Na data em
que o imaginário popular consagra como o “dia da mentira”, 49 anos atrás
era rompida a legalidade democrática instituída no Brasil com a
Constituição de 1946. Hoje, a quase totalidade das entidades da
sociedade civil (de empresários industriais e rurais, de banqueiros, de
grupos religiosos e culturais, da grande imprensa etc.) que conspirou,
endossou e promoveu a derrubada do governo democrático de João Goulart
(1961-1964) não festejará o golpe civil-militar de 1964. Nestes dias, na
grande imprensa brasileira que apoiou o golpe de 1964 (e, por alguns
anos, atuou como aparelho ideológico da ditadura militar) – entre eles,
os jornais O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil –, nenhum editorial será publicado para render homenagem à ação dos militares golpistas. (Nem mesmo, a Folha de S. Paulo
se atreverá a afirmar, como fez em seu editorial de 17/02/2009, que o
regime de 1964 – comparado com as ditaduras da Argentina e do Chile –
teria sido uma “ditabranda”…)
Provavelmente,
apenas alguns reduzidos setores das Forças Armadas – em especial, os
oficiais da reserva –, promoverão, em recintos fechados, encontros para
lembrar a “Revolução redentora” de 31 de março de 1964. O fato é que nem
mesmo blogueiros porta-vozes da direita civil brasileira – entre eles, alguns jornalistas de Veja, O Globo, Estadão etc.
–, evocarão essa data como o dia em que a democracia brasileira teria
sido salva da “corrupção”, da “subversão política” e da “ameaça
comunista”.
Pode ser
afirmado que na “guerra de narrativas” sobre o significado e a natureza
deste crucial evento da história política brasileira, os “vitoriosos de
abril”, gradativamente, tornaram-se os “perdedores” da luta ideológica.
Hoje, as representações políticas e simbólicas dominantes nos meios
editoriais, políticos e culturais consagram que 1964 não foi uma Revolução, mas um movimento golpista;
ou seja, 1964 foi (a) um golpe que impediu a ampliação da democracia
política brasileira nos anos 1960; (b) um golpe contra as reformas
sociais e políticas e (c) um golpe contra a politização dos
trabalhadores e o promissor debate de ideias que, de norte a sul,
intensamente ocorria do país no pré-1964.
Em síntese,
hoje, prevalece a compreensão de que nos “tempos de Goulart as classes
dominantes (nacionais e internacionais) e seus aparelhos ideológicos e
repressivos” – diante das iniciativas e reivindicações dos trabalhadores
(das zonas rurais e urbanas) e de setores das camadas médias –,
alardeavam a “subversão da lei e da ordem”, a “quebra da disciplina e
hierarquia” dentro das Forças Armadas, a “crise de autoridade” do
governo Goulart e, de forma ainda mais dramática, a “comunização do país”. Convenhamos que, por vezes expressas através duma retórica “radical” (“reformas na lei ou na marra”, “forca aos gorilas!” etc.), as reivindicações por mudanças socioeconômicas e as demandas políticas da época visavam, fundamentalmente, o alargamento da democracia política e a realização de reformas no capitalismo brasileiro.
Contra
algumas formulações “revisionistas” que, hoje, insinuam “tendências
golpistas” por parte do governo João Goulart ou das “esquerdas
radicais”, devemos enfatizar que quem planejou, articulou e desencadeou o
golpe contra a democracia política foi a alta hierarquia das Forças
Armadas – incentivada e respaldada pelo empresariado (industrial, rural,
financeiro, grande imprensa e empresas multinacionais) – bem como
alguns setores das classes médias brasileiras (entidades e associações
femininas católicas, de pequenos comerciantes etc.) Está amplamente
documentado que, desde 1961 – antes, pois, da chamada “agitação” ou
“subversão” das esquerdas –, alguns desses setores começaram a se
organizar política e ideologicamente para inviabilizar o governo João
Goulart. A ampla mobilização democrática pelas reformas sociais e
políticas, apoiada pelo executivo, teve como efeito a ampliação da
conspiração civil-militar e o amadurecimento da decisão dos golpistas de
decretar o fim do regime político de 1946.
Destruindo
as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda
e progressistas, o golpe foi saudado pelas associações representativas
do conjunto das classes dominantes, pela alta cúpula da Igreja católica,
pelos grandes meios de comunicação etc. como uma autêntica “Revolução
redentora”. Por sua vez, a administração norte-americana de Lyndon
Johnson (1963-1969) – que ficou poupada de fornecer o apoio bélico e
logístico aos golpistas –, congratulou-se com os militares e civis
brasileiros pela rapidez e eficácia da “ação revolucionária”. Para
satisfação do Pentágono, da CIA, da Embaixada norte-americana, das
empresas multinacionais e do Vaticano, uma “grandiosa Cuba” ao sul do
Equador tinha sido evitada!
Embora fosse
visto positivamente pelos trabalhadores, pelas baixas classes médias e
suas entidades políticas, o governo João Goulart ruiu como um “castelo
de areia”. Dois de seus principais pilares de apoio, como apregoavam os
setores nacionalistas, mostraram ser autênticas “peças de ficção”. De um
lado, o propalado “dispositivo militar” que seria comandado pelos
chamados “generais do povo”; de outro, o chamado “quarto poder” que
estaria representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A
rigor, ambos assistiram, passivamente, a queda inglória de um governo a
quem juravam, até 24 horas antes, fidelidade até a morte!
Desorganizadas
e fragmentadas, as entidades progressistas e de esquerda – muitas delas
subordinadas ou tuteladas pelo governo Goulart – não ofereceram
qualquer resistência à quartelada militar. Sabe-se que, às vésperas de
abril, algumas lideranças de esquerda afirmavam que os golpistas, caso
atrevessem quebrar a ordem constitucional, teriam as “cabeças cortadas”.
Mas, como mostraram os “duros fatos da vida”, tudo não passava de uma
trágica e cortante metáfora. Com a ação dos “vitoriosos de abril”, a
retórica, no entanto, tornou-se, após 1º. de abril, uma cruel realidade
para muitos homens e mulheres durante os longos e sombrios 21 anos da
ditadura militar.
49 anos
depois, nada há, pois, a comemorar. O golpe de 1964 foi um infausto
acontecimento, pois implicou efeitos perversos e nefastos ao processo de
desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil (que, sabemos,
ainda se refletem nos tempos presentes). Decorridos 49 anos do golpe, o
conjunto da sociedade brasileira repudia a data; no entanto, os
democratas progressistas não podem se contentar com a derrota que os
golpistas sofreram no plano ideológico e cultural.
Neste
sentido, os progressistas não podem se calar diante da realidade de que o
regime democrático vigente no Brasil ainda não fez plena justiça às
vítimas da ditadura militar; devem, pois, se empenhar com todas suas
forças e inteligência para que a verdade sobre os fatos ocorridos entre
1964 e 1985 seja plenamente conhecida. Tendo em vista que o “direito à
justiça” e o “direito à verdade” são condições e pressupostos de um
regime democrático, não se pode senão concluir que a democracia política
no Brasil contemporâneo não é ainda uma realidade sólida e consistente.
***
Caio Toledo é professor aposentado da Unicamp. Graduado em filosofia pela USP em 1968 e doutor pela UNESP em 1974, atualmente integra o comitê editorial do blog marxismo21. Organizou, entre outros, 1964: visões críticas do golpe – democracia e reformas no populismo. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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