.

Onde há homem, há cultura, e portanto, há história. Não é possível, nesta dimensão do universo, a existência de homens sem intervenção histórica. A questão é que algumas sociedades se apropriam de forma inesperada e surpreendente da história. Uma vez que o seu objetivo é a uniformização, a disciplina, é esse legado que os projetos de modernização buscam destruir.

É preciso repensar as formas de viver na Amazônia. Não se trata de ruralizar as cidades, de uma volta às aldeias ou seringais. Trata-se da cidade ser aldeias, seringais e colônias. Um projeto de sociedade que não provoque, na natureza, os espasmos de enchentes, deslizamentos e secas. Que não deixe os homens civilizados tão parecidos com as bestas mais selvagens.

Não precisamos ser modernos. Nem urbanos.