É comum em algumas rodas de amigos surgirem idéias sobre, como diz o Azenha, uma "crítica à esquerda do PT". Acho que podemos começar por aqui.
Por Demétrio Cherobini(*), no Resistir.info
Um grande e poderoso mito tem sido vendido à sociedade brasileira nos últimos anos, com conseqüências danosas especialmente para as classes trabalhadoras no que tange à sua capacidade de mobilização para o enfrentamento e a superação do inimigo que, hoje, desgraçadamente, ameaça faze-la sucumbir de maneira definitiva: o sistema do capital como controlador destrutivo e perdulário dos processos que regulam o metabolismo social humano, a relação dos seres humanos entre si e o intercâmbio destes com a natureza.
Este mito tem uma aparência multifacetada e faz uso de um discurso deveras ardiloso: vende, em primeiro lugar, a idéia de que o Estado é o "indutor do desenvolvimento", sem maiores preocupações em fundamentar teoricamente sobre como se dá tal "indução" e quem é o verdadeiro responsável e principal beneficiário pela mesma.1 Em segundo lugar, se esquece, sorrateiramente, de explicar qual é a essência desse "desenvolvimento", sobre que conjunto específico de relações sociais ele se assenta, quais as suas raízes e as suas conseqüências últimas. Terceiro: propaga a crença de que existe hoje um certo partido político com capacidades semelhantes às de um sujeito titânico, que se assenhoreia da máquina pública tal como Prometeu roubando dos deuses o fogo celeste e dando-o em seguida aos homens, para que estes, assim, se tornem os senhores supremos da animalidade capitalista. Em quarto lugar, finalmente: generaliza, entre a consciência dos mais humildes, a concepção de que os parcos direitos de que dispõem não são obra de sua própria ação, realizada com organização e luta, mas lhes foram concedidos de cima, de forma gratuita, generosa, desinteressada e benevolente, pelas mãos dos grandes pais e mães dos pobres que freqüentam esse partido, o presidente Fulano, o governador Beltrano e o deputado Sicrano, que labutam arduamente todos os dias para que os trabalhadores não precisem se preocupar com nada e possam, de modo tranqüilo e descansado, gozar privadamente as dádivas inocentes e inofensivas do consumo em massa.
Não devemos, contudo, nos deixar enganar a respeito dessa mitologia caricata: não é, de fato, o Estado o verdadeiro responsável pela "indução do desenvolvimento", e sim o próprio capital. Quem demonstra isso de forma cabal é István Mészáros em seu clássico Para além do capital: rumo a uma teoria da transição . De acordo com as palavras do filósofo (2002., 107):
"Em sua modalidade histórica específica, o Estado moderno passa a existir, acima de tudo, para poder exercer o controle abrangente sobre as forças centrífugas insubmissas que emanam de unidades produtivas isoladas do capital [grifo nosso], um sistema reprodutivo social antagonicamente estruturado. […] Tomando o lugar do princípio que regia o sistema reprodutivo feudal, passa a existir um novo tipo de microcosmo socioeconômico, caracterizado por grande mobilidade e dinamismo [ou seja, as unidades produtivas do capital]. Contudo, a eficácia desse dinamismo depende de um 'pacto faustiano com o diabo', sem nenhuma garantia de que no momento devido apareça algum deus salvador para derrotar Mefistófeles, quando este vier a reclamar o preço acertado. O Estado moderno constitui a única estrutura corretiva compatível com os parâmetros estruturais do capital como modo de controle sociometabólico. Sua função é retificar – deve-se enfatizar mais uma vez: apenas até onde a necessária ação corretiva puder se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do capital – a falta de unidade [entre a produção e seu controle, a produção e o consumo e a produção e a circulação ]."2
Ou seja, segundo Mészáros, o capital é um sistema de mediações de segunda ordem, essencialmente antagônico e, em nossos dias, profundamente destrutivo. Ele se afirma sobre as mediações de primeira ordem da atividade produtiva (ou, se se preferir, do trabalho). Para se perpetuar enquanto tal, o sistema do capital precisa necessariamente explorar e acumular trabalho excedente, e se expandir, evidentemente, para poder reproduzir esta sua própria dinâmica. Nesse processo, automático e ininterrupto, os "microcosmos" do sistema (isto é, suas unidades produtivas) são reféns, muitas vezes, de "forças centrifugas" (ou seja, eles entram "em conflito ou oposição" consigo mesmos: perdem, pois, a sua coesão), e requerem, para a sua momentânea harmonização, a ação de um determinado corretivo.
Ora, o elemento que promove a retificação dos "microcosmos antagonicamente estruturados" do sistema do capital é, justamente, o Estado. É nesse sentido que o Estado moderno compõe uma "estrutura de comando fundamental e sui generis" (ibid., 120) dentro da ordem de reprodução sociometabólica vigente. Por isso mesmo, tal instituição pertence à "materialidade do sistema do capital" (ibid., 121), visto que corporifica a dimensão coesiva das suas exigências estruturais orientadas para a expansão, acumulação e extração do trabalho excedente. Diz Mészáros: "É isto que caracteriza todas as formas conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da ordem sociometabólica do capital" (ibid., 121). O Estado não está, portanto, além ou à parte dessa estrutura material mais ampla que é o capital. Ele constitui um dos seus elementos fundamentais e participa ativamente no deslocamento das contradições inerentes a esse sistema.
O autor de Para além do capital afirma, então, que é equivocado considerar o Estado como uma superestrutura que se ergue sobre um conjunto determinado de forças e relações de produção. Ao contrário, ele deve ser entendido como momento constituinte da própria base do sistema. A "base material do capital" consiste, pois, num complexo de mediações que controlam a reprodução sociometabólica humana – o intercâmbio dos homens entre si e com a natureza -, sendo o Estado, dentro dessa dinâmica, um dos elementos mais importantes. O Estado é, pois, a estrutura de comando político que o sistema usa para dar coesão aos seus microcosmos, nos momentos em que estes entram em antagonismo e ameaçam comprometer a viabilidade do complexo total. O Estado desloca esses antagonismos e "harmoniza", momentaneamente, a processualidade expansiva do capital.3 É correto, portanto, dizer que o capital, para extrair trabalho excedente, usa o Estado. No sistema de "capitalismo privado", esta mediação específica tem como tarefa precípua facilitar a exploração do trabalho excedente que "se desdobra espontaneamente". Isto é, assim, algo bastante diferente da idéia de que o Estado controla "de fora" o capital, que é a que se tenta veicular ao se divulgar e ideologia da "indução do desenvolvimento".
Desmistificada, dessa maneira, tal concepção, resta ainda uma reflexão a ser feita: qual o papel do Estado dentro de uma práxis social e política verdadeiramente alternativa, revolucionária? Devem os socialistas, uma vez tomada ciência desse fato, virar meramente as costas para o Estado e deixar de lado a luta que se dá no interior dessa instância específica? De forma alguma, diz o filósofo húngaro. É preciso, aqui, saber coadunar a formação das mediações extraparlamentares com uma prática de reestruturação radical da instituição estatal. Como isso deve se dar?
Para Mészáros, a forma da atividade revolucionária necessita ser radicalmente crítica, isto é, ser capaz de articular negação e afirmação com vistas a atingir a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho". A conjugação de negação e afirmação é que vai definir a proposta da ofensiva socialista do filósofo húngaro. No plano da práxis crítica radical, a negação consiste – neste ponto específico da sua teoria política – na atuação que se dá ainda no âmbito do Estado . Aqui, pois, negação é sinônimo de defensiva. A defensiva não deve ser desprezada para os objetivos político-sociais emancipatórios dos trabalhadores. O grande problema, no entender de Mészáros, não é o de se levar a cabo atividades defensivas – por exemplo, lutar no interior do parlamento pela manutenção de direitos conquistados historicamente –, mas o de somente se estabelecer na prática tais ações. Isto porque elas devem ser complementadas pela formação de mediações que estejam além do Estado, que sejam, como diz o filósofo, extraparlamentares. A ofensiva socialista é esta conjugação de ação negativa e afirmativa, de práxis que se dá também no plano do Estado, mas que ocorre fundamentalmente fora dele, a fim de se levar a efeito a formação das devidas mediações materiais que conduzirão os trabalhadores rumo à "nova forma histórica", a comunidade humana emancipada.
Em síntese: a proposta de transição ao socialismo de Mészáros é esta que, no seu movimento ofensivo – de formação das referidas mediações extraparlamentares de atuação sócio-política –, engloba a práxis defensiva – que se desenrola no plano do Estado – e, evidentemente, a transcende. É por isso que o filósofo húngaro afirma que nossa tarefa é "simultaneamente 'negar' o Estado e atuar no seu interior" (ibid., 597). Todos esses imperativos devem ser conduzidos na direção de uma progressiva distribuição do poder de decisão aos "produtores livremente associados", para que estes, cada vez mais, se co-responsabilizem pela regulação consciente dos processos sociometabólicos a partir de uma forma horizontal – superando, assim, a divisão hierárquica do trabalho conformada pelo capital – e promovam progressivamente o fenecimento do Estado – que deve se tornar obsoleto.
Desse modo, o movimento de transformação socialista, que deve abarcar todos os aspectos constitutivos da inter-relação entre capital, trabalho e Estado, é concebido como um modo de reestruturação completa e radical das mediações materiais herdadas. A formação dessas novas mediações, na visão de Mészáros, não significa gradualismo ou reformismo, o que seria uma contradição em termos. O capital não pode ser controlado, não compartilha poder, não pode ser reformado. É ele que controla o sociometabolismo humano e usa as mediações que conformam seu sistema de acordo com os imperativos de expansão, acumulação e exploração do trabalho excedente. Nesse contexto, a única alternativa viável é a superação dessa ordem, e não a tentativa de fazê-la submissa a algum tipo de "rédea".
O projeto político-social que Mészáros propõe para a transição ao socialismo exige, pois, atuar em ambas as frentes, no interior do Estado e fora dele. Envolve, necessariamente, o momento negativo – atuação defensiva que pode se dar no interior do parlamento, etc, mas que deve buscar aí ser já afirmativa, por meio da reestruturação completa de tais mediações, no objetivo de promover a democracia substantiva –, mas vai além dele, isto é, dirige-se para a ofensiva, para a criação de mediações materiais extraparlamentares capazes de regular conscientemente o metabolismo social.
Saudemos, pois, essas idéias radicais e estimulantes. E quando os mistificadores de plantão – que só combatem o "governo FHC" e o "neoliberalismo", mas esquecem completamente de criticar seu fundamento, o capital – vierem tentar nos convencer a dar um voto de confiança para suas propostas reformistas e de conciliação entre as classes, estaremos amparados pela boa e velha arma da crítica marxista, que deveremos fazer se transformar, com o passar do tempo, em crítica das armas.
NOTAS
1. A verborragia sobre o "choque de liquidez", a "ampliação dos investimentos públicos", a "desoneração dos investimentos privados", a "proteção social aos mais vulneráveis", etc, não passa, nesse contexto, de pura falácia, porque não vai às raízes do processo que determina o desenvolvimento em questão: a relação entre capital, trabalho e Estado.
2. Mészáros afirma que, nessas três situações, ocorre uma ausência de unidade (ou uma fragmentação) que leva frequentemente à formação de antagonismos sociais. É com a finalidade de corrigir essa ausência de unidade e evitar tais antagonismos que age o Estado moderno. Ele é, de fato, a "única estrutura" corretiva capaz de realizar tal tarefa.
3. Mas é equivocado pensar que a relação entre capital e Estado é perfeitamente harmoniosa. Na verdade, apresenta tremendas contradições em seu âmago. Um exemplo dado por Mészáros sobre a "dissonância" entre capital e Estado reside no fato dos capitais nacionais que, muitas vezes, entrelaçados aos seus respectivos Estados nacionais, entram em conflito com outros Estados nacionais e seus capitais nativos. O capital "global", nesse movimento, tende a se integrar, ao passo que é incapaz de, nesse mesmo movimento, alcançar uma forma política estatal global, fato que por si só constitui uma grande – e explosiva – contradição.
REFERÊNCIA
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
(*) Cientista social, mestre em Educação (Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil).
"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." Theodor W. Adorno
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
CONTRA A BARBÁRIE
Leitor Emílio Reis, nos comentários, mandou os torpedos a seguir:
Josafá, vc colocou um enigma, mas não deu a resposta. Como vc acha que isso pd ser resolvido? As pessoas precisam de coisas seja no capitalismo seja no socialismo, e a população mundial vai aumentar tanto num qto no outro. Não sei mto bem, mas parece que houve tragédias ambientais também na antiga URSS. Como fica isso? Ou vc acha que todos devem apertar o cinto e consumir menos? Isso jã não pd ser feito já no capitalismo com o desenvolvimento sustentável? Desculpe se estou sendo chato, é que não entendi a mensagem muito bem. Abraços calorosos!
Emílio, a solução para uma economia baseada no acúmulo, que necessita produzir mais para gerar lucro, é uma economia baseada na satisfação das pessoas. Ou no que elas precisam pra viver.
Já que todas as pessoas precisam de coisas, como você diz, seria bem mais simples que todas se reunissem de alguma forma, combinassem entre si o que deveria ser produzido e então passarem a produzir. Roupas, sapatos, aviões, enlatados, cerveja (hmmmmm...), livros, até mesmo serviços poderiam ser produzidos desta forma. Para distribuir, bastaria que cada um recebesse segundo a sua necessidade, de acordo com o trabalho individual dispendido nos processos de fabricação.
Numa economia assim o impacto sobre a natureza seria infinitamente menor. Hoje é preciso produzir muito mais, porque cada mercadoria tem que ser vendida com lucro. Não é por acaso que o sofrimento do planeta com a presença humana tornou-se mais evidente com o capitalismo. Veja as emissões de CO2. Os conquistadores espanhóis, ingleses, franceses etc ateavam fogo em plantações, pastos ou aldeias inimigas. Os capitalistas modernos deram um jeito de derrubar e pôr fogo nas florestas, erguer chaminés imensas na maior parte das cidades e transformar o que chamamos de "trânsito" em algum tipo de antessala do Reino de Hades...
Claro, a população mundial cresce tanto no capitalismo quanto no socialismo. O que muda é a forma de relacionamento entre homens e natureza. A nossa forma de intervenção hoje é insustentável porque a busca pelo lucro exige, impõe que se avance sobre os estoques de matérias-primas em escala industrial. Para que um pequeno grupo acumule capital e fique rico é preciso primeiro produzir capital. E capital só se produz com trabalho, que por sua vez requer o avanço sobre a natureza. E como o trabalho humano sobre a natureza só se dá transformando-a, a questão é então de ritmo.
O chamado "desenvolvimento sustentável" é uma tentativa de reduzir esse ritmo, em várias frentes: legislações de proteção florestal, consumo consciente ou responsável, reciclagem do lixo, da água, uso de matrizes energéticas limpas e por aí vai. Tudo isso é muito inteligente, tenta-se frear aquele ímpeto destruidor por meio de barreiras jurídicas e práticas novas de cidadania. Mas a grande questão é: funciona no capitalismo? Eu estou convencido que não, e mais, há um grande risco subjacente a essa prática ecocapitalista. Ela pode gerar uma desculpa para um tipo novo de fascismo, um ecofascismo.
As pessoas não podem ser tolhidas de suas escolhas. No socialismo as pessoas escolhem porque participam dos processos, desde as deliberações políticas até a vida econômica propriamente dita. Continuam sendo indivíduos com necessidades, aspirações, interesses ou desejos diferentes em relação aos outros. O que é ótimo, porque as pessoas não são iguais entre si. São essas diferenças que vão permitir que as pessoas melhorem a si mesmas e exercitem um princípio básico do cosmopolitismo: a convivência com a diversidade.
Nesse ecocapitalismo, a necessidade de um Estado extremamente forte e atuante para regulamentar processos econômicos e sociais tende a criar um monstro porque continuará estratificando a sociedade de outra forma. E sem eliminar o capitalismo, ou seja, sem eliminar a exploração da natureza para o lucro, que, como citei no começo, é o verdadeiro problema. Temos então uma situação peculiar que é a seguinte: mantém-se o princípio do lucro privado que exige mais exploração, e por outro lado se fortalece o Estado. Um Estado que terá que ser - necessariamente será - regulatório, restritivo, disciplinador. O panóptico de Foucault elevado à institucionalidade.
Não quero ser demasiadamente simplista e dizer que "a marca de qualquer fascismo sempre foi Estado forte e capitalismo". Ainda que isto seja uma verdade, minha preocupação é com o que já ocorre hoje em nome desse monstrengo ainda embrionário. No Acre, pequenos produtores rurais são punidos pelo Ibama porque usam fogo para fazer seus roçados. Ao mesmo tempo, em nome do desenvolvimento, empreendimentos duvidosos como a prospecção de petróleo em áreas indígenas e a implantação de uma usina de álcool com subsídio estatal é louvada como se fossem a salvação para o "atraso econômico".
O Estado nunca foi um "agente neutro" nas lutas de classes. Ele sempre foi formado e manipulado para garantir os interesses dominantes. Em qualquer época histórica. Tentar pôr freio no capitalismo por meio de regulamentações estatais e ao mesmo tempo manter o princípio do lucro sobre a natureza é mais que uma contradição, é a porta aberta para a tirania disfarçada de vigilância dos agentes públicos. Uma tirania, que fique claro, contra quem não tem a necessária grana para pagar a propina do fiscal ambiental, do juiz, do promotor. Contra quem não é amigo do poder.
Poderíamos até fazer um exercício de imaginação, abstraindo todo o amor ao mandonismo, patrionialismo e coronelismo dos nossos políticos e imaginar que algo assim "desse certo". Nesse caso, a incontornável oposição entre capital e trabalho se tensionaria a tal ponto que os verdadeiros donos do poder, aboletados na própria máquina pública, tratariam de sequestrar a política - como ocorreu em abril de 64 - para garantir "o direito à propriedade, ao investimento, contra o Estado opressor". É digno de nota que esse discurso já está presente, também de forma embrionária, na sociedade atual. Em caso de dúvida basta ler qualquer informativo de órgãos empresariais, do Oiapoque ao Chuí.
Como se faz notar, a fusão entre desenvolvimento e sustentabilidade, portanto, não passa de semântica. Um truque teórico.
Outro truque: considerar que os crimes ambientais de fato ocorridos na URSS seriam de alguma forma imputáveis ao modo socialista de produção, no sentido que acabei de expor. A economia planificada socialista, como tudo o que diz respeito ao Homo sapiens, não está isenta de cometer erros, acidentes ou de avançar mesmo sobre a natureza. O ritmo e a intensidade com que tais coisas ocorrem é que são incomensuravelmente lentos se comparados aos do capitalismo. Isso dá tempo para os ecossistemas se recomporem - tempo de recomposição das espécies é uma das chaves, aliás, de uma das apostas mais enganosas do desenvolvimento sustentável: o manejo florestal. Mas esta é uma outra história...
É isso o que tinha a dizer, meu caro. Em caso de dúvida, clique nos links disponibilizados ao longo do texto. Ou envie novas questões, terei prazer em respondê-las.
Atenciosamente.
PS - O título da postagem diz respeito a um livro da revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, que tem por título "Socialismo ou barbárie?". Recentemente outro socialista, o húngaro István Meszáros, escreveu que a única resposta que se pode dar hoje a tal pergunta seria: "Barbárie, se tivermos sorte"...
Josafá, vc colocou um enigma, mas não deu a resposta. Como vc acha que isso pd ser resolvido? As pessoas precisam de coisas seja no capitalismo seja no socialismo, e a população mundial vai aumentar tanto num qto no outro. Não sei mto bem, mas parece que houve tragédias ambientais também na antiga URSS. Como fica isso? Ou vc acha que todos devem apertar o cinto e consumir menos? Isso jã não pd ser feito já no capitalismo com o desenvolvimento sustentável? Desculpe se estou sendo chato, é que não entendi a mensagem muito bem. Abraços calorosos!
Emílio, a solução para uma economia baseada no acúmulo, que necessita produzir mais para gerar lucro, é uma economia baseada na satisfação das pessoas. Ou no que elas precisam pra viver.
Já que todas as pessoas precisam de coisas, como você diz, seria bem mais simples que todas se reunissem de alguma forma, combinassem entre si o que deveria ser produzido e então passarem a produzir. Roupas, sapatos, aviões, enlatados, cerveja (hmmmmm...), livros, até mesmo serviços poderiam ser produzidos desta forma. Para distribuir, bastaria que cada um recebesse segundo a sua necessidade, de acordo com o trabalho individual dispendido nos processos de fabricação.
Numa economia assim o impacto sobre a natureza seria infinitamente menor. Hoje é preciso produzir muito mais, porque cada mercadoria tem que ser vendida com lucro. Não é por acaso que o sofrimento do planeta com a presença humana tornou-se mais evidente com o capitalismo. Veja as emissões de CO2. Os conquistadores espanhóis, ingleses, franceses etc ateavam fogo em plantações, pastos ou aldeias inimigas. Os capitalistas modernos deram um jeito de derrubar e pôr fogo nas florestas, erguer chaminés imensas na maior parte das cidades e transformar o que chamamos de "trânsito" em algum tipo de antessala do Reino de Hades...
Claro, a população mundial cresce tanto no capitalismo quanto no socialismo. O que muda é a forma de relacionamento entre homens e natureza. A nossa forma de intervenção hoje é insustentável porque a busca pelo lucro exige, impõe que se avance sobre os estoques de matérias-primas em escala industrial. Para que um pequeno grupo acumule capital e fique rico é preciso primeiro produzir capital. E capital só se produz com trabalho, que por sua vez requer o avanço sobre a natureza. E como o trabalho humano sobre a natureza só se dá transformando-a, a questão é então de ritmo.
O chamado "desenvolvimento sustentável" é uma tentativa de reduzir esse ritmo, em várias frentes: legislações de proteção florestal, consumo consciente ou responsável, reciclagem do lixo, da água, uso de matrizes energéticas limpas e por aí vai. Tudo isso é muito inteligente, tenta-se frear aquele ímpeto destruidor por meio de barreiras jurídicas e práticas novas de cidadania. Mas a grande questão é: funciona no capitalismo? Eu estou convencido que não, e mais, há um grande risco subjacente a essa prática ecocapitalista. Ela pode gerar uma desculpa para um tipo novo de fascismo, um ecofascismo.
As pessoas não podem ser tolhidas de suas escolhas. No socialismo as pessoas escolhem porque participam dos processos, desde as deliberações políticas até a vida econômica propriamente dita. Continuam sendo indivíduos com necessidades, aspirações, interesses ou desejos diferentes em relação aos outros. O que é ótimo, porque as pessoas não são iguais entre si. São essas diferenças que vão permitir que as pessoas melhorem a si mesmas e exercitem um princípio básico do cosmopolitismo: a convivência com a diversidade.
Nesse ecocapitalismo, a necessidade de um Estado extremamente forte e atuante para regulamentar processos econômicos e sociais tende a criar um monstro porque continuará estratificando a sociedade de outra forma. E sem eliminar o capitalismo, ou seja, sem eliminar a exploração da natureza para o lucro, que, como citei no começo, é o verdadeiro problema. Temos então uma situação peculiar que é a seguinte: mantém-se o princípio do lucro privado que exige mais exploração, e por outro lado se fortalece o Estado. Um Estado que terá que ser - necessariamente será - regulatório, restritivo, disciplinador. O panóptico de Foucault elevado à institucionalidade.
Não quero ser demasiadamente simplista e dizer que "a marca de qualquer fascismo sempre foi Estado forte e capitalismo". Ainda que isto seja uma verdade, minha preocupação é com o que já ocorre hoje em nome desse monstrengo ainda embrionário. No Acre, pequenos produtores rurais são punidos pelo Ibama porque usam fogo para fazer seus roçados. Ao mesmo tempo, em nome do desenvolvimento, empreendimentos duvidosos como a prospecção de petróleo em áreas indígenas e a implantação de uma usina de álcool com subsídio estatal é louvada como se fossem a salvação para o "atraso econômico".
O Estado nunca foi um "agente neutro" nas lutas de classes. Ele sempre foi formado e manipulado para garantir os interesses dominantes. Em qualquer época histórica. Tentar pôr freio no capitalismo por meio de regulamentações estatais e ao mesmo tempo manter o princípio do lucro sobre a natureza é mais que uma contradição, é a porta aberta para a tirania disfarçada de vigilância dos agentes públicos. Uma tirania, que fique claro, contra quem não tem a necessária grana para pagar a propina do fiscal ambiental, do juiz, do promotor. Contra quem não é amigo do poder.
Poderíamos até fazer um exercício de imaginação, abstraindo todo o amor ao mandonismo, patrionialismo e coronelismo dos nossos políticos e imaginar que algo assim "desse certo". Nesse caso, a incontornável oposição entre capital e trabalho se tensionaria a tal ponto que os verdadeiros donos do poder, aboletados na própria máquina pública, tratariam de sequestrar a política - como ocorreu em abril de 64 - para garantir "o direito à propriedade, ao investimento, contra o Estado opressor". É digno de nota que esse discurso já está presente, também de forma embrionária, na sociedade atual. Em caso de dúvida basta ler qualquer informativo de órgãos empresariais, do Oiapoque ao Chuí.
Como se faz notar, a fusão entre desenvolvimento e sustentabilidade, portanto, não passa de semântica. Um truque teórico.
Outro truque: considerar que os crimes ambientais de fato ocorridos na URSS seriam de alguma forma imputáveis ao modo socialista de produção, no sentido que acabei de expor. A economia planificada socialista, como tudo o que diz respeito ao Homo sapiens, não está isenta de cometer erros, acidentes ou de avançar mesmo sobre a natureza. O ritmo e a intensidade com que tais coisas ocorrem é que são incomensuravelmente lentos se comparados aos do capitalismo. Isso dá tempo para os ecossistemas se recomporem - tempo de recomposição das espécies é uma das chaves, aliás, de uma das apostas mais enganosas do desenvolvimento sustentável: o manejo florestal. Mas esta é uma outra história...
É isso o que tinha a dizer, meu caro. Em caso de dúvida, clique nos links disponibilizados ao longo do texto. Ou envie novas questões, terei prazer em respondê-las.
Atenciosamente.
PS - O título da postagem diz respeito a um livro da revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, que tem por título "Socialismo ou barbárie?". Recentemente outro socialista, o húngaro István Meszáros, escreveu que a única resposta que se pode dar hoje a tal pergunta seria: "Barbárie, se tivermos sorte"...
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
CAPITALISMO DE TRAGÉDIA
Corria o ano de 1987 quando a Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU publicou, após sete anos de longos estudos e difíceis reflexões, o relatório Our Common Future ("Nosso Futuro Comum") alertando sobre a iminente escassez dos recursos naturais causada pela exploração, o aumento de catástrofes naturais daí advindas (deslizamentos de encostas, enchentes, tsunamis e afins) e a tendência de ampliação da violência como resultado desses dois fenômenos.
Antes dele, em 1968, o Clube de Roma contratou especialistas do prestigiado MIT para elaborar e publicar outro relatório, The Limits to Growth ("Os Limites do Crescimento"), que foi a público em 1972. A conclusão do MIT: "Utilizando modelos matemáticos, pode-se afirmar sem espaço para dúvidas que o Planeta Terra não suportará o crescimento populacional devido à pressão gerada sobre os recursos naturais e energéticos e ao aumento da poluição, mesmo tendo em conta o avanço tecnológico."
Dificilmente algo é tão igualmente óbvio para o senso comum e o mundo científico quanto a vocação do capitalismo para a tragédia. No meu caso, o horror e a solidariedade que me invadem diante das cenas dos deslizamentos no Rio de Janeiro são os mesmos que sinto durante as enchentes do rio Acre, em Rio Branco, ou do rio Tocantins, em Imperatriz (MA), de onde escrevo agora.
Em comum, esses e outros episódios têm vítimas definidas (joões, marias e josés que perdem pertences, cônjuges, pais, avós, bebês de colo etc) e algozes aparentemente indefinidos. Põe-se a culpa no Estado, em Deus, na "mãe natureza" e se esquece de pensar no óbvio. É como se a pressão desenvolvimentista sobre os ecossistemas, a escassez de recursos naturais, o aumento de catástrofes ambientais e a disputa quase sempre violenta pelos poucos quinhões de petróleo, água e mão-de-obra empobrecida em todo o mundo não fossem partes do mesmo processo econômico.
Em benefício do modo de vida que levamos, aprendemos a fechar os olhos para os males que ele mesmo trouxe. Afinal, quando compramos uma camisa de marca não queremos pensar nas crianças filipinas subassalariadas que a fabricaram. A luta de camponeses e indígenas contra madeireiras estrangeiras em suas terras não nos comove quando queremos mesmo é uma bela mesa de mogno. É preciso que "o sistema" dê, ele mesmo, sinais claros e indiscutíveis do perigo que representa para pensarmos, atabalhoadamente, em algo (alguns nem assim).
Mas não podemos mais ser ignorantes a esse respeito. Para se constituir como modo de produção único em todo o mundo, o capitalismo matou sistematicamente milhões de pessoas desde os trabalhadores da Primeira Revolução Industrial. Crianças, adolescentes, mulheres e homens que morreram sufocados ou extenuados nas minas de carvão tornaram-se as testemunhas mudas dos primeiros atos genocidas de uma ordem fundada na compra de trabalho humano.
Hoje, o esgotamento dos recursos mundiais está forçando o capitalismo a tentar destruir as mais diversas formas de vida, inclusive a humana, no esforço para manter a lógica da acumulação de trabalho que garante riqueza para os que o compram, claro, mas que também alastra a miséria entre aqueles que o vendem - as vítimas das tragédias "naturais", populações despossuídas de capital para comprar casas em lugares melhores ou mais seguros, estão nesse grupo.
Vamos esperar pra ver no que dá? A ordem capitalista é fundada no trabalho alheio e exige que se avance sobre a natureza para produzir mercadorias.
A própria ladainha desenvolvimentista, tão na moda entre empreendedores de meia pataca e pseudo-intelectuais nas províncias atrasadas de qualquer lugar do Brasil, não esconde a sua velha ânsia de dominar e transformar a natureza em business, distribuindo simultaneamente riqueza e pobreza. No caminho, as mais diversas formas de desastres "naturais" nos aguardam ansiosamente, em nome do progresso, da família e do bem-estar geral...
Alguém já viu esse filme?
Antes dele, em 1968, o Clube de Roma contratou especialistas do prestigiado MIT para elaborar e publicar outro relatório, The Limits to Growth ("Os Limites do Crescimento"), que foi a público em 1972. A conclusão do MIT: "Utilizando modelos matemáticos, pode-se afirmar sem espaço para dúvidas que o Planeta Terra não suportará o crescimento populacional devido à pressão gerada sobre os recursos naturais e energéticos e ao aumento da poluição, mesmo tendo em conta o avanço tecnológico."
Dificilmente algo é tão igualmente óbvio para o senso comum e o mundo científico quanto a vocação do capitalismo para a tragédia. No meu caso, o horror e a solidariedade que me invadem diante das cenas dos deslizamentos no Rio de Janeiro são os mesmos que sinto durante as enchentes do rio Acre, em Rio Branco, ou do rio Tocantins, em Imperatriz (MA), de onde escrevo agora.
Em comum, esses e outros episódios têm vítimas definidas (joões, marias e josés que perdem pertences, cônjuges, pais, avós, bebês de colo etc) e algozes aparentemente indefinidos. Põe-se a culpa no Estado, em Deus, na "mãe natureza" e se esquece de pensar no óbvio. É como se a pressão desenvolvimentista sobre os ecossistemas, a escassez de recursos naturais, o aumento de catástrofes ambientais e a disputa quase sempre violenta pelos poucos quinhões de petróleo, água e mão-de-obra empobrecida em todo o mundo não fossem partes do mesmo processo econômico.
Em benefício do modo de vida que levamos, aprendemos a fechar os olhos para os males que ele mesmo trouxe. Afinal, quando compramos uma camisa de marca não queremos pensar nas crianças filipinas subassalariadas que a fabricaram. A luta de camponeses e indígenas contra madeireiras estrangeiras em suas terras não nos comove quando queremos mesmo é uma bela mesa de mogno. É preciso que "o sistema" dê, ele mesmo, sinais claros e indiscutíveis do perigo que representa para pensarmos, atabalhoadamente, em algo (alguns nem assim).
Mas não podemos mais ser ignorantes a esse respeito. Para se constituir como modo de produção único em todo o mundo, o capitalismo matou sistematicamente milhões de pessoas desde os trabalhadores da Primeira Revolução Industrial. Crianças, adolescentes, mulheres e homens que morreram sufocados ou extenuados nas minas de carvão tornaram-se as testemunhas mudas dos primeiros atos genocidas de uma ordem fundada na compra de trabalho humano.
Hoje, o esgotamento dos recursos mundiais está forçando o capitalismo a tentar destruir as mais diversas formas de vida, inclusive a humana, no esforço para manter a lógica da acumulação de trabalho que garante riqueza para os que o compram, claro, mas que também alastra a miséria entre aqueles que o vendem - as vítimas das tragédias "naturais", populações despossuídas de capital para comprar casas em lugares melhores ou mais seguros, estão nesse grupo.
Vamos esperar pra ver no que dá? A ordem capitalista é fundada no trabalho alheio e exige que se avance sobre a natureza para produzir mercadorias.
A própria ladainha desenvolvimentista, tão na moda entre empreendedores de meia pataca e pseudo-intelectuais nas províncias atrasadas de qualquer lugar do Brasil, não esconde a sua velha ânsia de dominar e transformar a natureza em business, distribuindo simultaneamente riqueza e pobreza. No caminho, as mais diversas formas de desastres "naturais" nos aguardam ansiosamente, em nome do progresso, da família e do bem-estar geral...
Alguém já viu esse filme?
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
H.G. WELLS ENTREVISTA JOSEPH STALIN
Tradução livre do original em inglês, publicado em 23 de Julho de 1934.
O autor de "Guerra dos Mundos", "A Máquina do Tempo", "A Ilha do Dr. Moreau" e outros clássicos da literatura moderna discute com o dirigente soviético sobre constitucionalismo e revolução socialista, economia planificada, ditadura do coletivo sobre o indivíduo, violência estatal, estratificação social e outras questões.
Wells: Fico-lhe muito grato, senhor Stálin, por ter aceitado ver-me. Estive recentemente nos Estados Unidos. Mantive longa conversa com o Presidente Roosevelt e procurei saber quais eram suas idéias principais. Agora venho perguntar ao senhor o que está fazendo para mudar o mundo...
O autor de "Guerra dos Mundos", "A Máquina do Tempo", "A Ilha do Dr. Moreau" e outros clássicos da literatura moderna discute com o dirigente soviético sobre constitucionalismo e revolução socialista, economia planificada, ditadura do coletivo sobre o indivíduo, violência estatal, estratificação social e outras questões.
Wells: Fico-lhe muito grato, senhor Stálin, por ter aceitado ver-me. Estive recentemente nos Estados Unidos. Mantive longa conversa com o Presidente Roosevelt e procurei saber quais eram suas idéias principais. Agora venho perguntar ao senhor o que está fazendo para mudar o mundo...
Stálin: Na verdade, não muita coisa...
Wells: Vagueio pelo mundo e como um homem comum, observo o que se passa em volta de mim.
Stálin: Os homens públicos importantes, como o senhor, não são "homens comuns". Evidentemente, só a história pode determinar quão importante foi este ou aquele homem público. Em todo o caso, o senhor não vê o mundo como um "homem comum".
Wells: Não pretendi ser modesto. Quis dizer que procuro ver o mundo com os olhos do homem comum, e não como um político de partido ou um estadista. A minha visita aos Estados Unidos me causou forte impressão. O velho mundo financeiro está desabando, e a vida econômica do país está sendo reorganizada sobre novas linhas. Lênin disse que era "preciso aprender a fazer negócios" aprendendo com os capitalistas. Hoje, os capitalistas tem de aprender com os senhores, devem captar o espírito do socialismo. Parece-me que nos Estados Unidos se está levando a cabo profunda reorganização - a criação de uma economia planificada, isto é, socialista.
O senhor e Roosevelt partiram de dois pontos de vista diferentes. Porém, não há uma relação de idéias, uma espécie de parentesco de idéias, entre Washington e Moscou?
Em Washington, impressionaram-me as mesmas coisas que se passam aqui: ampliação do aparelho de direção, criação de uma série de novos organismos reguladores do Estado, organização de um serviço público universal. Como os senhores, necessitam de habilidade na direção.
Stálin: Os Estados Unidos buscam propósito diverso do que buscamos na U.R.S.S. O propósito que perseguem os norte-americanos surgiu das dificuldades econômicas, da crise econômica. Os norte-americanos pretendem desembaraçar-se das crises à base da atividade capitalista privada sem mudar a base econômica. Estão tratando de reduzir ao mínimo a ruína, as perdas causadas pelo sistema econômico existente. Aqui, entretanto, como o senhor sabe, foram criadas, em lugar do velho sistema econômico destruído, bases inteiramente diferentes; uma nova base econômica.
Embora os americanos citados pelo senhor atinjam parcialmente o seu propósito, quer dizer, reduzam ao mínimo tais dificuldades, não destruirão as raízes da anarquia que é inerente ao sistema capitalista.
Estão preservando o sistema econômico que deve conduzir inevitavelmente - e não pode senão conduzir - à anarquia na produção. De modo que, na melhor das hipóteses, o que atingirem será, não a reorganização da sociedade, não a abolição do velho sistema social que engendra a anarquia e as crises, mas a limitação de algumas de suas características negativas, certa restrição aos seus excessos. Subjetivamente, talvez os norte-americanos pensem que estão reorganizando a sociedade; objetivamente, entretanto, estão preservando as bases atuais dela. É por isso, objetivamente, que daí não resultará nenhuma reorganização da sociedade.
Nem haverá absolutamente economia planificada. Que é economia planificada? Quais são alguns dos seus atributos? A economia planificada cuida de abolir o desemprego. Suponhamos que seja possível, enquanto se preserva o sistema capitalista, reduzir o desemprego até certo mínimo. Porém, nenhum capitalista aceitará jamais a abolição total do desemprego, a abolição do exército de reserva dos desempregados, cuja razão de ser é fazer pressão no mercado do trabalho para garantir a oferta de trabalho barato. Aí tem o senhor uma das fendas da "economia planificada" da sociedade burguesa. E ainda mais, a economia planificada pressupõe aumento da produção naqueles ramos da indústria que produzem as mercadorias de que o povo mais necessita. Mas o senhor sabe que a expansão da produção, sob o capitalismo, se dá por motivos inteiramente diferentes; sabe que o capital flui para aqueles ramos da economia onde é mais alta a taxa de lucro. O senhor jamais conseguirá que um capitalista aceite uma taxa de lucro menor para satisfazer as necessidades do povo. Por isso, sem se desembaraçar dos capitalistas, sem se abolir o princípio da propriedade privada sobre os meios de produção, é impossível criar-se uma economia planificada.
Wells: Estou de acordo com muita coisa que o senhor disse, porém gostaria de insistir sobre o fato de que se um país adota o princípio da economia planificada, se os governantes, de modo gradual, passo a passo, começam conseqüentemente a aplicar esse princípio, a oligarquia financeira será por fim abolida e se estabelecerá o socialismo, no sentido anglo-saxão da palavra. O efeito das idéias do New Deal de Roosevelt é muito poderoso, e elas são, na minha opinião, idéias socialistas. Parece-me que, em vez de se por em tensão o antagonismo entre os dois mundos, deveríamos, nas circunstâncias atuais, esforçarmo-nos por estabelecer uma linguagem comum para todas as forças construtivas.
Stálin: Ao falar da impossibilidade de realizar os princípios da economia planificada enquanto se conserva a base econômica do sistema capitalista, não desejo, de forma alguma, diminuir as destacadas qualidades pessoais de Roosevelt, sua iniciativa, sua coragem e determinação. Indubitavelmente, Roosevelt se projeta como uma das figuras mais fortes entre todos os capitães do mundo capitalista contemporâneo. Por isso gostaria, ainda uma vez, de repisar que a minha convicção de que a economia planificada é impossível sob as condições do capitalismo, não significa que tenha dúvidas sobre a qualidade pessoal, o talento e a coragem do Presidente Roosevelt. Mas quando as circunstâncias são desfavoráveis, nem o capitão de maior talento pode atingir a meta a que o senhor se referiu.
Para começar, teoricamente não está excluída a possibilidade de se caminhar gradualmente, passo a passo, sob as condições do capitalismo, até a meta pelo senhor chamada socialismo no sentido anglo-saxão da palavra. Mas que "socialismo" será esse? Na melhor das hipóteses, será um freio aos representantes mais obstinados do lucro capitalista, certo reforçamento do princípio regulador na economia nacional. Tudo isso está muito bem. Porém, assim que Roosevelt, ou qualquer outro capitão do mundo contemporâneo burguês, comece a empreender algo de sério contra os fundamentos do capitalismo, sofrerá inevitavelmente séria derrota. Os bancos, as indústrias, as grandes empresas, as grandes fazendas, não estão nas mãos de Roosevelt. São todas propriedades privadas. As estradas de ferro, a marinha mercante, tudo isso pertence a proprietários privados. E, finalmente, o exército dos trabalhadores especializados os engenheiros, os técnicos, não estão tampouco sob o mando de Roosevelt, mas dos proprietários privados; todos trabalham para eles. Não devemos esquecer as funções do Estado, no mundo burguês. O Estado é uma instituição que organiza a defesa do país, organiza a manutenção da "ordem": é um aparelho para cobrar impostos. O Estado capitalista não se ocupa muito com a economia no sentido estrito da palavra; a economia não está nas mãos do Estado. Ao contrário, o estado é que está nas mãos da economia capitalista. Por isso, receio que, apesar de toda a sua energia e capacidade, Roosevelt não alcance a meta a que o senhor se refere,se essa é, em realidade, a sua meta. Talvez, no curso de várias gerações, seja possível aproximar-se um pouco dessa meta, porém pessoalmente considero que nem mesmo isso seja provável.
Wells: Talvez eu creia mais fortemente que o senhor na interpretação econômica da política. As invenções e a ciência moderna puseram em movimento enormes forças dirigidas para a organização melhor, para o melhor funcionamento da comunidade, isto é, para o socialismo. A organização e a regulamentação da ação individual tornaram-se necessidades mecânicas, independentemente das teorias sociais.
Se principiássemos pelo controle estatal dos bancos e continuássemos com o controle dos transportes, das indústrias pesadas, da indústria em geral, do comércio etc., tal controle universal equivaleria à propriedade do Estado sobre todos os ramos da economia nacional. Este será o processo da socialização. Socialismo e individualismo não se opõem como o preto ao branco. Há muitos estados de permeio entre eles. Há o individualismo que roça no bandoleirismo, e há o espírito de disciplina e de organização que são equivalentes ao socialismo. A introdução da economia planificada depende, em grau considerável, dos organizadores da economia, dos técnicos, os quais, passo a passo, podem ser convertidos aos princípios socialistas de organização. E isso é da maior importância, porque a organização precede o socialismo. Sem organização, a idéia socialista não passa de mera idéia.
Stálin: Não há, nem deve haver, contraste irreconciliável entre o indivíduo e a coletividade, entre os interesses individuais e os interesses da coletividade. Não deve haver tal contraste, porque o coletivismo, o socialismo, não nega e sim combina os interesses individuais com os interesses da coletividade.
O socialismo não pode se esquecer dos interesses individuais. Somente a sociedade socialista pode satisfazer completamente esses interesses pessoais. Ainda mais: só a sociedade socialista pode salvaguardar firmemente os interesses do indivíduo. Neste sentido, não há contraste irreconciliável entre "individualismo" e socialismo. Porém, podemos negar o contraste entre as classes, entre a classe dos proprietários, a classe dos capitalistas, e a classe dos trabalhadores, a classe dos proletários? De um lado, temos a classe dos proprietários, que é dona dos bancos, das fábricas, das minas, do transporte, das plantações nas colônias. Tais pessoas não vêem senão seus próprios interesses, sua ambição pelos lucros. Não se submetem à vontade da coletividade; esforçam-se, isso sim, por subordinar cada coletividade à sua vontade. De outro lado, temos a classe dos pobres, a classe explorada, a que não possui nem fábricas, nem usinas, nem bancos, a que é obrigada a vender sua força de trabalho aos capitalistas e que carece de oportunidades para satisfazer as suas necessidades mais elementares. Como se podem conciliar interesses tão opostos? Pelo que sei, Roosevelt não teve êxito em encontrar a senda da conciliação entre esses interesses. E é impossível, como já o demonstrou a experiência. Afinal, o senhor conhece a situação dos Estados Unidos melhor do que eu, que nunca estive lá e observo os assuntos norte-americanos sobretudo através do que se escreve sobre esse assunto. Porém tenho alguma experiência de luta pelo socialismo e esta experiência me diz que, se Roosevelt tentar satisfazer os interesses da classe proletária, à custa da classe capitalista, esta porá outro Presidente no lugar dele. Os capitalistas dirão: os Presidentes passam, porém nós permaneceremos; se esse ou aquele Presidente não defende os nossos interesses, encontraremos um outro. Pode o Presidente opor-se à vontade da classe capitalista?
Wells: Oponho-me a essa classificação simplista da Humanidade em pobres e ricos. Evidentemente há uma categoria de pessoas que visa o lucro. Mas não são essas pessoas olhadas como obstáculos, tanto no Ocidente como aqui? Não há no Ocidente muita gente para quem o lucro não é um fim em si, gente que possui certa quantidade de recursos e que deseja inverter e obter lucros com as suas inversões, porém que não faz disso o seu objetivo principal? Para essa gente as inversões são uma inconveniência necessária. Não há grandes núcleos de engenheiros capazes e estudiosos, organizadores da economia, cujas atividades são estimuladas por alguma coisa mais que o lucro? Na minha opinião, há uma classe numerosa de pessoas capazes que admitem ser o sistema atual não-satisfatório e que estão destinadas a um grande papel na futura sociedade socialista. Durante os últimos anos tenho pensado muito na necessidade, tenho-me dedicado muito à tarefa de levar a cabo a propaganda em favor do socialismo e do cosmopolitismo entre amplos círculos de engenheiros, aviadores, elementos técnicos militares etc. É inútil aproximar-se desses círculos com a propaganda direta da luta de classes. Essas pessoas compreendem a situação em que se encontra o mundo, que se transforma num pântano sangrento, mas para tais pessoas o antagonismo primitivo da luta de classes é algo sem sentido.
Stálin: O senhor se opõe à classificação simplista das pessoas em ricos e pobres. E claro que há as camadas médias, há a intelectualidade técnica a que o senhor se referiu e, entre elas, há pessoas muito boas e honradas. Entre elas há também pessoas desonestas e perversas, toda espécie de gente. Porém, antes de mais nada, a Humanidade está dividida em ricos e pobres, entre proprietários e explorados; e abstrair-se dessa divisão fundamental e do antagonismo entre pobres e ricos significa abstrair-se do fato fundamental. Não nego a existência de camadas intermediárias, que podem ficar do lado de uma ou de outra dessas duas classes em conflito, ou podem tomar posição neutra ou semineutra nessa luta. Todavia, repito, abstrair-se dessa divisão fundamental da sociedade e da luta fundamental entre as duas classes principais significa ignorar os fatos. Esta luta continua e continuará. O resultado dela será determinado pela classe proletária, a classe dos trabalhadores.
Wells: Porém, não há muitas pessoas que, não sendo pobres, trabalham produtivamente?
Stálin: Para começar, há pequenos proprietários de terras, artesãos, pequenos comerciantes, mas não são esses os que decidem da sorte de um país, e sim as massas trabalhadoras que produzem todas as coisas requeridas pela sociedade.
Wells: Contudo há muitas classes diferentes de capitalistas. Há capitalistas que só pensam nos lucros; mas há também os que estão preparados para fazer sacrifícios. Tomemos o velho Morgan por exemplo: só pensou nos lucros; foi um parasita da sociedade. Acumulou riquezas simplesmente. Agora tomemos Rockfeller. É um organizador brilhante, tendo dado o exemplo de como organizar a produção de petróleo, exemplo esse digno de ser imitado. Ou tomemos Ford. É claro que Ford é egoísta: Porém, não é um organizador apaixonado da produção racionalizada, de quem os senhores tomaram lições?
Desejaria insistir no fato de que recentemente se deu importante mudança de opinião a respeito da U.R.S.S. nos países de língua inglesa. A razão da mudança está ligada, antes de mais nada, à posição do Japão e à situação da Alemanha. Mas há outras razões que não decorrem somente da política internacional. Há uma razão mais profunda: refiro-me ao reconhecimento, por muita gente, do fato de que o sistema baseado no lucro privado está desmoronando. Sob estas circunstâncias, parece-me que não devemos pôr em primeiro plano o antagonismo entre os dois mundos, e sim devemos nos esforçar para combinar todos os movimentos construtivos, todas as forças construtivas, na medida do possível. Parece-me que estou mais à esquerda do que o senhor, pois considero que o mundo está mais próximo do fim do velho sistema.
Stálin: Quando falo dos capitalistas que se esforçam somente em obter lucros, somente em tornarem-se ricos, não quero dizer que sejam os últimos dos homens, incapazes de mais nada. Muitos deles, inegavelmente, possuem grande talento de organização que nem penso negar. Nós, o povo soviético, temos aprendido muito com os capitalistas. E Morgan, a quem o senhor descreveu de maneira tão desfavorável, foi sem dúvida um bom organizador, capaz. Porém, se o senhor se refere a pessoas que estejam preparadas para reconstruir o mundo, não poderá, para começar, encontrá-las nas fileiras daqueles que servem fielmente a causa dos lucros. Eles e nós estamos em campos opostos. O senhor mencionou Ford. Certamente que ele é um eficiente organizador da produção. Mas conhece o senhor a atitude dele para com a classe operária? Sabe o senhor quantos operários ele põe na rua? O capitalista está preso aos lucros, e força alguma no mundo poderá separá-lo deles. O capitalismo será liquidado, não pelos "organizadores" da produção, não pela intelectualidade técnica, e sim pela classe operária, uma vez que aquelas camadas não desempenham um papel independente. O engenheiro, o organizador da produção, não trabalha como gostaria, mas como lhe ordenam, no sentido de servir aos interesses dos patrões. Há exceções, é claro; há pessoas nessa camada média que se libertaram do ópio capitalista. A intelectualidade técnica pode, sob certas condições, fazer "milagres" e beneficiar altamente a Humanidade. Porém, pode também fazer-lhe muito mal. Nós, o povo soviético, temos experiência, e não pouca, sobre a intelectualidade técnica. Depois da Revolução de Outubro, certa parte da intelectualidade técnica se recusou a participar do trabalho de construir uma nova sociedade. Opuseram-se a esse trabalho de construção e o sabotaram. Fizemos o possível para atrair a intelectualidade técnica a este trabalho de construção; experimentamos vários caminhos. Não se passou pouco tempo para que a nossa intelectualidade técnica acedesse em apoiar o novo sistema.
Hoje, a melhor parte da intelectualidade técnica está nas primeiras fileiras dos construtores da sociedade socialista. Com esta experiência, estamos longe de subestimar o lado bom e o lado mau da intelectualidade técnica, e sabemos que uma parte pode causar o mal e a outra pode realizar "milagres". Contudo, as coisas seriam diferentes se fosse possível, de um só golpe, arrancar espiritualmente a intelectualidade técnica do mundo capitalista. Mas isso é utopia. Haverá muitos técnicos que se atreveriam a se desprender do mundo burguês e pôr-se a trabalhar para reconstruir a sociedade? Pensa o senhor que há muita gente dessa classe, digamos na Inglaterra ou na França? Não, há poucos que se desprenderiam voluntariamente dos seus patrões e começariam a reconstruir o mundo.
Além disso, podemos perder de vista o fato de que, para transformar o mundo, é necessário ter-se o poder político? Parece-me, Senhor Wells, que o senhor subestima enormemente a questão do poder político, que fica excluída da sua concepção. Que podem fazer os que, ainda que com as melhores intenções do mundo, não estão em condições de traçar o problema da tomada do poder e não têm esse poder em suas mãos? Quando muito, poderão ajudar à classe que toma o poder, porém não podem mudar o mundo. Isso só o pode fazer uma grande classe que tome o lugar da classe capitalista e venha a ser senhor soberano, como esta o era. Tal classe é a classe operária. Certamente o apoio da intelectualidade técnica deve ser aceito, e essa intelectualidade, por sua vez, deve receber ajuda, mas não se pense que ela representa papel histórico independente. A transformação do mundo é processo complicado e doloroso. Para esta grande tarefa precisa-se de uma grande classe. Para viagens longas, grandes barcos.
Wells: Sim, mas para uma longa viagem é preciso um capitão e um navegador.
Stálin: E certo, porém o que se requer em primeiro lugar, para uma viagem longa, é um grande barco. Que é um navegante sem um grande barco? Um homem ocioso.
Wells: O grande barco é a Humanidade, não uma classe.
Stálin: O senhor parte da presunção de que todos os homens são bons. Eu, entretanto, não posso esquecer que há muitos homens perversos. Não creio na bondade da burguesia.
Wells: Recordo-me da situação da intelectualidade técnica há várias décadas. Naquele tempo, era numericamente pequena, porém havia muito a fazer, e cada engenheiro, técnico ou intelectual, encontrava a sua oportunidade. Por isso era a classe menos revolucionária. Agora, entretanto, há excedente de intelectuais técnicos e a mentalidade deles mudou profundamente. Os técnicos, que antigamente não faziam caso da linguagem revolucionária, estão agora muito interessados nela. Assisti recentemente a um banquete da Royal Society (Sociedade Real), a nossa maior sociedade científica inglesa.
O discurso do Presidente foi um discurso a favor da planificação social e da gestão científica. Há trinta anos atrás, não se poderia ter escutado algo semelhante. Hoje o homem que preside a Royal Society mantém pontos de vista revolucionários e insiste na reorganização científica da sociedade humana. As mentalidades mudam. A vossa propaganda de luta de classes não leva em conta estes fatos.
Stálin: Sim, eu sei disso, e isso se explica pelo fato de a sociedade capitalista se achar agora num beco sem saída. Os capitalistas estão procurando. porém não podem encontrar uma saída deste impasse que seja compatível com a dignidade da sua classe, com os interesses da sua classe.
Poderiam, até certo ponto. sair da crise arrastando-se nas quatro patas porém não encontrarão uma porta que lhes permita sair de cabeça erguida. uma porta que não altere fundamentalmente os interesses do capitalismo. Amplos círculos da intelectualidade técnica bem que se dão conta disso. Grande parte dela está começando a compreender a vinculação dos seus interesses aos interesses da classe capaz de sair desse impasse.
Wells: Senhor Stálin, melhor do que ninguém o senhor sabe algo sobre as revoluções, no lado prático. As massas levantam-se? Não é uma verdade estabelecida que todas as revoluções são feitas pelas minorias?
Stálin: Para levar-se a cabo uma revolução é necessário uma minoria revolucionária dirigente, porém a mais inteligente, apaixonada e enérgica minoria seria impotente se não contasse com o apoio. pelo menos passivo, de milhões.
Wells: Pelo menos passivo? Talvez subconsciente?
Stálin: Digamos semi-instintivo e semi-consciente, mas sem o apoio de milhões de homens a minoria mais capaz será impotente.
Wells: Tenho observado a propaganda comunista no Ocidente, e parece-me que, nas condições atuais, tal propaganda soa muito fora de moda, por ser uma propaganda insurrecional. A propaganda a favor da derrubada violenta do sistema social soava bem quando dirigida contra as tiranias. Mas, nas atuais condições, quando o sistema se desmorona de todas as maneiras seria preciso dar mais destaque à eficiência, à competência, à produtividade, do que à insurreição. Parece-me que.o tom insurrecional é antiquado. Do ponto de vista das pessoas de mentalidade construtiva a propaganda comunista no Ocidente é um obstáculo.
Stálin: Para começar, o velho sistema se desmorona, está em decadência. Isso é certo, Porém também é certo que novos esforços se fazem, por outros métodos, por todos os meios, para proteger, para salvar este sistema agonizante. O senhor tira conclusão errônea de premissa certa, O senhor estabelece, corretamente, que o velho mundo se afunda. Mas o senhor está enganado pensando que se afunda por si mesmo. Não. A substituição de um sistema social por outro é processo revolucionário complexo e de longo fôlego. Não é simplesmente um processo espontâneo, e sim uma luta, um processo relacionado com o choque entre as classes. O capitalismo está em decadência, porém não deve ser comparado simplesmente com uma árvore que haja apodrecido tanto que virá ao chão com seu próprio peso. Não, a revolução, a substituição de um sistema social por outro, foi sempre uma luta, luta cruel e dolorosa, luta de vida e de morte. E cada vez que os representantes do novo mundo chegam ao poder têm de se defender contra as tentativas do velho mundo de restaurar pela força a ordem antiga; os representantes do novo mundo têm sempre de estar alerta, de estar preparados para repelir os ataques do velho mundo contra o sistema novo.
Sim, o senhor tem razão quando diz que o velho sistema social desmorona, porém não desmorona por si mesmo. Veja o fascismo, por exemplo. O fascismo é uma força reacionária que tenta preservar, por meio da violência, o velho mundo. Que farão os senhores com os fascistas? Discutirão com eles? Tratarão de convencê-los? Isso não teria, absolutamente, nenhum efeito. Os comunistas não idealizam, em absoluto, os métodos violentos, não querem, porém, ser apanhados de surpresa; não podem esperar que o velho regime se retire da cena, espontaneamente; vêem que o velho sistema se defende violentamente, e, por isso, dizem à classe operária: Preparem-se para responder com violência à violência; façam todo o possível para impedir que a ordem agonizante os esmague, não permitam que lhes algemem as mãos, estas mesmas mãos que demolirão o sistema velho. Como o senhor vê, os comunistas consideram a substituição de um sistema social por outro, não simplesmente como processo pacífico e espontâneo, e sim como processo complicado, longo e violento. Os comunistas não podem ignorar os fatos.
Wells: Contudo, observe o que se está passando no mundo capitalista. Não é um simples colapso; é o estouro da violência reacionária que está degenerando em gangsterismo. E parece-me que, quando se chega ao conflito com a violência reacionária e não inteligente, podem os socialistas apelar para a lei e, em vez de considerar a polícia um inimigo, devem apoiá-la na luta contra os reacionários. Penso ser inútil trabalhar simplesmente com os rígidos métodos da insurreição do velho socialismo.
Stálin: Os comunistas se baseiam na rica experiência histórica, a qual ensina que as classes caducas não abandonam voluntariamente o cenário histórico. Lembre-se da história da Inglaterra no século XVII. Não eram numerosos os que diziam que o velho sistema social estava apodrecido? Entretanto não foi necessário um Cromwell para esmagá-lo pela força?
Wells: Cromwell agiu baseado na Constituição e em nome da ordem constitucional.
Stálin: Em nome da Constituição recorreu à violência, decapitou o Rei, dissolveu o Parlamento, prendeu uns e decapitou outros!
Tome também o exemplo da nossa história. Não foi evidente, durante muito tempo, que o regime tzarista estava decaindo, que estava desmoronando? Mas, quanto sangue se teve de derramar para abatê-lo!
E a Revolução de Outubro? Eram pouco numerosas as pessoas que sabiam que nós, os bolcheviques, éramos os únicos a apontar o caminho certo? Não estava claro que o capitalismo russo achava-se em decadência? Contudo, o senhor sabe quão grande foi a resistência, quanto sangue se teve de derramar para defender a Revolução de Outubro de todos os seus inimigos internos e externos?
Ou tome a França do fim do século XVIII. Muito antes de 1789, era evidente a podridão do Poder Real, do feudalismo. Porém não se pôde evitar uma rebelião popular, um choque de classes. Por quê? Por que as classes que devem abandonar o cenário da história são as últimas a se convencerem de que seu papel terminou. É impossível convencê-las disso. Pensam que as fendas do decadente edifício da ordem antiga podem ser remendadas, que o vacilante edifício da ordem antiga pode ser restaurado e salvo. É por isso que as classes agonizantes tomam as armas e recorrem a todos os meios para salvar sua existência de classe dominante.
Wells: Mas havia bastante advogados à frente da grande Revolução francesa.
Stálin: Nega o senhor o papel da intelectualidade nos movimento revolucionários? Foi a grande Revolução francesa uma revolução de advogados, e não uma revolução popular, que alcançou a vitória levantando grandes massas do povo contra o feudalismo convertendo-s em chefes do Terceiro Estado? E por acaso atuaram os advogados existentes entre os líderes da grande Revolução francesa de acordo com as leis da ordem antiga? Não instituíram uma legalidade nova, a legalidade revolucionária burguesa?
A rica experiência da história ensina que até hoje nenhuma classe cedeu voluntariamente o lugar a outra. Não há tal precedente na história mundial. Os comunistas assimilaram essa experiência histórica. Os comunistas aplaudiriam a retirada voluntária da burguesia.
Mas tal processo é improvável, eis o que ensina a experiência. Por isso é que os comunistas querem estar preparados para o pior e concitam a classe operária a ser vigilante, a estar preparada para o combate. Quem deseja um capitão que se descuide da vigilância do seu exército, um capitão que não compreenda que o inimigo não se renderá, que deve ser esmagado? Tal capitão enganaria, trairia a classe operária. Por isso penso que o que ao senhor parece antiquado é, de fato, método revolucionário oportuno para a classe operária.
Wells: Não nego que se tenha de empregar a força, porém penso que as formas de luta devem adaptar-se o mais estreitamente possível às oportunidades que oferecem as leis existentes, que devem ser defendidas dos ataques dos reacionários. Não há necessidade de desorganizar-se o velho sistema porque ele está se desorganizando, e bastante. Assim, parece-me que a rebelião contra a ordem, contra a lei, é coisa antiquada, fora de moda. Incidentalmente, exagerei de propósito, para apresentar mais claramente a verdade.
Posso formular o meu ponto de vista da seguinte maneira: primeiro, sou pela ordem; segundo, ataco o sistema atual naquilo em que não possa garantir a ordem; terceiro, penso que a propaganda das idéias da luta de classes é capaz de isolar do socialismo as pessoas instruídas de que ele necessita.
Stálin: Para atingir um grande objetivo, um objetivo social importante, é necessário uma força principal, um baluarte, uma classe revolucionária. Depois, é necessário organizar-se a ajuda de uma força auxiliar para essa força principal; nesse caso, a força auxiliar é o Partido, ao qual pertencem as melhores forças da intelectualidade. Agora, o senhor fala de "círculos instruídos". Porém, que pessoas instruídas tem o senhor em mente? Não havia muitos homens instruídos ao lado da ordem antiga na Inglaterra do século XVII, na França em fins do século XVIII e na Rússia à época da Revolução de Outubro? A ordem antiga tinha a seu serviço muita gente de instrução elevada que defendeu tal estado de coisas, que se opôs à ordem nova. A educação é arma cujo efeito é determinado pelas mãos que a esgrimem. Está claro que o proletariado, o socialismo, necessita de gente altamente instruída, pois é evidente que não são os simplórios que poderão ajudar o proletariado a lutar pelo socialismo, a construir a nova sociedade. Eu não subestimo o papel da intelectualidade, ao contrário, reforço-o. A questão, entretanto, é sobre que espécie de intelectualidade estamos discutindo, porque há diversos tipos de intelectuais.
Wells: Não pode haver revolução sem mudança radical no sistema de instrução pública. Basta assinalar dois exemplos: o da República alemã, que deixou intacto o velho sistema educacional e, por isso, nunca chegou a ser uma República; e o Partido Trabalhista britânico, a quem falta coragem para insistir na mudança radical do sistema de educação.
Stálin: Essa é uma observação acertada. Permita-me agora rebater os seus três pontos de vista.
Primeiro: O principal para a revolução é a existência de um apoio social. Esse apoio é a classe operária.
Segundo: É indispensável uma força auxiliar a que os comunistas chamam Partido. Nele se incluem os trabalhadores intelectuais e os elementos da intelectualidade técnica que estão estreitamente vinculados à classe operária. A intelectualidade somente pode ser forte se se une à classe operária. Se se opõe a ela, anula-se.
Terceiro: E preciso o poder político como alavanca, para se conseguir as mudanças. O novo poder político cria uma legalidade nova, uma nova ordem, que é a ordem revolucionária. Eu não sou por qualquer ordem. Sou pela ordem que corresponda aos interesses da classe operária. Entretanto, se algumas leis do antigo regime podem ser utilizadas em benefício da luta pela ordem nova, tais leis devem também ser empregadas. Não posso opor-me à sua tese de que é preciso atacar o sistema existente quando ele não assegurar a ordem necessária ao povo.
E, finalmente, o senhor se equivoca ao pensar que os comunistas têm sede de violência. Ficariam muito satisfeitos suprimindo os métodos violentos se a classe dominante consentisse em ceder o lugar à classe operária. Porém, a experiência da história fala contra tal suposição.
Wells: Há na história da Inglaterra, entretanto, o caso de uma classe que entregou voluntariamente o poder a outra classe. No período de 1830 a 1870, a aristocracia - cuja influência era ainda considerável no fim do século XVIII - cedeu o poder voluntariamente, sem luta séria, à burguesia, que serve como apoio sentimental à monarquia. Conseqüentemente, esta transferência do poder conduziu ao estabelecimento do domínio da oligarquia financeira.
Stálin: Porém, o senhor passou, imperceptivelmente, do problema da revolução ao problema das reformas. Não é a mesma coisa. Não crê que o movimento cartista representou o grande papel nas reformas da Inglaterra no século XIX?
Wells: Os cartistas pouco fizeram e desapareceram sem deixar rastro.
Stálin: Não concordo com o senhor; os cartistas e o movimento grevista por eles organizado representaram grande papel; obrigaram as classes dominantes a fazer uma série de concessões no domínio do sistema eleitoral, na esfera da liquidação do que se chamava os "burgos podres", na realização de certos pontos da "Carta". O cartismo representou papel histórico não pouco importante e incitou uma parte da classe dominante a fazer certas concessões, certas reformas, para evitar grandes choques. Em geral, deve-se dizer que de todas as classes dominantes, as classes dominantes da Inglaterra, a aristocracia e a burguesia, demonstraram ser mais inteligentes, mais flexíveis do ponto de vista de seus interesses de classe, do ponto de vista da manutenção do poder. Tome como exemplo, digamos, da história moderna, a greve geral da Inglaterra em 1926. A primeira coisa que qualquer outra burguesia teria feito para enfrentar a situação, quando o Conselho Geral dos Sindicatos chamou à greve, seria a de encarcerarem os dirigentes dos sindicatos. A burguesia britânica tal não fez e agiu habilmente, segundo seus próprios interesses. Não posso conceber que a burguesia dos Estados Unidos, da Alemanha ou da França empregue estratégia tão flexível. Para manter predomínio, as classes dominantes da Grã-Bretanha não se têm negado nunca a fazer pequenas concessões, reformas. Mas seria erro pensar-se que estas reformas representam a revolução.
Wells: O senhor tem uma opinião mais elevada das classes dominantes do meu país do que eu mesmo. Porém, há grande diferença entre uma pequena revolução e uma grande reforma? Não é uma reforma uma pequena revolução?
Stálin: Obedecendo à pressão de baixo, à pressão das massas, pode a burguesia conceder, algumas vezes, certas reformas parciais, enquanto permanecem inalteráveis as bases do sistema social-econômico existente. Agindo dessa maneira, calcula que tais concessões são necessárias para preservar o seu predomínio de classe. Esta, a essência da reforma. A revolução, entretanto, significa a transferência de poder de uma classe para a outra. Por isso é impossível descrever qualquer reforma como uma revolução. Por isso é que não podemos contar com mudanças nos sistemas sociais que se operem como transição imperceptível de um sistema para o outro por meio de reformas, por concessões da classe dominante.
Wells: Fico-lhe grato por essa conversa que muito significou para mim. Ao dar-me esta explicação, o senhor se recordou, provavelmente, de como explicava os fundamentos do socialismo, nos círculos ilegais, antes da Revolução. Atualmente, há no mundo apenas duas pessoas cuja opinião, cada palavra, é ouvida por milhões: o senhor e Roosevelt.
Outros poderão pregar tudo que lhes agrade; o que disserem nunca será escrito ou escutado. Ainda não pude apreciar que os senhores fizeram no país; cheguei ontem. Porém já vi os rostos felizes de homens e mulheres saudáveis, e sei que algo de considerável está- se fazendo aqui. O contraste com 1920 é assombroso.
Stálin: Muito mais teríamos feito nós, bolcheviques, se fôssemos mais capazes.
Wells: Não, se em geral os seres humanos fossem mais inteligentes. Seria uma grande coisa inventar um plano qüinqüenal para a reconstrução do cérebro humano que, evidentemente, carece de muitas coisas necessárias para uma ordem social perfeita. (Risos)
Stálin: O senhor não vai ficar para assistir ao Congresso da União de Escritores Soviéticos?
Wells: Infelizmente, não. Tenho vários compromissos e só poderei demorar uma semana na União Soviética. Vim vê-lo, e estou muito satisfeito com a nossa entrevista. Porém, tenho intenção de falar com os escritores soviéticos, para ver se consigo que se filiem ao P.E.N. Club. Esta é uma organização internacional de escritores fundada por Galsworthy. Depois da morte dele, o sucedi como presidente. A organização ainda é débil, mas tem seções em numerosos países e, o que é mais importante, as intervenções dos seus membros são amplamente comentadas na imprensa. Essa organização defende o direito da livre expressão de todas as opiniões, nelas compreendidas as de oposição. Espero poder discutir este ponto com Gorki. Não sei se uma tão ampla liberdade pode ser permitida aqui.
Stálin: Nós, os bolcheviques, chamamos a isso "auto-crítica". É amplamente usada na U.R.S.S. Se há algo que eu possa fazer para ajudá-lo, fa-lo-ei com muito prazer.
Wells: Muito agradecido.
Stálin: Agradeço pela entrevista.
sábado, 15 de janeiro de 2011
BORRACHA PARA A VITÓRIA!
Documentário sobre a epopéia da migração massiva de nordestinos à região amazônica durante a Segunda Guerra para produzir a borracha utilizada nos blindados Aliados.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
QUEM PERGUNTA...
Leitora Ana Claudia faz os seguintes questionamentos:
... "o PT é um partido de esquerda. Você acha que o que está ocorrendo no seu estado é um processo socialista ou não? Segunda pergunta: você não acha que colocar a culpa do fracasso do socialismo em inimigos externos é clichê demais? O mito do "inimigo externo" é um clássico das relações internacionais e é usado até hoje pelos EUA, por exemplo."
Ana, "esquerda" é uma definição muito ampla. Ela cobre anarquistas, ecologistas, socialdemocratas (forçando bastante a barra), democratas cristãos e por aí vai. Ou seja: não é por ser de esquerda que um partido - ou mesmo alguém - é socialista.
Mas vamos lá: minha opinião pessoal é que o PT é tão de esquerda quanto o Democratic Party norte-americano ou o Labour Party britânico. Não estou desmerecendo ambos, nem o PT. Um partido pode, e deve, assimilar o horizonte histórico da sua época quando a crise entre capital e trabalho permitir que se avance institucionalmente para ampliar os direitos dos trabalhadores.
Mas é evidente que isso não está isento de problemas ou contradições. Veja o caso do Labour Party, que apoiou a invasão norte-americana ao Iraque. Ou dos democratas que mantiveram a política dúbia dos EUA em relação a Cuba, Coréia do Norte, China e Venezuela. A experiência do PT no Acre mudou a forma de governar, equilibrou as contas públicas, ampliou o diálogo com o movimento sindical etc, mas também assimilou todo o aparato retrógrado, coronelista, provinciano do modo de pensar das classes dominantes. Tudo embalado na rubrica "desenvolvimentismo".
Um partido de esquerda pode cometer erros sistemáticos tanto quanto partidos de direita. Basta que as forças que o compõem sejam suficientemente compelidas pelos interesses dominantes já existentes na sociedade. Ou seja, basta que ele se torne aquilo que não é. Que substancialmente transforme-se, por qualquer acordo ou necessidade conjuntural, em um mecanismo de poder.
Na questão particular do Acre há uma contradição interessante. Tentarei explicá-la. O povo acreano ainda acredita que o desenvolvimento econômico vai libertá-lo de todos os males, miséria e violência disseminadas nas regiões mais desenvolvidas do mundo e trazidas para cá durante o breve desenvolvimento que tivemos. É um discurso claramente oriundo de uma região que enfrenta problemas sérios de isolamento, pobreza, doenças e precisa acreditar que o espírito empreendedor vai fazê-la "dar certo" algum dia. Vai fazê-la "ficar rica como São Paulo".
Não me entenda mal, não sou contra o desenvolvimento. Sou contra panacéias. A ordem social que atualmente induz o desenvolvimento é baseada na desigualdade para permitir a acumulação, por isso produz simultaneamente miséria e riqueza. Calcular a proporção entre ambas é fácil: basta viajar às mais desenvolvidas capitais brasileiras (européias e norte-americanas também valem) e conhecer seus bairros.
Na tentativa de resolver esta contradição o PT lançou mão de um discurso ecologista, um desenvolvimentismo ecologicamente correto. Mas esse paradigma, por ter dispensado a categoria "trabalho" em prol da categoria "meio ambiente" para alinhar-se com os grandes órgãos financiadores do capitalismo contemporâneo, começou a fazer água por todos os lados, resultando no que vimos claramente nas últimas eleições.
O resultado daquela primeira contradição com o discurso triunfalista, paternalista e ufanista do desenvolvimento sustentável pariu uma sociedade ainda mais superficial, cujos trejeitos e cacoetes desajeitadamente burgueses podem ser visualizados desde as igrejas evangélicas que ela frequenta até as mais altas patentes da política institucional.
Ao substituir a categoria "trabalho" pela categoria "meio ambiente" o PT alimentou a nossa burguesia caipira. Seus brilhantes intelectuais substituiram as lutas de classes, fundadas na contradição entre capital e trabalho, pela cooperação entre classes, na tradição de um heroísmo provinciano de viés ufanista.
As consequencias desse erro, e como ele vem sendo apropriado por multinacionais da indústria de cosméticos e de artefatos de madeira, é um outro debate que vem sendo feito no Centro de Ciências Sociais da UFAC. Mas a questão central, no contexto da sua pergunta, é que os ganhos desse processo para os trabalhadores acreanos são mínimos, para não dizer inexistentes.
Graças a esse detalhe não há como chamar o processo acreano de "socialismo", nem com o mais elaborado malabarismo intelectual. O grosso dos trabalhadores acreanos ainda está no mercado informal, as negociações sindicais beneficiam uma classe média que sempre teve algum conforto, não há greves nem movimentos de protesto contra a iniciativa privada, a política institucional ignora solenemente as lutas de classes e os donos do capital estão muito mais ricos do que estavam há 12 anos, quando Jorge Viana assumiu o governo.
O que mudou nesse entretempo para aqueles que produzem a riqueza material da sociedade? Conseguiram ou não aumentar o seu acesso, seus direitos elementares à riqueza que eles mesmos produzem? Pra mim, não. Se há algo claro na história acreana recente é que o princípio acumulacionista do capitalismo continua produzindo tanto ou mais estratificações sociais (e miséria, violência, enriquecimento etc) do que há uma década.
Evidentemente essa questão é bem mais complicada que a meia dúzia de palavras acima. Trata-se de um processo histórico, e pior, em andamento. Há forças e grupos em disputa que não foram mencionados, por razões de espaço, e também porque tentei frisar ao máximo a complexidade que se pode atingir quando a expressão "socialismo" entra no debate. Porque, assim fazendo, respondo à segunda pergunta.
É óbvio que restringir o "fim do socialismo" a causas externas (além do equívoco de se considerar que o socialismo teve "um fim", como se a história das sociedades seguisse de fato alguma linearidade) é de um reducionismo muito parecido com aquele identifica nazismo e comunismo, fascismo e socialismo. Nenhuma sociedade se depara exclusivamente com questões externas com as quais interage, pesadamente, dificultosamente. Entrementes, algumas concessões devem ser feitas ao difícil século XX, quando pela primeira vez na história a Humanidade esteve a um botão da auto-extinção precisamente pela disputa de paradigmas rivais em Economia Política.
Socialismo não está isento de erros. No entanto, só há uma forma de medir o seu poder de transformação: o protagonismo da classe dos trabalhadores na condução da vida social. Quanto mais distante a classe proletária estiver dos partidos, associações, sovietes ou demais instituições pelas quais se realiza o esforço socialista, maior será o potencial para desvios, burocratização e, finalmente, implosão. A classe trabalhadora, por sentir o peso do mundo do capital sobre as suas costas, é que realmente conhece a sua própria necessidade de libertação.
As idiossincrasias históricas que travam ou mesmo inviabilizam esse protagonismo, no entanto, estão ligadas às condições particulares em que se realiza o esforço socialista.
Há alguns complicadores. Em todo o mundo, pais e mães ousaram dar um grito de liberdade perante o mundo do capital tiveram que haver-se tenazmente com as Forças Armadas do seu próprio país. Da Comuna de Paris, massacrada pelos exércitos do invasor alemão, ao sequestro do presidente Hugo Chávez num conluio entre grandes empresários e oficiais de alta patente, todas as revoluções tiveram o poder de mobilizar as classes dominantes para despertar o único fenômeno capaz de silenciar de uma vez por todas as vozes dos miseráveis que tentam libertar-se do jugo capitalista: a morte.
Mas que morte é maior que o desejo de liberdade?
... "o PT é um partido de esquerda. Você acha que o que está ocorrendo no seu estado é um processo socialista ou não? Segunda pergunta: você não acha que colocar a culpa do fracasso do socialismo em inimigos externos é clichê demais? O mito do "inimigo externo" é um clássico das relações internacionais e é usado até hoje pelos EUA, por exemplo."
Ana, "esquerda" é uma definição muito ampla. Ela cobre anarquistas, ecologistas, socialdemocratas (forçando bastante a barra), democratas cristãos e por aí vai. Ou seja: não é por ser de esquerda que um partido - ou mesmo alguém - é socialista.
Mas vamos lá: minha opinião pessoal é que o PT é tão de esquerda quanto o Democratic Party norte-americano ou o Labour Party britânico. Não estou desmerecendo ambos, nem o PT. Um partido pode, e deve, assimilar o horizonte histórico da sua época quando a crise entre capital e trabalho permitir que se avance institucionalmente para ampliar os direitos dos trabalhadores.
Mas é evidente que isso não está isento de problemas ou contradições. Veja o caso do Labour Party, que apoiou a invasão norte-americana ao Iraque. Ou dos democratas que mantiveram a política dúbia dos EUA em relação a Cuba, Coréia do Norte, China e Venezuela. A experiência do PT no Acre mudou a forma de governar, equilibrou as contas públicas, ampliou o diálogo com o movimento sindical etc, mas também assimilou todo o aparato retrógrado, coronelista, provinciano do modo de pensar das classes dominantes. Tudo embalado na rubrica "desenvolvimentismo".
Um partido de esquerda pode cometer erros sistemáticos tanto quanto partidos de direita. Basta que as forças que o compõem sejam suficientemente compelidas pelos interesses dominantes já existentes na sociedade. Ou seja, basta que ele se torne aquilo que não é. Que substancialmente transforme-se, por qualquer acordo ou necessidade conjuntural, em um mecanismo de poder.
Na questão particular do Acre há uma contradição interessante. Tentarei explicá-la. O povo acreano ainda acredita que o desenvolvimento econômico vai libertá-lo de todos os males, miséria e violência disseminadas nas regiões mais desenvolvidas do mundo e trazidas para cá durante o breve desenvolvimento que tivemos. É um discurso claramente oriundo de uma região que enfrenta problemas sérios de isolamento, pobreza, doenças e precisa acreditar que o espírito empreendedor vai fazê-la "dar certo" algum dia. Vai fazê-la "ficar rica como São Paulo".
Não me entenda mal, não sou contra o desenvolvimento. Sou contra panacéias. A ordem social que atualmente induz o desenvolvimento é baseada na desigualdade para permitir a acumulação, por isso produz simultaneamente miséria e riqueza. Calcular a proporção entre ambas é fácil: basta viajar às mais desenvolvidas capitais brasileiras (européias e norte-americanas também valem) e conhecer seus bairros.
Na tentativa de resolver esta contradição o PT lançou mão de um discurso ecologista, um desenvolvimentismo ecologicamente correto. Mas esse paradigma, por ter dispensado a categoria "trabalho" em prol da categoria "meio ambiente" para alinhar-se com os grandes órgãos financiadores do capitalismo contemporâneo, começou a fazer água por todos os lados, resultando no que vimos claramente nas últimas eleições.
O resultado daquela primeira contradição com o discurso triunfalista, paternalista e ufanista do desenvolvimento sustentável pariu uma sociedade ainda mais superficial, cujos trejeitos e cacoetes desajeitadamente burgueses podem ser visualizados desde as igrejas evangélicas que ela frequenta até as mais altas patentes da política institucional.
Ao substituir a categoria "trabalho" pela categoria "meio ambiente" o PT alimentou a nossa burguesia caipira. Seus brilhantes intelectuais substituiram as lutas de classes, fundadas na contradição entre capital e trabalho, pela cooperação entre classes, na tradição de um heroísmo provinciano de viés ufanista.
As consequencias desse erro, e como ele vem sendo apropriado por multinacionais da indústria de cosméticos e de artefatos de madeira, é um outro debate que vem sendo feito no Centro de Ciências Sociais da UFAC. Mas a questão central, no contexto da sua pergunta, é que os ganhos desse processo para os trabalhadores acreanos são mínimos, para não dizer inexistentes.
Graças a esse detalhe não há como chamar o processo acreano de "socialismo", nem com o mais elaborado malabarismo intelectual. O grosso dos trabalhadores acreanos ainda está no mercado informal, as negociações sindicais beneficiam uma classe média que sempre teve algum conforto, não há greves nem movimentos de protesto contra a iniciativa privada, a política institucional ignora solenemente as lutas de classes e os donos do capital estão muito mais ricos do que estavam há 12 anos, quando Jorge Viana assumiu o governo.
O que mudou nesse entretempo para aqueles que produzem a riqueza material da sociedade? Conseguiram ou não aumentar o seu acesso, seus direitos elementares à riqueza que eles mesmos produzem? Pra mim, não. Se há algo claro na história acreana recente é que o princípio acumulacionista do capitalismo continua produzindo tanto ou mais estratificações sociais (e miséria, violência, enriquecimento etc) do que há uma década.
Evidentemente essa questão é bem mais complicada que a meia dúzia de palavras acima. Trata-se de um processo histórico, e pior, em andamento. Há forças e grupos em disputa que não foram mencionados, por razões de espaço, e também porque tentei frisar ao máximo a complexidade que se pode atingir quando a expressão "socialismo" entra no debate. Porque, assim fazendo, respondo à segunda pergunta.
É óbvio que restringir o "fim do socialismo" a causas externas (além do equívoco de se considerar que o socialismo teve "um fim", como se a história das sociedades seguisse de fato alguma linearidade) é de um reducionismo muito parecido com aquele identifica nazismo e comunismo, fascismo e socialismo. Nenhuma sociedade se depara exclusivamente com questões externas com as quais interage, pesadamente, dificultosamente. Entrementes, algumas concessões devem ser feitas ao difícil século XX, quando pela primeira vez na história a Humanidade esteve a um botão da auto-extinção precisamente pela disputa de paradigmas rivais em Economia Política.
Socialismo não está isento de erros. No entanto, só há uma forma de medir o seu poder de transformação: o protagonismo da classe dos trabalhadores na condução da vida social. Quanto mais distante a classe proletária estiver dos partidos, associações, sovietes ou demais instituições pelas quais se realiza o esforço socialista, maior será o potencial para desvios, burocratização e, finalmente, implosão. A classe trabalhadora, por sentir o peso do mundo do capital sobre as suas costas, é que realmente conhece a sua própria necessidade de libertação.
As idiossincrasias históricas que travam ou mesmo inviabilizam esse protagonismo, no entanto, estão ligadas às condições particulares em que se realiza o esforço socialista.
Há alguns complicadores. Em todo o mundo, pais e mães ousaram dar um grito de liberdade perante o mundo do capital tiveram que haver-se tenazmente com as Forças Armadas do seu próprio país. Da Comuna de Paris, massacrada pelos exércitos do invasor alemão, ao sequestro do presidente Hugo Chávez num conluio entre grandes empresários e oficiais de alta patente, todas as revoluções tiveram o poder de mobilizar as classes dominantes para despertar o único fenômeno capaz de silenciar de uma vez por todas as vozes dos miseráveis que tentam libertar-se do jugo capitalista: a morte.
Mas que morte é maior que o desejo de liberdade?
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
A GAZETA EM CUBA
Antes de começar a escrever quero recomendar que o leitor clique nos links disponibilizados ao longo do texto, especialmente em caso de dúvidas. Eles funcionam como notas de rodapé e devem ajudar na compreensão de pontos obscuros ou polêmicos.
Excelente a matéria de A Gazeta feita pelo jornalista Nelson Liano Jr. sobre a experiência socialista em Cuba. Digo "experiência socialista" porque pra mim é muito claro que o bloqueio norte-americano, condenado 19 vezes pela ONU sempre por esmagadora maioria da assembléia geral, prejudica a democratização do poder e a distribuição de renda naquele país.
Aliás, esta é uma das poucas e marcantes omissões da matéria: o posicionamento internacional contra o bloqueio e a insistência da "Terra da Liberdade" em mantê-lo, com o argumento das "prisões políticas" supostamente realizadas pelo governo... ao passo em que os EUA mantém presos políticos em seu território e no próprio território cubano - em Guantánamo - e financiam criminosos comuns para transformá-los em "prisioneros de conciencia".
Outra grande omissão do texto diz respeito à "última fronteira do socialismo": Coréia do Norte, China, Bolívia e Venezuela também passam por experiências socialistas com seus respectivos erros e dificuldades no caminho, incluindo aqui ameaças de guerra por parte, óbvio, dos EUA.
A burocratização estatal e o protagonismo exagerado de líderes messiânicos, características totalmente ausentes da teoria marxista, são as marcas que perpassam da mesma forma estas experiências e a de Cuba. O argumento desses líderes é também o mesmo: o socialismo requer o definhamento do Estado, mas ataques externos (militar, econômico etc) impõem a interrupção desse processo para que se organize alguma defesa.
O resultado desse vaivém geopolítico é o que saltou aos olhos jornalísticos de Nelson Liano em Havana, mas também está por trás do que causou a queda da URSS, o isolamento da Coréia do Norte, o enfraquecimento do "socialismo bolivariano" na Venezuela e por aí vai. Jamais existiu na História uma experiência socialista que não tenha sido sistematicamente boicotada pela conjugação de Estados e conglomerados capitalistas.
Contudo, a já histórica curiosidade de A Gazeta merece parabéns. Cada época produz uma narrativa autojustificadora sobre si mesma e a nossa época não se difere nisso das que a precederam. E se desse ângulo é fácil concluir que realmente não existe possibilidade de existir jornalismo isento, neutro etc, é de alguma forma animador observar que a curiosidade, a dúvida e o questionamento começam a dar sinais no jornalismo local.
Em tempo: a ambição socialista é criar um governo mundial de trabalhadores, não implantar um "regime" onde todos recebam os mesmos salários, vistam roupas da mesma cor, submetam-se à vontade "da coletividade" porque "são todos iguais" devido a "questões morais" (e outras bizarrices criadas na Guerra Fria para reduzir o comunismo a uma caricatura).
A base do socialismo é que os indivíduos têm aptidões, talentos e capacidades diferentes e por isso devem ser remunerados na justa medida da sua capacidade, conforme o seu trabalho. O que é coletivo no socialismo é tudo o que possa produzir riquezas: fábricas, indústrias etc. Não há "igualitarismo socialista", a não ser o do direito de todos ao trabalho... e à riqueza por ele produzida.
Para visitar o site do escritório da ONU em Cuba clique aqui.
Excelente a matéria de A Gazeta feita pelo jornalista Nelson Liano Jr. sobre a experiência socialista em Cuba. Digo "experiência socialista" porque pra mim é muito claro que o bloqueio norte-americano, condenado 19 vezes pela ONU sempre por esmagadora maioria da assembléia geral, prejudica a democratização do poder e a distribuição de renda naquele país.
Aliás, esta é uma das poucas e marcantes omissões da matéria: o posicionamento internacional contra o bloqueio e a insistência da "Terra da Liberdade" em mantê-lo, com o argumento das "prisões políticas" supostamente realizadas pelo governo... ao passo em que os EUA mantém presos políticos em seu território e no próprio território cubano - em Guantánamo - e financiam criminosos comuns para transformá-los em "prisioneros de conciencia".
Outra grande omissão do texto diz respeito à "última fronteira do socialismo": Coréia do Norte, China, Bolívia e Venezuela também passam por experiências socialistas com seus respectivos erros e dificuldades no caminho, incluindo aqui ameaças de guerra por parte, óbvio, dos EUA.
A burocratização estatal e o protagonismo exagerado de líderes messiânicos, características totalmente ausentes da teoria marxista, são as marcas que perpassam da mesma forma estas experiências e a de Cuba. O argumento desses líderes é também o mesmo: o socialismo requer o definhamento do Estado, mas ataques externos (militar, econômico etc) impõem a interrupção desse processo para que se organize alguma defesa.
O resultado desse vaivém geopolítico é o que saltou aos olhos jornalísticos de Nelson Liano em Havana, mas também está por trás do que causou a queda da URSS, o isolamento da Coréia do Norte, o enfraquecimento do "socialismo bolivariano" na Venezuela e por aí vai. Jamais existiu na História uma experiência socialista que não tenha sido sistematicamente boicotada pela conjugação de Estados e conglomerados capitalistas.
Contudo, a já histórica curiosidade de A Gazeta merece parabéns. Cada época produz uma narrativa autojustificadora sobre si mesma e a nossa época não se difere nisso das que a precederam. E se desse ângulo é fácil concluir que realmente não existe possibilidade de existir jornalismo isento, neutro etc, é de alguma forma animador observar que a curiosidade, a dúvida e o questionamento começam a dar sinais no jornalismo local.
Em tempo: a ambição socialista é criar um governo mundial de trabalhadores, não implantar um "regime" onde todos recebam os mesmos salários, vistam roupas da mesma cor, submetam-se à vontade "da coletividade" porque "são todos iguais" devido a "questões morais" (e outras bizarrices criadas na Guerra Fria para reduzir o comunismo a uma caricatura).
A base do socialismo é que os indivíduos têm aptidões, talentos e capacidades diferentes e por isso devem ser remunerados na justa medida da sua capacidade, conforme o seu trabalho. O que é coletivo no socialismo é tudo o que possa produzir riquezas: fábricas, indústrias etc. Não há "igualitarismo socialista", a não ser o do direito de todos ao trabalho... e à riqueza por ele produzida.
Para visitar o site do escritório da ONU em Cuba clique aqui.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
MARXISMO E DETERMINISMO ECONÔMICO
Da ComCiência
A idéia de que uma base econômica determina todas as outras esferas da vida social é o que, de forma geral, define-se como determinismo econômico. Para muitos intelectuais tal noção está presente na teoria marxista, na medida em que se compreende que a base (o econômico ou a infra–estrutura) determina, limita e influencia a superestrurura (outras esferas como a cultura e a política). Mas o debate posterior a Karl Marx (1818–1883) é longo e vai muito além disso. Enquanto alguns intelectuais observam esse debate, outros procuram vislumbrar determinismo econômico como algo que caracteriza outras correntes de pensamento na atualidade.
De acordo com o sociólogo Ricardo Musse, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Usp, Marx foi um opositor, ao longo de sua vida e obra, da prevalência das determinações espirituais, majoritárias na filosofia e na cultura de sua época. Em contraposição a essa situação, procurou chamar a atenção para a importância da produção material como condicionante da vida humana e ressaltar a primazia do social, destacando o papel fundamental das relações econômicas. Musse rebate a idéia de que o pensamento de Marx seria presidido por uma espécie de determinismo econômico. “Este é o ponto central de um catálogo de idéias preconcebidas sobre o marxismo, que surgiu na época da Segunda Internacional, no final do século XIX. Essa corrente política adotou o marxismo como linha política e programática e foi responsável não só por sua difusão mundial, mas também por sua banalização e empobrecimento, associando-o às tendências prevalentes na época, como o positivismo e o darwinismo”, argumenta.
O sociólogo também afirma que essa noção não se sustenta mais desde os anos 1920. “Não só porque outras vertentes do marxismo procederam à crítica dessa concepção, mas porque desde então foram publicados os textos em que Marx trata diretamente dessas questões: A ideologia alemã (editada em 1926), os Manuscritos econômico–filosóficos (em 1932) e o rascunho de O capital, conhecido como Gundrisse (em 1943), são exemplos disso”, diz ele.
Para Danilo Enrico Martuscelli, cientista político e pesquisador do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp, relacionar a obra de Marx com determinismo econômico requer um certo cuidado e pode significar uma redução do pensamento marxista. Segundo ele, a análise mais influenciada pelo determinismo é a dos textos de “juventude”, tais como A sagrada família, os Manuscritos econômicos–filosóficos, A questão judaica, nos quais os níveis político e ideológico aparecem apenas como efeitos do econômico. Já na fase de “maturidade”, de textos como O capital, esses níveis da vida social são concebidos de modo integrado, o que significa dizer que cada nível estrutural, seja ele econômico, político ou ideológico é condição necessária para a reprodução dos demais. “Nessa perspectiva, não faz muito sentido falar em determinação em última instância, mas sim em implicação ou causação recíproca entre níveis estruturais”, esclarece ele.
Martuscelli acrescenta ainda que a ausência de uma teoria do político e do ideológico na principal obra de Marx (O capital) deve–se ao fato do autor ter se restringido a formular uma teoria regional de um dos níveis estruturais da vida social: o nível econômico do modo de produção capitalista. “Marx, portanto, não sistematizou teoricamente uma análise dos níveis político e ideológico, apenas deixou indicações em estado prático, o que talvez tenha dado margem para muitos de seus críticos, ou mesmo assimiladores de seu pensamento, a confundir ou reduzir o significado de sua obra”, conclui o pesquisador.
Por outro lado, não se pode deixar de afirmar que durante um certo tempo perpetuaram correntes teóricas que se apropriaram de uma noção reducionista da teoria marxista. Segundo Musse, o determinismo econômico sobreviveu ao fracasso da Segunda Internacional e de sua “concepção materialista de história” tornando–se um dos esteios da doutrina difundida pela Terceira Internacional. “Com a chegada dos comunistas ao poder na Rússia e na China, essa concepção transfigurou–se em ideologia de Estado. Hoje, no entanto, após a desintegração da União Soviética e a penetração do capitalismo na China, quase ninguém mais, no campo do marxismo, defende que ele seja compreendido como um determinismo econômico. No campo dos opositores do marxismo, no entanto, essa tese alastrou–se”, explica o professor da USP.
Dentre as análises que reduzem a teoria marxista a um tipo de determinismo econômico, Martuscelli identifica dois grandes grupos. No primeiro está o que ele chama de bibliografia anti–marxista. “Para esse grupo, Marx estaria superado, pois deu demasiada atenção à economia e desconsiderou o papel que cumprem as demais esferas na vida social”, afirma ele. Nesse sentido, a obra de Marx e o marxismo em geral não teriam condições de explicar fenômenos culturais, questões relacionadas ao meio ambiente, questões de gênero, ou de identidade. No segundo grupo, o pesquisador situa a bibliografia ligada à prática política e às publicações dos partidos comunistas do século XX. “Neste grupo estão aqueles que sustentam a socialização política como decorrência natural da socialização econômica, levando alguns autores e militantes a sustentar que dadas as condições de implantação do socialismo na ex–URSS, o método taylorista de organização do trabalho seria totalmente compatível com esta empreitada revolucionária. Resta saber se esse sistema corresponde à revolução socialista ou é apenas uma reprodução, em moldes diferentes, do modo capitalista de organização do trabalho social”, argumenta. Martuscelli ressalta ainda que há um vício de origem nas análises desses dois grupos: “seja porque são informadas pela idéia de unidade da obra de Marx, seja porque relacionam mecanicamente essa obra com as experiências revolucionárias e dos partidos comunistas do século XX, ou porque talvez seja mais fácil “reproduzir” as ideologias do senso comum do que criticá–las, e por que não transformá–las?”, questiona ele.
O pesquisador continua sua avaliação dizendo que se tomarmos como referência a bibliografia marxista que trata da revolução burguesa no Brasil, é possível concluir que há um predomínio de análises influenciadas por uma boa dose de determinismo econômico. “A própria periodização dessa revolução realizada pelos autores, ao identificar seu início com o período pós–1930, parece ignorar ou reduzir a transformação do trabalhador escravo em trabalhador livre e o processo de assalariamento que se seguiu, incorporando grande número de imigrantes nos finais do século XIX e idos do século XX. Ou seja, essa bibliografia ignora um elemento político de extrema importância de toda revolução burguesa: a criação jurídico–política do trabalhador livre. Essa é uma das teses centrais da análise de Marx para a caracterização da revolução burguesa”, diz ele.
Por outro lado, um certo determinismo econômico pode ser vislumbrado em outras correntes de pensamento. Martuscelli relembra a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas para incentivar a cooperação econômica entre os seus membros. A Cepal, que reunia o pensamento desenvolvimentista latino–americano e pensadores como Celso Furtado, carrega, na opinião do pesquisador, uma dose de determinismo econômico. “Tomemos como exemplo o par conceitual centro–periferia para a análise da posição desigual que os países ocupam na divisão internacional do trabalho. Se nos perguntarmos qual é o conteúdo teórico desse par, chegaremos à conclusão de que o que diferencia fundamentalmente os países no mundo é o estágio de desenvolvimento das forças produtivas”. Assim, os países centrais representariam as economias de estágio de desenvolvimento mais “avançado” em detrimento das economias periféricas que representariam um estágio mais “atrasado”. Para ele, o problema desse tipo de análise é que recorre quase que exclusivamente a uma variável econômica para se referir às desigualdades de inserção dos países na divisão internacional do trabalho. “Nessa perspectiva, os conceitos de lutas de classes, Estado de classe ou imperialismo perdem sentido, ou são bruscamente esvaziados, para entender as relações interestatais, ou ainda, a dimensão política do problema é relegada ou mesmo considerada inoperante”, afirma.
Ricardo Musse discorda que haja determinismo nas teses cepalinas. “A teoria cepalina, em seus fundamentos econômicos – diz ele – não teve sua inspiração em teses marxistas. No máximo, convergiu com a política dos partidos comunistas acerca da necessidade de enfrentar o imperialismo a partir da periferia do capitalismo. Não considero que haja determinismo nas teses cepalinas. A teoria das relações desiguais das trocas, por exemplo, ressalta a dimensão política do fenômeno econômico”, argumenta ele.
Outra análise na qual se enxerga a influência do determinismo econômico é a recente discussão, por autores marxistas e não-marxistas, sobre o processo de fusão do capital produtivo com o capital financeiro. Para Martuscelli, muitas análises desse processo de fusão parecem reduzir o aspecto político do problema, deixando de considerar que “a multifuncionalidade é uma característica própria do grande capital, que a despeito de poder investir e obter rendimentos em mais de uma atividade, realiza a escolha na conjuntura política da atividade que considera principal ou dominante”. E conclui: “se prosseguirmos com o determinismo econômico, limitaremos ou mesmo sufocaremos a contribuição que o marxismo pode dar enquanto teoria para a análise dos fenômenos sociais contemporâneos”.
O revés: a economia desvinculada da política
Ludmila Abílio, socióloga e membro do grupo temático de pesquisa “A crise do trabalho e as novas formas de geração de emprego e renda”, financiado pela Fapesp, concorda que o termo determinismo econômico, muitas vezes empobrece a profundidade da teorização marxiana, da relação intrínseca entre a economia e todas as esferas da vida social e acrescenta que discutir a noção de determinismo econômico em Marx requer que estejamos atentos à força que a idéia de determinação econômica adquiriu nos dias de hoje.
Ela identifica na atualidade um obscurecimento das questões políticas, quando a economia aparece desvinculada da política. “Hoje torna-se dominante um discurso que descola a economia de seu caráter político, tornando-a uma esfera que paira sobre ou domina a sociedade. Esse é um determinismo econômico importante de ser pensado no momento. O que vemos é um discurso sobre a economia, que a esvaziou de sentido histórico e político. Isso em nada se parece com o que constitui a tessitura do social na teoria marxiana”, diz ela.
Para exemplificar sua argumentação, a pesquisadora cita frases correntes como “a crise de tal bolsa não alterou a política de tal país”, ou o que é mais sintomático em sua opinião “a crise do governo não alterou as bolsas, o risco-país”. Para ela, o que quer que seja que hoje tente dar formas para a relação entre economia nacional e global, sinaliza economia e política como duas esferas separadas e independentes. “Nesse sentido, é fundamental compreender o total imbricamento entre economia e política na teoria marxiana para que então possamos refletir sobre a centralidade que a noção de determinação econômica adquire em nossos tempos de esvaziamento da política”, afirma a pesquisadora.
Ela explica que para Marx a política não deve ser compreendida como determinada pela economia, pois se realiza enquanto própria constituição das relações de produção. “O cerne da questão é que política e economia não podem ser pensadas separadamente. Para Marx a política é o próprio conflito de classes, e esse conflito se realiza nas relações de produção. A relação – que é sempre de dominação e luta contra a dominação – entre os que vendem sua força de trabalho e os que detêm os meios de produção é a própria política. Ela se constitui enquanto uma relação de desigualdade e de exploração”, diz Ludmila. É nesse sentido que segundo ela surge a brecha para uma interpretação do determinismo econômico, pelo fato de que a formação das classes, sua consciência, a dominância ideológica estão fundadas nas relações de produção. No entanto, ela argumenta que isso não significa que as relações de produção possam ser pensadas autonomamente, como algo que se constitui por si só e que determina as outras esferas da vida. “É esta relação dialética, na qual as classes e a consciência de classes se constituem, ao mesmo tempo em que a constituem, que nega uma lógica causal ou determinista”, afirma ela.
A pesquisadora relembra o sociólogo Francisco de Oliveira para citar uma análise que se apóia numa perspectiva fundamentalmente marxista, e traz a política para o centro do debate e das relações de produção. É este tipo de análise, em sua opinião, que pode rebater o esvaziamento político da atualidade. “O neoliberalismo parece dotar a economia de uma autonomia em relação à política. Podemos discutir se essa autonomia determinista seria uma dominação ideológica, que afirma uma suposta inevitabilidade do curso da história, da ausência de alternativas possíveis; o que podemos compreender como o cerceamento dos indivíduos enquanto sujeitos políticos, que não mais transformam seu próprio tempo. Se assim for, obviamente essa é uma ideologia poderosa, que anula potencialidades políticas” diz ela.
Ludmila, insiste que presenciamos um momento histórico em que a política está descolada da economia, no sentido de que o conflito de classes vai sendo imobilizado pela crescente perda das “forças do trabalho”. Para ela, as mutações no mundo do trabalho, que se referem não só à precarização, mas à toda uma reconfiguração do processo produtivo, tornam difícil o reconhecimento e as organizações políticas de uma classe trabalhadora.
É nesse sentido que ela identifica que as correntes que hoje se apóiam na idéia de um determinismo econômico podem ser entendidas em um sentido diametralmente oposto ao lugar que a economia tem na teoria marxiana. “O que aparece hoje como a autonomização de uma esfera econômica que poderia assim se realizar descolada dos rumos políticos pode, em substância, ser entendida como esse obscurecimento do conflito de classes. Se não sabemos mais qual o lugar do trabalhador, e até mesmo do trabalho no processo produtivo e nas formas contemporâneas da acumulação, como reconhecer o lugar e o exercício da política e de suas próprias possibilidades?”, questiona Ludmila.
A questão, ela mesma responde, é que vivemos nos últimos trinta anos um processo profundo de reconfigurações do trabalho, que tem de ser entendido no contexto da flexibilização, da reestruturação produtiva e de uma revolução tecnológica que deu novas formas e substância ao processo produtivo. Nesse contexto, todas as referências que orientavam, fosse o marxismo ou outras importantes construções teóricas de explicação do mundo social se deslocam, se desmancham, se reconfiguram. De acordo com Ludmila, o que permanece é um momento histórico em que não se consegue identificar ou reconhecer onde está o capital e as formas de acumulação. “É nesse sentido que o determinismo econômico assume a força que tem hoje – argumenta ela – e a economia torna-se uma esfera autônoma, sem sujeitos definidos, onde pairam os juros, as bolsas, os riscos-país, os índices; termos que se tornam o iceberg de processos que se tornaram obscuros, quase que ilocalizáveis ou incompreensíveis”.
A pesquisadora conclui ainda que o esvaziamento da política tem de ser entendido politicamente, pois atende a interesses de classes dominantes. O problema, segundo ela, reside em reconhecermos que classes são essas, como esses interesses se realizam e quais são as formas da realização do conflito. “A dificuldade hoje é que já não sabemos nem determinar o que compreendemos por política. É como se houvesse o mundo dos negócios e um mundo social, da violência, do desemprego, do tráfico, das favelas, das prisões lotadas e dos condomínios armados. Resgatando a crítica aos dualismos, a ciência social tem de se dedicar ao enorme exercício de entender as relações que hoje constituem esse mundo social, libertando-se da constante tendência em determinar causas e efeitos. Nesse sentido, o marxismo permanece fundamental”, conclui Ludmila.
A idéia de que uma base econômica determina todas as outras esferas da vida social é o que, de forma geral, define-se como determinismo econômico. Para muitos intelectuais tal noção está presente na teoria marxista, na medida em que se compreende que a base (o econômico ou a infra–estrutura) determina, limita e influencia a superestrurura (outras esferas como a cultura e a política). Mas o debate posterior a Karl Marx (1818–1883) é longo e vai muito além disso. Enquanto alguns intelectuais observam esse debate, outros procuram vislumbrar determinismo econômico como algo que caracteriza outras correntes de pensamento na atualidade.
De acordo com o sociólogo Ricardo Musse, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Usp, Marx foi um opositor, ao longo de sua vida e obra, da prevalência das determinações espirituais, majoritárias na filosofia e na cultura de sua época. Em contraposição a essa situação, procurou chamar a atenção para a importância da produção material como condicionante da vida humana e ressaltar a primazia do social, destacando o papel fundamental das relações econômicas. Musse rebate a idéia de que o pensamento de Marx seria presidido por uma espécie de determinismo econômico. “Este é o ponto central de um catálogo de idéias preconcebidas sobre o marxismo, que surgiu na época da Segunda Internacional, no final do século XIX. Essa corrente política adotou o marxismo como linha política e programática e foi responsável não só por sua difusão mundial, mas também por sua banalização e empobrecimento, associando-o às tendências prevalentes na época, como o positivismo e o darwinismo”, argumenta.
O sociólogo também afirma que essa noção não se sustenta mais desde os anos 1920. “Não só porque outras vertentes do marxismo procederam à crítica dessa concepção, mas porque desde então foram publicados os textos em que Marx trata diretamente dessas questões: A ideologia alemã (editada em 1926), os Manuscritos econômico–filosóficos (em 1932) e o rascunho de O capital, conhecido como Gundrisse (em 1943), são exemplos disso”, diz ele.
Para Danilo Enrico Martuscelli, cientista político e pesquisador do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp, relacionar a obra de Marx com determinismo econômico requer um certo cuidado e pode significar uma redução do pensamento marxista. Segundo ele, a análise mais influenciada pelo determinismo é a dos textos de “juventude”, tais como A sagrada família, os Manuscritos econômicos–filosóficos, A questão judaica, nos quais os níveis político e ideológico aparecem apenas como efeitos do econômico. Já na fase de “maturidade”, de textos como O capital, esses níveis da vida social são concebidos de modo integrado, o que significa dizer que cada nível estrutural, seja ele econômico, político ou ideológico é condição necessária para a reprodução dos demais. “Nessa perspectiva, não faz muito sentido falar em determinação em última instância, mas sim em implicação ou causação recíproca entre níveis estruturais”, esclarece ele.
Martuscelli acrescenta ainda que a ausência de uma teoria do político e do ideológico na principal obra de Marx (O capital) deve–se ao fato do autor ter se restringido a formular uma teoria regional de um dos níveis estruturais da vida social: o nível econômico do modo de produção capitalista. “Marx, portanto, não sistematizou teoricamente uma análise dos níveis político e ideológico, apenas deixou indicações em estado prático, o que talvez tenha dado margem para muitos de seus críticos, ou mesmo assimiladores de seu pensamento, a confundir ou reduzir o significado de sua obra”, conclui o pesquisador.
Por outro lado, não se pode deixar de afirmar que durante um certo tempo perpetuaram correntes teóricas que se apropriaram de uma noção reducionista da teoria marxista. Segundo Musse, o determinismo econômico sobreviveu ao fracasso da Segunda Internacional e de sua “concepção materialista de história” tornando–se um dos esteios da doutrina difundida pela Terceira Internacional. “Com a chegada dos comunistas ao poder na Rússia e na China, essa concepção transfigurou–se em ideologia de Estado. Hoje, no entanto, após a desintegração da União Soviética e a penetração do capitalismo na China, quase ninguém mais, no campo do marxismo, defende que ele seja compreendido como um determinismo econômico. No campo dos opositores do marxismo, no entanto, essa tese alastrou–se”, explica o professor da USP.
Dentre as análises que reduzem a teoria marxista a um tipo de determinismo econômico, Martuscelli identifica dois grandes grupos. No primeiro está o que ele chama de bibliografia anti–marxista. “Para esse grupo, Marx estaria superado, pois deu demasiada atenção à economia e desconsiderou o papel que cumprem as demais esferas na vida social”, afirma ele. Nesse sentido, a obra de Marx e o marxismo em geral não teriam condições de explicar fenômenos culturais, questões relacionadas ao meio ambiente, questões de gênero, ou de identidade. No segundo grupo, o pesquisador situa a bibliografia ligada à prática política e às publicações dos partidos comunistas do século XX. “Neste grupo estão aqueles que sustentam a socialização política como decorrência natural da socialização econômica, levando alguns autores e militantes a sustentar que dadas as condições de implantação do socialismo na ex–URSS, o método taylorista de organização do trabalho seria totalmente compatível com esta empreitada revolucionária. Resta saber se esse sistema corresponde à revolução socialista ou é apenas uma reprodução, em moldes diferentes, do modo capitalista de organização do trabalho social”, argumenta. Martuscelli ressalta ainda que há um vício de origem nas análises desses dois grupos: “seja porque são informadas pela idéia de unidade da obra de Marx, seja porque relacionam mecanicamente essa obra com as experiências revolucionárias e dos partidos comunistas do século XX, ou porque talvez seja mais fácil “reproduzir” as ideologias do senso comum do que criticá–las, e por que não transformá–las?”, questiona ele.
O pesquisador continua sua avaliação dizendo que se tomarmos como referência a bibliografia marxista que trata da revolução burguesa no Brasil, é possível concluir que há um predomínio de análises influenciadas por uma boa dose de determinismo econômico. “A própria periodização dessa revolução realizada pelos autores, ao identificar seu início com o período pós–1930, parece ignorar ou reduzir a transformação do trabalhador escravo em trabalhador livre e o processo de assalariamento que se seguiu, incorporando grande número de imigrantes nos finais do século XIX e idos do século XX. Ou seja, essa bibliografia ignora um elemento político de extrema importância de toda revolução burguesa: a criação jurídico–política do trabalhador livre. Essa é uma das teses centrais da análise de Marx para a caracterização da revolução burguesa”, diz ele.
Por outro lado, um certo determinismo econômico pode ser vislumbrado em outras correntes de pensamento. Martuscelli relembra a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas para incentivar a cooperação econômica entre os seus membros. A Cepal, que reunia o pensamento desenvolvimentista latino–americano e pensadores como Celso Furtado, carrega, na opinião do pesquisador, uma dose de determinismo econômico. “Tomemos como exemplo o par conceitual centro–periferia para a análise da posição desigual que os países ocupam na divisão internacional do trabalho. Se nos perguntarmos qual é o conteúdo teórico desse par, chegaremos à conclusão de que o que diferencia fundamentalmente os países no mundo é o estágio de desenvolvimento das forças produtivas”. Assim, os países centrais representariam as economias de estágio de desenvolvimento mais “avançado” em detrimento das economias periféricas que representariam um estágio mais “atrasado”. Para ele, o problema desse tipo de análise é que recorre quase que exclusivamente a uma variável econômica para se referir às desigualdades de inserção dos países na divisão internacional do trabalho. “Nessa perspectiva, os conceitos de lutas de classes, Estado de classe ou imperialismo perdem sentido, ou são bruscamente esvaziados, para entender as relações interestatais, ou ainda, a dimensão política do problema é relegada ou mesmo considerada inoperante”, afirma.
Ricardo Musse discorda que haja determinismo nas teses cepalinas. “A teoria cepalina, em seus fundamentos econômicos – diz ele – não teve sua inspiração em teses marxistas. No máximo, convergiu com a política dos partidos comunistas acerca da necessidade de enfrentar o imperialismo a partir da periferia do capitalismo. Não considero que haja determinismo nas teses cepalinas. A teoria das relações desiguais das trocas, por exemplo, ressalta a dimensão política do fenômeno econômico”, argumenta ele.
Outra análise na qual se enxerga a influência do determinismo econômico é a recente discussão, por autores marxistas e não-marxistas, sobre o processo de fusão do capital produtivo com o capital financeiro. Para Martuscelli, muitas análises desse processo de fusão parecem reduzir o aspecto político do problema, deixando de considerar que “a multifuncionalidade é uma característica própria do grande capital, que a despeito de poder investir e obter rendimentos em mais de uma atividade, realiza a escolha na conjuntura política da atividade que considera principal ou dominante”. E conclui: “se prosseguirmos com o determinismo econômico, limitaremos ou mesmo sufocaremos a contribuição que o marxismo pode dar enquanto teoria para a análise dos fenômenos sociais contemporâneos”.
O revés: a economia desvinculada da política
Ludmila Abílio, socióloga e membro do grupo temático de pesquisa “A crise do trabalho e as novas formas de geração de emprego e renda”, financiado pela Fapesp, concorda que o termo determinismo econômico, muitas vezes empobrece a profundidade da teorização marxiana, da relação intrínseca entre a economia e todas as esferas da vida social e acrescenta que discutir a noção de determinismo econômico em Marx requer que estejamos atentos à força que a idéia de determinação econômica adquiriu nos dias de hoje.
Ela identifica na atualidade um obscurecimento das questões políticas, quando a economia aparece desvinculada da política. “Hoje torna-se dominante um discurso que descola a economia de seu caráter político, tornando-a uma esfera que paira sobre ou domina a sociedade. Esse é um determinismo econômico importante de ser pensado no momento. O que vemos é um discurso sobre a economia, que a esvaziou de sentido histórico e político. Isso em nada se parece com o que constitui a tessitura do social na teoria marxiana”, diz ela.
Para exemplificar sua argumentação, a pesquisadora cita frases correntes como “a crise de tal bolsa não alterou a política de tal país”, ou o que é mais sintomático em sua opinião “a crise do governo não alterou as bolsas, o risco-país”. Para ela, o que quer que seja que hoje tente dar formas para a relação entre economia nacional e global, sinaliza economia e política como duas esferas separadas e independentes. “Nesse sentido, é fundamental compreender o total imbricamento entre economia e política na teoria marxiana para que então possamos refletir sobre a centralidade que a noção de determinação econômica adquire em nossos tempos de esvaziamento da política”, afirma a pesquisadora.
Ela explica que para Marx a política não deve ser compreendida como determinada pela economia, pois se realiza enquanto própria constituição das relações de produção. “O cerne da questão é que política e economia não podem ser pensadas separadamente. Para Marx a política é o próprio conflito de classes, e esse conflito se realiza nas relações de produção. A relação – que é sempre de dominação e luta contra a dominação – entre os que vendem sua força de trabalho e os que detêm os meios de produção é a própria política. Ela se constitui enquanto uma relação de desigualdade e de exploração”, diz Ludmila. É nesse sentido que segundo ela surge a brecha para uma interpretação do determinismo econômico, pelo fato de que a formação das classes, sua consciência, a dominância ideológica estão fundadas nas relações de produção. No entanto, ela argumenta que isso não significa que as relações de produção possam ser pensadas autonomamente, como algo que se constitui por si só e que determina as outras esferas da vida. “É esta relação dialética, na qual as classes e a consciência de classes se constituem, ao mesmo tempo em que a constituem, que nega uma lógica causal ou determinista”, afirma ela.
A pesquisadora relembra o sociólogo Francisco de Oliveira para citar uma análise que se apóia numa perspectiva fundamentalmente marxista, e traz a política para o centro do debate e das relações de produção. É este tipo de análise, em sua opinião, que pode rebater o esvaziamento político da atualidade. “O neoliberalismo parece dotar a economia de uma autonomia em relação à política. Podemos discutir se essa autonomia determinista seria uma dominação ideológica, que afirma uma suposta inevitabilidade do curso da história, da ausência de alternativas possíveis; o que podemos compreender como o cerceamento dos indivíduos enquanto sujeitos políticos, que não mais transformam seu próprio tempo. Se assim for, obviamente essa é uma ideologia poderosa, que anula potencialidades políticas” diz ela.
Ludmila, insiste que presenciamos um momento histórico em que a política está descolada da economia, no sentido de que o conflito de classes vai sendo imobilizado pela crescente perda das “forças do trabalho”. Para ela, as mutações no mundo do trabalho, que se referem não só à precarização, mas à toda uma reconfiguração do processo produtivo, tornam difícil o reconhecimento e as organizações políticas de uma classe trabalhadora.
É nesse sentido que ela identifica que as correntes que hoje se apóiam na idéia de um determinismo econômico podem ser entendidas em um sentido diametralmente oposto ao lugar que a economia tem na teoria marxiana. “O que aparece hoje como a autonomização de uma esfera econômica que poderia assim se realizar descolada dos rumos políticos pode, em substância, ser entendida como esse obscurecimento do conflito de classes. Se não sabemos mais qual o lugar do trabalhador, e até mesmo do trabalho no processo produtivo e nas formas contemporâneas da acumulação, como reconhecer o lugar e o exercício da política e de suas próprias possibilidades?”, questiona Ludmila.
A questão, ela mesma responde, é que vivemos nos últimos trinta anos um processo profundo de reconfigurações do trabalho, que tem de ser entendido no contexto da flexibilização, da reestruturação produtiva e de uma revolução tecnológica que deu novas formas e substância ao processo produtivo. Nesse contexto, todas as referências que orientavam, fosse o marxismo ou outras importantes construções teóricas de explicação do mundo social se deslocam, se desmancham, se reconfiguram. De acordo com Ludmila, o que permanece é um momento histórico em que não se consegue identificar ou reconhecer onde está o capital e as formas de acumulação. “É nesse sentido que o determinismo econômico assume a força que tem hoje – argumenta ela – e a economia torna-se uma esfera autônoma, sem sujeitos definidos, onde pairam os juros, as bolsas, os riscos-país, os índices; termos que se tornam o iceberg de processos que se tornaram obscuros, quase que ilocalizáveis ou incompreensíveis”.
A pesquisadora conclui ainda que o esvaziamento da política tem de ser entendido politicamente, pois atende a interesses de classes dominantes. O problema, segundo ela, reside em reconhecermos que classes são essas, como esses interesses se realizam e quais são as formas da realização do conflito. “A dificuldade hoje é que já não sabemos nem determinar o que compreendemos por política. É como se houvesse o mundo dos negócios e um mundo social, da violência, do desemprego, do tráfico, das favelas, das prisões lotadas e dos condomínios armados. Resgatando a crítica aos dualismos, a ciência social tem de se dedicar ao enorme exercício de entender as relações que hoje constituem esse mundo social, libertando-se da constante tendência em determinar causas e efeitos. Nesse sentido, o marxismo permanece fundamental”, conclui Ludmila.
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