segunda-feira, 2 de novembro de 2009

EVANGÉLICOS OU HOMOSSEXUAIS

Há dois grandes equívocos no debate recente sobre o projeto de lei federal que pretende criminalizar a homofobia e a sua recepção entre os cristãos, especialmente pastores evangélicos. Equívocos que foram mantidos no debate estadual, mais recente, proporcionado pelo projeto de lei do deputado Moisés Diniz (PCdoB).

O primeiro equívoco está na posição adotada pelos homossexuais ao restringir, para o âmbito da psicopatia, e portanto para o campo da individualidade, uma tradição social contrária à homossexualidade. É um erro crasso, mas perfeitamente compatível com o galopante processo de individualização da vida política em curso nas sociedades capitalistas.


O preconceito anti-homossexual, se tem origem social, não pode ser combatido no âmbito da psicopatia. Aliás, esta foi a grande descoberta dos movimentos de luta sociais ao longo do século XX.

Cito como exemplos duas lutas que tiveram grandes êxitos, embora ainda estejam em curso: a luta pela emancipação da mulher e a luta pelos direitos raciais, principalmente entre os negros norte-americanos.


Ambos os movimentos tiveram forte rejeição no meio religioso: a luta feminista, por clara incompatibilidade com a origem patriarcal do cristianismo, e a luta dos negros devido à concepção de que a cor da pele derivava-se (alguém ainda lembra disso?) do sinal de Caim.


Depois descobriu-se que as mulheres poderiam dar líderes religiosos tão bons e até melhores que os homens. Descobriu-se também que a cor negra, além de ser majoritária em todas as épocas da Humanidade - hoje também -, deve-se a uma maior quantidade de pigmentos para proteger a pele em determinados climas tropicais.


Debate vai, debate vem, não é que a sociedade resolveu ser menos intolerante?


Nos dois casos o segredo do sucesso foi o mesmo: a correta compreensão de que o preconceito tem origem social e não individual. Que é um fenômeno de macropolítica, e não da idiossincrática preferência individual. Que é algo para ser discutido no campo da processualidade histórica, não do desvio psicossomático.


Ao estabelecer como portador de homofobia, uma doença psíquica, o indivíduo que por uma razão religiosa acredita que homossexuais não vão para o céu, o movimento homossexual fecha as portas do contra-argumento, rotula o indivíduo, superficializa o debate e inicia, no processo, exatamente aquilo que denuncia: a discriminação.


Mas há um segundo equívoco no debate. Este diz respeito aos evangélicos, cuja origem e tradição patriarcal da sua religião exclui totalmente a possibilidade de existir, como fiel, um homossexual. Aliás, é preciso que isso fique claro: a organização sociopolítica do povo judeu, com família nuclear e forte herança patriarcal, impede - e aliás, condena literalmente - a homossexualidade.


Até aí a questão é compreensível, desde que tomada antropologicamente. O problema é quando esta autodefinição identitária, específica do povo judeu e assimilada, por tabela, pelas religiões cristãs, é estendida ao amplo campo da vida política.


Como a política é, por definição, o exercício da vida social em que os cidadãos decidem normas e valores para a convivência comum, o pressuposto básico é que nenhuma noção particular, seja crença ou valor pessoal, pode ter valor ou poder de coerção sobre os demais cidadãos. Esta forma de fazer política já era a regra na Grécia antiga, apesar do absurdo da escravidão (os escravos não eram considerados cidadãos).


Hoje o problema é que, ao estabelecer como "pecado" um determinado comportamento sexual, o cristão não restringe o erro à circunscrição da sua religião, apenas. O pecado, para o cristão, existe mesmo se cometido por pessoas que não compartilham daquele princípio religioso, o que claramente afronta o princípio básico de qualquer democracia: a liberdade.


Ocorre que faz parte da própria arquitetura do cristianismo aquela noção segundo a qual o seu sistema de crenças tem aplicabilidade universal e não apenas religiosa ou litúrgica. Esta foi, não por acaso, a maior fonte de polêmica e de embates históricos do cristianismo com a democracia: a concepção de que uma forma religiosa tem preferência ou maior valor que as demais formas religiosas, não-religiosas ou mesmo irreligiosas, é fundamentalmente antidemocrática e pior que isso: possui um profundo e incontestável potencial ditatorial.


É ditadura aquela concepção política que se estabelece como válida para todas as demais, pelo seu simples mérito ou auto-contemplação.


Se os evangélicos, ou os pastores evangélicos, querem mesmo levar esta discussão a cabo, devem antes submeter a sua concepção religiosa à vida política: homossexualidade pode ser considerada pecado, sim, desde que no âmbito da doutrina cristã e por parte de cristãos. Uma doutrina não pode, exatamente pelos princípios da liberdade e da tolerância que os próprios pastores esgrimam, estabelecer-se como um valor político a ser seguido por todos.


Portanto, assim como nenhum homossexual não pode estabelecer que todo evangélico contrário à causa homossexual é portador de homofobia, nenhum evangélico tem o direito de acusar homossexuais não-cristãos de cometerem crime contra a divindade.
Não numa democracia.


A foto é do
portal evangélico Padom. Segundo o expediente do referido sítio, a palavra significa "liberdade e redenção".

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