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A função política das tradições


Muito já se escreveu sobre a recente determinação do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para a escolas gravarem os alunos cantando o hino nacional. O que isso tem de errado?

Rituais, cerimônias e símbolos fazem parte do funcionamento de todas as sociedades desde tempos imemoriais. Música, pinturas corporais, símbolos da natureza: vale tudo para estabelecer entre os indivíduos a sensação de pertencimento coletivo que une, dá sentido, disciplina os instintos. As sociedades intuem que a submissão das vontades pessoais aos interesses da coletividade é o ponto de partida para o mínimo de convivência ordenada.

Desde o fim do século XIX a Ciência Política utiliza a expressão “dominação tradicional” para designar um conjunto de práticas que os Estados tomam para maximizar esta sensação. A literatura acumulada diz que a dominação tradicional não é só uma forma de garantir a união entre as pessoas. É também uma forma do Estado obter legitimidade, isto é, a obediência dos governados.

Em outras palavras, ao incorporar práticas, rituais e cerimônias tradicionais, os governantes obtém automaticamente a autoridade que delas deriva, e, por tabela, o consentimento dos cidadãos. Isso viabiliza um tipo de controle social que a violência, por exemplo, não consegue obter – não é por acaso que boa parte da disciplina militar, nas polícias e forças armadas, consista exatamente na maximização da obediência cívica a rituais, cerimônias e símbolos.

É possível vislumbrar nesse fenômeno a enorme capacidade dos seres humanos para construir significados que garantam algum sentido à existência. Cores, formas, animais, tons musicais etc são aleatórios em estado de natureza. Apropriados por uma cultura passam a dar sentido à vida, individual e coletiva, para viabilizar o exercício da ordem política. Todas as culturas são, portanto, pura criatividade – e, sabe-se hoje, em constante reformulação através do contato intercultural entre as sociedades.

A Antropologia chama esta capacidade criativa de “pensamento simbólico”.

Graças ao pensamento simbólico, a união entre política e cultura consegue extrair o máximo de obediência autorizada, prevenindo inclusive insurreições populares. Quando a ordem política é também sagrada, sacrificar a própria vida em sua defesa tende a ser um trunfo dos governos e algo bem visto socialmente.

Uma das muitas lições do século XX foi que a “defesa da raça” é o passo seguinte da “defesa da cultura” - tomada como uma “essência”, algo que define um povo.

Em nome da defesa das tradições, ou do que um povo concebe idealmente como suas tradições, é possível manter uma forma permanente de dominação social. Isso normalmente é feito, ainda hoje, por governos avessos à forma democrática.

Para impedir essa tendência regressiva, os teóricos dos Estados democráticos priorizaram outra forma de controle das vontades: a dominação racional-legal. Em outras palavras, as ações dos indivíduos não devem ser disciplinadas pelo grau de apego às tradições, mas, principalmente, por dispositivos jurídico-normativos impessoais. É o que chamamos de “legislação”.

Para dominar, a legislação precisa ser neutra: ao mesmo tempo em que reconhece as construções culturais, oferece ao governo outro caminho para a legitimidade. O Poder Executivo precisará legitimar suas ações a partir de um arsenal normativo aprovado pelo Legislativo - deputados e senadores -, que representa as contradições culturais presentes numa sociedade. Isso garante um certo grau de diálogo entre as instituições governamentais.

Na medida em que um governo tenta identificar seu slogan de campanha com uma tradição cívica, exatamente como fez o ministro da Educação em seu comunicado, esse princípio é ferido, mas não é somente isso. Vi hoje pela manhã, enquanto escrevia esse artigo, que o ministro voltou atrás de sua decisão.

Era esperado. Mas, meu ponto é outro.

Meu ponto é que a associação entre símbolos nacionais e ordem social, como crescentemente vem ocorrendo no Brasil e em outros países, está a todo custo tentando devolver à esfera pública uma forma de governo de viés medieval, cuja autoridade não se deriva do marco legal, mas da obediência às tradições.

Em outras palavras, o mundo está mergulhando de cabeça em outra forma de fazer política. Não é nada novo, inclusive. Todo e qualquer regime de poder pela força da aparência, de imperadores da antiguidade a déspotas esclarecidos do fim da Idade Média, governaram exatamente nesses moldes. Nessas relações de poder, claro, não há espaço para a democracia. São regimes de força bruta e obscurantistas.

O único ponto novo é que esse regresso político, em nome do resgate das tradições para combater a decadência dos valores morais, encontrará um capitalismo em crise de acumulação. A rigor, a crise moral é a superfície da crise de produção de valor material. É seu reflexo. Isso mostra o quão equivocado o regresso está.

Desde meados do século XIX, quando vários movimentos sociais constituíram os direitos políticos, sociais e econômicos, os Estados tiveram que se organizar, se quisessem dominar as sociedades, concedendo esses direitos. Com a crise, a tendência é que a vida pública como a conhecemos, com sistemas de saúde, segurança, educação etc, seja aos poucos desmontada enquanto as formas de governo tornam -se indiferentes ao controle coletivo – porque governam através dos “valores”, e disso derivam a sua legitimidade.

Vem aí, portanto, o divórcio entre capitalismo e democracia, com os “valores morais” como testemunhas. Em nome da ordem e dos cidadãos de bem.

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