domingo, 31 de março de 2019

Entrevista com Bruno Latour

"Para que os fatos científicos sejam aceitos, é preciso um mundo de instituições respeitadas. Por exemplo, sobre as vacinas se diz: “Estas pessoas ficaram loucas, estão contra as vacinas.” Mas não é um problema cognitivo, de informação. Os que são contra não serão convencidos com um novo artigo na revista 'The Lancet'. Essas pessoas dizem: “É este mundo contra este outro mundo, e tudo o que se diz no mundo de vocês é falso.”

Comentário meu: Não só em relação às vacinas, mas em tudo o que envolve a coletividade. O que ocorre de fato é que determinadas forças políticas pré-modernas estão utilizando a Falácia de Falsa Simetria para redesenhar o poder no mundo atual. E a democracia representativa tal como a conhecemos não tem defesas naturais contra esse germe irracionalista. Estamos assistindo o retorno da Idade Média, agora com internet, robôs e smartphones. Para acessar a entrevista completa, realizada pelo jornal El País, clique aqui.

domingo, 10 de março de 2019

Comércio não é capitalismo

O texto a seguir foi publicado por uma professora de Filosofia no Facebook. Como a patrulha "libertária" resolveu atacá-lo, e como o que normalmente ocorre em eventos assim é o autor, irritado, apagar a postagem, tomei a liberdade de reproduzi-lo aqui. Até a próxima!
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Link para a postagem original: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10205703086454358&id=1771051006
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Vou falar aqui algo óbvio, mas cuja confusão que fazem na internet tá me incomodando há tempos.

Comércio não é capitalismo.

A simples produção, troca ou compra e venda de mercadorias não configura capitalismo. Produzir um bem ou fazer um serviço, vender esse bem ou serviço e adquirir dinheiro para comprar outros bens ou serviços não é capitalismo. Pessoas TEREM DINHEIRO OU PROPRIEDADE não é capitalismo.

Tudo isso que eu falei acima existe há milênios. O capitalismo surgiu somente no século XV.

Nossa, mas se capitalismo não é isso aí em cima, o que ele é? Olha, é possível escrever teses de doutorado a respeito. Não é um assunto simples. Mas como a gente tá no facebook, eu vou resumir:

Capitalismo é um sistema econômico quase mágico, que permite e autoriza um pequeno grupo x de pessoas ganhar dinheiro - às vezes muito dinheiro - se apropriando de parte considerável do valor das mercadorias e serviços que são produzidos por um gigante grupo y de pessoas. Ou seja, os grupos x e y trabalham e produzem, mas é só o grupo x que fica rico. E a "mágica" é que isso acontece de uma forma que as pessoas do grupo y raramente percebem que estão sendo literalmente roubadas todos os dias pelas pessoas do grupo x.

Capitalismo é isso.

O grupo y trabalha muito. E produz coisas importantes, necessárias e às vezes muito valiosas. Até mesmo itens de luxo, produtos caríssimos, que não seriam caríssimos se não fosse pelo espetacular trabalho desse grupo. Mas o grupo y não recebe como pagamento o valor daquilo que produziu. Recebe muito menos. O grupo y recebe por seu trabalho uma coisa chamada "salário". Que quase sempre é baixíssimo. Tão baixo que às vezes o Estado precisa botar um piso, chamar de "salário mínimo" e determinar por lei que trabalhador nenhum pode receber menos que aquilo.

Ué, mas se o grupo y produz coisas boas e caras e só recebe salário mínimo, para onde vai o lucro gerado pelo comércio daquilo que o grupo y produziu? Tcharam! Vai para o grupo x. O grupo x geralmente é composto pelos donos dos lugares onde o grupo y produz mercadorias. E por ser dono do lugar e trabalhar para manter o lugar funcionando, o grupo x se acha mais importante e diz que é dono de tudo aquilo que o grupo y produziu. Pega toda a produção, vende, paga ao grupo y um salário. Às vezes, paga só o mínimo mesmo. Às vezes, nem o mínimo. E bota no bolso o que sobra. Que às vezes é muito. Muito mesmo, montanhas de dinheiro.

Nossa, Bia, mas isso é injusto, por que as pessoas do grupo y não se revoltam? Então, elas não se revoltam porque ensinam para elas desde crianças, no capitalismo, que elas são livres e que se elas estudarem muito e trabalharem bastante, um dia elas sairão do grupo y e serão parte do grupo x. Nada as impede, basta trabalhar, estudar, tomar as decisões certas e ter um pouco de sorte. Daí quase todo mundo do grupo y estuda, trabalha, estuda, trabalha, estuda, trabalha, envelhece e morre no grupo y. Mas quando, no meio de milhões do grupo y, uma consegue e chega no x, essa pessoa vira inspiração para as outras no grupo y, que continuam sonhando e trabalhando e estudando e morrendo pobres. É uma mágica. Algumas pessoas do grupo y, por serem um pouco menos pobres, até se iludem, começam a pensar que são grupo x e se acham superiores ao resto do povão do grupo y. Iludidas. A gente no século XX começou a chamar esses iludidos de "classe média". São grupo y do mesmo jeito, mas usam perfume caro e o cheiro forte confunde a cabeça delas.

Mas vejam só que ironia, quem teve a sorte de nascer filho de gente do grupo x fica no grupo x para sempre, por causa de uma coisa chamada "herança".

E assim caminha a humanidade. A lógica é tão perversa que no ano de 2018 mais da metade da riqueza produzida no mundo inteiro foi para o bolso de apenas 1% da população mundial. Viram? 50% da riqueza no bolso de 1%. Eles são o grupo x. O grupo y, composto pelos outros 99%, que se vire com os 50% restantes. E o grupo y se vira mal, porque os 99% distribuem sua metade de maneiras bem injustas também. Não é por acaso que mais da metade do grupo y passa fome.

Mas no século XIX teve um filósofo que escreveu livros e explicou isso para as pessoas. Ele chamou o grupo y de "classe trabalhadora". Chamou o grupo x de "burguesia". Chamou o lucro que sai dos músculos da classe trabalhadora e entra nos bolsos da burguesia de "mais valia". Chamou o sonho bobo e quase impossível da classe trabalhadora de se tornar burguês, que cria a mágica que faz a classe trabalhadora não querer se revoltar, de "ideologia". Chamou os lugares onde a classe trabalhadora trabalha de "meios de produção", dos quais a burguesia é proprietária. E concluiu que o mundo só será mais justo no dia em que acabar a propriedade privada dos meios de produção. Esses meios de produção devem ser de todos e todos que neles trabalham devem receber o justo e proporcional pagamento pelo seu trabalho.

E os leitores desse filósofo se espalharam pelo mundo explicando que a classe trabalhadora precisa se organizar e lutar contra os interesses da burguesia e contra a propriedade privada dos meios de produção, para parar de ser roubada e ter melhores condições de vida.

Esse filósofo é um perigo. Ele pode mudar tudo. É por isso que as pessoas da burguesia investem dinheiro e tempo pensando em estratégias para impedir que as pessoas da classe trabalhadora conheçam o filósofo e seus leitores. As pessoas iludidas da classe trabalhadora, a classe média que acha que é da burguesia, ajudam nisso. Chamam os leitores do filósofo de desocupados, de vagabundos, de mentirosos. Falam que eles não gostam de trabalhar. Dizem que o mundo sempre foi desse jeito e sempre será. Dizem que onde há comércio, há capitalismo. Tiram o filósofo dos livros escolares, proíbem as pessoas de falarem dele, acusam quem fala dele de ser "doutrinador", distorcem o que o filósofo disse, falam mentiras sobre a vida dele. Porque a burguesia, o 1%, quer conservar o mundo como está. São conservadores. São de direita. A classe média é de direita também, mas é porque é iludida, lembram? E os leitores do filósofo querem que o mundo mude. São de esquerda. Querem uma grande revolução.

O filósofo se chama Karl Marx. É ele que vai ajudar as pessoas a um dia pararem de confundir "comércio" com "capitalismo" nos debates de internet. E eu espero que esse dia chegue logo.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A função política das tradições


Muito já se escreveu sobre a recente determinação do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para a escolas gravarem os alunos cantando o hino nacional. O que isso tem de errado?

Rituais, cerimônias e símbolos fazem parte do funcionamento de todas as sociedades desde tempos imemoriais. Música, pinturas corporais, símbolos da natureza: vale tudo para estabelecer entre os indivíduos a sensação de pertencimento coletivo que une, dá sentido, disciplina os instintos. As sociedades intuem que a submissão das vontades pessoais aos interesses da coletividade é o ponto de partida para o mínimo de convivência ordenada.

Desde o fim do século XIX a Ciência Política utiliza a expressão “dominação tradicional” para designar um conjunto de práticas que os Estados tomam para maximizar esta sensação. A literatura acumulada diz que a dominação tradicional não é só uma forma de garantir a união entre as pessoas. É também uma forma do Estado obter legitimidade, isto é, a obediência dos governados.

Em outras palavras, ao incorporar práticas, rituais e cerimônias tradicionais, os governantes obtém automaticamente a autoridade que delas deriva, e, por tabela, o consentimento dos cidadãos. Isso viabiliza um tipo de controle social que a violência, por exemplo, não consegue obter – não é por acaso que boa parte da disciplina militar, nas polícias e forças armadas, consista exatamente na maximização da obediência cívica a rituais, cerimônias e símbolos.

É possível vislumbrar nesse fenômeno a enorme capacidade dos seres humanos para construir significados que garantam algum sentido à existência. Cores, formas, animais, tons musicais etc são aleatórios em estado de natureza. Apropriados por uma cultura passam a dar sentido à vida, individual e coletiva, para viabilizar o exercício da ordem política. Todas as culturas são, portanto, pura criatividade – e, sabe-se hoje, em constante reformulação através do contato intercultural entre as sociedades.

A Antropologia chama esta capacidade criativa de “pensamento simbólico”.

Graças ao pensamento simbólico, a união entre política e cultura consegue extrair o máximo de obediência autorizada, prevenindo inclusive insurreições populares. Quando a ordem política é também sagrada, sacrificar a própria vida em sua defesa tende a ser um trunfo dos governos e algo bem visto socialmente.

Uma das muitas lições do século XX foi que a “defesa da raça” é o passo seguinte da “defesa da cultura” - tomada como uma “essência”, algo que define um povo.

Em nome da defesa das tradições, ou do que um povo concebe idealmente como suas tradições, é possível manter uma forma permanente de dominação social. Isso normalmente é feito, ainda hoje, por governos avessos à forma democrática.

Para impedir essa tendência regressiva, os teóricos dos Estados democráticos priorizaram outra forma de controle das vontades: a dominação racional-legal. Em outras palavras, as ações dos indivíduos não devem ser disciplinadas pelo grau de apego às tradições, mas, principalmente, por dispositivos jurídico-normativos impessoais. É o que chamamos de “legislação”.

Para dominar, a legislação precisa ser neutra: ao mesmo tempo em que reconhece as construções culturais, oferece ao governo outro caminho para a legitimidade. O Poder Executivo precisará legitimar suas ações a partir de um arsenal normativo aprovado pelo Legislativo - deputados e senadores -, que representa as contradições culturais presentes numa sociedade. Isso garante um certo grau de diálogo entre as instituições governamentais.

Na medida em que um governo tenta identificar seu slogan de campanha com uma tradição cívica, exatamente como fez o ministro da Educação em seu comunicado, esse princípio é ferido, mas não é somente isso. Vi hoje pela manhã, enquanto escrevia esse artigo, que o ministro voltou atrás de sua decisão.

Era esperado. Mas, meu ponto é outro.

Meu ponto é que a associação entre símbolos nacionais e ordem social, como crescentemente vem ocorrendo no Brasil e em outros países, está a todo custo tentando devolver à esfera pública uma forma de governo de viés medieval, cuja autoridade não se deriva do marco legal, mas da obediência às tradições.

Em outras palavras, o mundo está mergulhando de cabeça em outra forma de fazer política. Não é nada novo, inclusive. Todo e qualquer regime de poder pela força da aparência, de imperadores da antiguidade a déspotas esclarecidos do fim da Idade Média, governaram exatamente nesses moldes. Nessas relações de poder, claro, não há espaço para a democracia. São regimes de força bruta e obscurantistas.

O único ponto novo é que esse regresso político, em nome do resgate das tradições para combater a decadência dos valores morais, encontrará um capitalismo em crise de acumulação. A rigor, a crise moral é a superfície da crise de produção de valor material. É seu reflexo. Isso mostra o quão equivocado o regresso está.

Desde meados do século XIX, quando vários movimentos sociais constituíram os direitos políticos, sociais e econômicos, os Estados tiveram que se organizar, se quisessem dominar as sociedades, concedendo esses direitos. Com a crise, a tendência é que a vida pública como a conhecemos, com sistemas de saúde, segurança, educação etc, seja aos poucos desmontada enquanto as formas de governo tornam -se indiferentes ao controle coletivo – porque governam através dos “valores”, e disso derivam a sua legitimidade.

Vem aí, portanto, o divórcio entre capitalismo e democracia, com os “valores morais” como testemunhas. Em nome da ordem e dos cidadãos de bem.