O debate acerca da reforma agrária no Brasil vem contribuindo para colocar em evidência uma antiga problemática: a da propriedade da terra. Considerada por uns um direito inviolável do ser humano e, por outros, um patrimônio que deve ser utilizado produtivamente pelas diversas gerações, a idéia da propriedade privada da terra segue sendo interpretada como conquista adquirida, seja ela política ou econômica.
De acordo com a legislação brasileira que versa sobre o tema (a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Terra de 1964 e a Lei n.º 8.629/93), o direito de propriedade da terra é garantido, desde que atenda a sua função social, ou seja, se a sua utilização for condicionada ao bem-estar coletivo. Em caso de descumprimento, cabe ao Estado, baseado no interesse social, a tarefa de desapropriar as formas de ocupação e de exploração da terra que não estejam sendo utilizadas de forma produtiva, valendo-se dos instrumentos de “prévia e justa indenização” do proprietário.
A pergunta fundamental, no entanto, deixa de ser colocada: como é possível que a terra se converta em propriedade privada?
Se, na Idade Média, a legitimação da propriedade da terra por parte dos senhores feudais era buscada na dádiva divina, com o liberalismo a propriedade se converteu em direito humano, uma premissa que passa a ser legitimada racionalmente pela nova classe dominante: a burguesia. Após apropriada, a terra pode ser vendida, comprada e arrendada, assim como qualquer outra mercadoria. Ao ser colocada no mercado, o valor da terra passa a ser determinado pela sua capacidade de gerar renda, ou seja, pela sua utilização como meio de produção que tem dono (uma renda absoluta, portanto) e pelo seu potencial produtivo, sua fertilidade e sua localização (uma renda diferencial).
De acordo com David Ricardo, em seu famoso livro Princípios de economia política, editado em 1848, a renda, que parte da idéia de aluguel da propriedade, entretanto, não constitui um componente do preço dos produtos agrícolas. O que ocorre, segundo ele, é o contrário: a renda é resultante do preço dos produtos agrícolas. Quando cresce a população consumidora, é necessário utilizar também as terras menos férteis, que produzem menos. Neste caso, o preço de um produto agrícola é nivelado pelo custo mais alto para produzi-lo, o que cria uma renda diferencial para os produtores com custo mais baixo: é da menor produtividade da terra e da maior soma de capitais investidos que surge a renda. A idéia de comprar a terra decorre precisamente da possibilidade de deixar de pagar a renda em forma de arrendamento, “alugando-a” em definitivo, ao adquiri-la (o valor pago na venda da terra leva em consideração sua possibilidade de gerar renda).
É claro que depois de comprada, a terra poderá ser novamente vendida ou, então, ser herdada: quem pagou para adquiri-la entende que é, de fato, seu proprietário, e passa a encará-la como capital, o que, no caso de uma desapropriação, origina a necessidade de indenização aos proprietários. E essa é a questão chave para entender a contradição: a terra constitui capital?
O filósofo Rousseau, um dos precursores da Revolução Francesa, foi, certamente, quem mais cedo denunciou as conseqüências da apropriação privada da terra. Ele considera a instituição da propriedade privada da terra como a origem da desigualdade entre os homens, o momento inicial em que as classes dominantes transformaram em lei aquilo que já possuíam na forma de força.
A propriedade privada, portanto, não se origina da natureza, mas se funda em convenções, as quais resultam da ordem social predominante. As circunstâncias que conduziram ao aperfeiçoamento da razão e à ruína da humanidade são, segundo Rousseau, o estabelecimento da propriedade (devido à existência de ricos e pobres), a instituição da magistratura (por haver poderosos e fracos) e a manutenção do poder legítimo em poder arbitrário (que determinaria o último grau de desigualdade, entre patrões e escravos).
Nas palavras de Rousseau, em seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer ‘isto é meu’ e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, quantas guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” E, com base nesta constatação, Rousseau fundamenta sua crítica à instituição da sociedade civil e das leis: “Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria”.
De fato, se refletimos radicalmente sobre a legitimidade da apropriação privada da terra, verificamos que houve um primeiro ocupante de um território ainda não ocupado por alguém, o qual reivindica para si o direito de usufruir este recurso natural. Como este direito não é reconhecido como legítimo por outros, acontecem as disputas por territórios, uma das razões para as muitas guerras que conhecemos ao longo da história. Além da reivindicação de primeiro ocupante, estaria imbricada nesse argumento a ocupação da terra somente numa porção limitada à necessidade de subsistência dos ocupantes. O terceiro argumento que Rousseau apresenta neste debate é o de que a posse não se dê por legitimação de uma cerimônia, mas pelo trabalho e pela cultura, os quais, segundo ele, são os “únicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos”. Possivelmente é nisso que se fundamenta a noção vigente de que terra produtiva não possa ser desapropriada ou que a terra deve ser daquele que nela trabalha.
O dilema dessa argumentação é a convicção de que a propriedade da terra seria resultante do trabalho, assim como se daria a propriedade do capital. O capital é resultado do trabalho humano acumulado (trabalho morto), onde até poderíamos identificar uma relação causal que levaria à legitimidade ou deslegitimidade de sua posse. O problema, no caso da terra, é que se trata de um recurso natural não passível de reprodução, ou seja, ninguém com o seu trabalho é capaz de produzir um hectare de terra. Como a terra em si não é resultante do trabalho humano, ela não se constitui capital na origem e continua sendo um recurso natural disponível de forma limitada, sobre o qual a propriedade não possui legitimidade.
Com a superação do modo de produção feudal, a propriedade da terra representa um empecilho ao desenvolvimento da produção capitalista, uma vez que conserva uma estrutura de remuneração da posse, originando uma reserva de valor gerado socialmente, que aparece convertida na renda paga ao proprietário. Como afirmava Ricardo, “o fenômeno da renda é uma vantagem resultante de uma desigualdade, da desigualdade que decorre do momento em que a propriedade é a causa da renda, porque ela é a consagração jurídica de uma desigualdade econômica”.
Para Lênin, a propriedade privada da terra é um entrave ao progresso da agricultura, e não seria necessária do ponto de vista da acumulação capitalista. A razão de sua manutenção estaria no temor dos capitalistas de que a deslegitimação da propriedade da terra venha a ser estendida a todas as formas de propriedade privada. Além disso, é notável que após o estágio inicial do capitalismo, a própria burguesia se tornou a classe proprietária da terra, um instrumento de poder político importante ao lado da apropriação do capital industrial, comercial e financeiro, o que contribui para o fortalecimento de sua hegemonia.
No caso brasileiro, o atual conflito em torno das ocupações de terra no Brasil, onde os latifundiários passam a organizar milícias armadas em defesa do seu “sagrado” direito de propriedade da terra, já que não confiam no atual governo e no “Estado de direito” instituído para defender seu “direito adquirido”, a deslegitimidade dos proprietários de terra começa a ficar evidente. Diante da determinação do atual governo em cumprir sua tarefa de desapropriar áreas improdutivas, com base no interesse social previsto constitucionalmente, os latifundiários procuram amparo no Poder Judiciário, onde a maioria dos magistrados vêm, historicamente, se posicionando a favor da propriedade da terra, até porque muitos juízes, promotores, desembargadores e advogados, assim como parlamentares, são, eles mesmos, grandes proprietários de terras.
A função da ideologia (neste aspecto compreendida como visão ilusória da realidade, que serve de instrumento de dominação de classe) como se sabe, não serve somente no embate com a classe em oposição, mas também para justificar a própria ação como classe, para si mesmo. Em função de interesses particulares, os magistrados procuram interferir em processos de desapropriação de áreas comprovadamente improdutivas, criando empecilhos legais dos mais diversos, como ficou público no caso de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, em que inclusive laços de parentesco envolvendo uma magistrada com o latifundiário, levaram à suspensão da ação legal conduzida por parte do governo federal.
Quando não recebem um aval positivo do Poder Judiciário, tentam influenciar a opinião pública através dos seus porta-vozes nos grandes meios de comunicação social, que seguem na tentativa de justificar um direito que, na realidade, carece de legitimidade desde o seu princípio. E, ao organizarem milícias armadas como o PRC – Primeiro Comando Ruralista –, os proprietários de terra admitem a deslegitimação de sua causa, retrocedendo ao uso da força para proteger um direito quando este não pode ser assegurado por lei.