segunda-feira, 6 de julho de 2009

ESTADO DE CLASSE

Criações recentes da vida política nacional, os conselhos gestores são mais que arremedos perfeitos da democracia não-representativa.

Os conselhos gestores são a ferramenta mais sutil de cooptação ideológica, mesmo quando não servem de trampolim para a política partidária.

Vejamos: os cidadãos que integram tais conselhos participam realmente dos processos do Estado moderno?

Sabemos que eles pagam seus impostos, organizam-se em sindicatos, associações e outras instâncias deliberativas para - assim pensam - propor, ouvir e discutir políticas públicas que atingem a eles, suas famílias e amigos. Afinal, é dos seus impostos que saem recursos para financiar o Estado e permitir a elaboração do orçamento público.

Mas essa liberdade de deliberação é só aparente. Quem determina os percentuais de investimentos em cada setor público é o próprio Estado.

Anualmente, peças orçamentárias são enviadas pelo Executivo ao Legislativo (câmaras de vereadores, no caso dos municípios, assembléias legislativas, no caso dos Estados, Congresso Nacional, no caso da União). O orçamento é então discutido em comissões legislativas e depois segue para votação e a sanção do chefe do Poder Executivo. Só então vira lei. Qual é o problema disso? Aparentemente nenhum. Afinal, é uma exigência do modelo federativo a discussão entre os poderes, principalmente em algo tão importante como a divisão do bolo orçamentário anual.

Essa é a teoria. Na prática, o orçamento - em qualquer esfera - sofre vários e seguidos cortes. O Estado os chama de "contingenciamentos”.

O principal ocorre no próprio trâmite legislativo.

Quem já viu o processo de votação do orçamento público nas câmaras municipais, assembléias legislativas e principalmente na Câmara dos Deputados, sabe que o Legislativo, dividido de forma maniqueísta entre bancadas “de governo” e “de oposição”, costuma esquecer-se do interesse público e dar lugar a uma batalha campal de interesses de parlamentares e agremiações partidárias.


Essa negociação é acirrada, pode levar de semanas a meses, mas nada tem a ver com o real interesse público, uma vez que em seu decurso as decisões são tomadas nos gabinetes, às escondidas. Entre um e outro ato secreto, nossos representantes negociam cargos em altos escalões da máquina pública, controle de estatais, promessas de coligações, presentinhos caros, enfim, uma série de condicionamentos que nem de longe lembram as ladainhas de "interesse público, impessoalidade administrativa e autonomia da máquina pública"...

Porém, negociações à parte, o orçamento tem que ser liberado. Dura lex, sed lex. Por isso o bolo acaba sendo dividido e os recursos chegando a quem de direito com uma ressalva: projetos de encaminhamento popular, alguns de interesse vital para segmentos historicamente excluídos, são anulados para garantir alianças ou apoios estratégicos para as próximas eleições.

Eventualmente pressionado, o Executivo sai-se sempre com a mesma: é preciso “manter a governabilidade”.

Assim, sob o pretexto de se manter as aparências no mundo da política representativa, a formatação final do orçamento público vira um arremedo do próprio interesse público. Como se não bastassem os cortes no Congresso, o próprio Executivo trata de definir, por conta própria e sem consulta pública, aquilo que ele pensa serem as prioridades da “governabilidade”.

Como se vê, o interesse popular não conta. A bancada do governo, que na verdade não passa de uma extensão do Poder Executivo, degladia-se contra a bancada oposicionista, que nada mais é que uma bancada da coligação derrotada nas eleições passadas.

O cidadão, que elegeu tais representantes por acreditar na representatividade institucional, é o último a saber de tais manobras. É por isso que os conselhos populares tomam conhecimento desses cortes bem depois, já na execução dos projetos (ou na ausência deles...).


Poder-se-ia argumentar que há emendas de parlamentares ao orçamento. Porém, se a discussão do orçamento geral ocorre sem qualquer vínculo com o interesse público, o rito para a liberação deas emendas parlamentares ao orçamento (sejam de bancada, sejam individuais) exige uma rede intrincada de trocas entre legisladores, comissões e o próprio Executivo, quando não entram no jogo também os próprios conselhos gestores.

Essas negociações envolvem também apoio político, troca de favores, aparições em solenidades pagas com o erário do contribuinte e outros detalhes. Sem contar que a complementação orçamentária está também sujeita aos mesmos cortes ou “contingenciamentos”, e, por isso, o balcão de negócios para a liberação de uma emenda parlamentar é bem mais complicado.

Uma das razões dessa complicação é que uma emenda individual ao aprovada pode ser, e é em alguns casos, a garantia de reeleição para um parlamentar "atuante".

Por isso, e por outras razões, a aprovação de emendas inclui mais negociações em troca de apoios estratégicos, cargos de confiança para coordenadores de campanha e parentes em estatais etc.

Vide o recente escândalo das "nomeações secretas" do Senado, só para ficar em um mísero exemplo
...

Por tudo isso, mas não somente por isso, a participação pública na elaboração do orçamento e nas diretrizes das políticas do próprio Estado é uma ilusão.

Ao reconfigurar o orçamento em nome da “governabilidade” e de seus arranjos políticos, o Executivo reconfigura também a participação pública na res publica, na coisa pública. Ignorada, a soberania do povo vira decoração, perfumaria. O desejo de quem está no poder, de quem controla a máquina de um dinheiro que não é seu, é quem dita o que é ou não "de interesse público".

Se as coisas são assim, como permanece a crença nos tais "institutos de cidadania" e sua "participação cidadã"? Como é possível alegar - e não ser preso por isso - que o Estado delibera segundo os interesses da população?

A origem dessa convicção enganosa é mais sutil do que parece. Na verdade, achamos que temos o controle porque o próprio Estado se encarrega de nos dar a falsa impressão de que temos o controle.

A coisa funciona mais ou menos assim: ao nos permitir conselhos e outras instâncias deliberativas do Estado contemporâneo, o Executivo obriga-se a nos ouvir. O cidadão tem, portanto, a possibilidade da fala. Ele propõe, critica e até delibera, mas no final quem decide as políticas públicas é o próprio Executivo, que possui as chaves da administração do capital orçamentário - uma vez que impostos e tributos, reunidos no Tesouro público, tornam-se exatamente isso: capital, capital orçamentário para a agremiação que está no poder.

É com esse capital que o Executivo administra os conflitos da sua própria representatividade. Nisso, qualquer governo é implacável. Do Executivo vem a complementação orçamentária necessária para o Judiciário e o próprio Legislativo. É ele que empossa a direção dos tribunais de Justiça, do Ministério Público, dos tribunais de contas, do Supremo Tribunal Federal etc.

Ao dar-nos a falsa impressão de que participamos da res publica, o Estado também empossa a nós mesmos. Ele precisa de nós e também da nossa distância. Por isso, nos mantém por perto e ouve nossas críticas. Acaricia as nossas cabeças e discute conosco o Estado que queremos. No entanto, o que o Estado quer é administrar os conflitos. É ouvir a todos exatamente para dar a falsa impressão de que todos foram ouvidos, e, assim, obter dialeticamente a participação e o inconformismo.

De onde o Estado deriva essa forma de administrar conflitos? Do modo de produção capitalista. No capitalismo as contradições do sistema econômico são absorvidas como pressupostos para manter o próprio sistema. A pobreza, o ecologismo, as questões de gênero, tudo vira nichos de mercado e o próprio mercado se encarrega de propor toda uma gama de possibilidades e soluções cujo primor teórico é na verdade este: criar novas mercadorias para novos mercados.

No Acre esse processo está personificado no Plano de Desenvolvimento Sustentável do Estado (PDS, sigla interessante), cuja resposta para os desafios ambientais surgidos pela industrialização dos espaços é a intensificação do empreendedorismo... verde. Subjacente ao PDS elaborado pela velha "esquerda" acreana está a idéia de que o próprio modo de produção capitalista se encarrega de resolver problemas sociais - problemas que estão na base da própria reprodução do capitalismo!

Uma análise rasa diria que essa claudicação seria o resultado coerente do enorme esquema de recompensas psíquicas geradas pela ampliação do consumo de marcas, o consumo de status, o consumo de poder em geral, que à medida em que foram assimilados socialmente produziram uma política manipuladora, dúbia, repleta de sutilezas e jogos de submissão intelectual.

No entanto, o esquema de recompensas psíquicas geradas na mesma medida do reconhecimento social de cada indivíduo serve também para alimentar a própria identidade da sociedade. Nessa operação a sociedade inteira torna-se portadora de uma certa liberdade, de uma certa inclusão, de uma certa sistematização da vida que aparece no senso comum como a realização final do engenho humano.

É por essa relação dialética (do indivíduo, para si mesmo, e do conjunto de indivíduos, para a sociedade) que cada indivíduo aceita passivamente viver não a sua própria vida, mas a vida que as corporações de mercado planejam para ele. Nesse processo a ética do consumo opera em todos - Estados e indivíduos - simultaneamente.

Ou seja: assim como em nossa análise sobre o Estado, no capitalismo investe-se na forma para se obter o máximo de eficiência nos conteúdos. No Estado e no capitalismo os conteúdos se apresentam como ideologicamente neutros (o conceito de impessoalidade administrativa, no caso do Estado, e a mão invisível do mercado, no caso do capitalismo), mas as possibilidades de escolha são todas condicionadas a um único pressuposto: a manutenção da própria forma (governabilidade, no caso do Estado, e consumo de marcas, no capitalismo).

Os valores do modo de produção capitalista são os mesmos que perpassam as estruturas e formas da burocracia estatal.

Como trata-se de uma relação dialética, não é correto dizer que o capitalismo apropriou-se do Estado. É correto dizer, sim, que o Estado organiza-se de forma que os cidadãos percebam, nos esquemas de moral burgueses, uma ética universal - a quintessência da evolução do psiquismo humano.

Eis aí o cerne do problema, a razão que torna o Estado contemporâneo um Estado de classe.

Ou um Estado com lado, como queiram.

Como poderemos redefinir, com liberdade de deliberação, qualquer mudança do Estado ou dos indivíduos se o próprio conceito daquilo que é desejável, correto e ético é predefinido pelo mercado por meio de uma poderosa rede de compensações psíquicas por meio da política (e vice-versa)?

Da mesma forma, como o Estado poderá se reelaborar e dialogar com os cidadãos se o seu pressuposto de desenvolvimento se baseia em, por um lado, apostar nas liberdades dadas pelo capitalismo (que geram miséria na mesma medida em que concentram riquezas) e por outro ignorar ou marginalizar solenemente as tentativas de empoderamento dos espaços do protagonismo público, como no caso do orçamento?

Compreende-se, a essas alturas, o motivo da nomeação de agentes do governo nos conselhos populares. Se o objetivo é obter o máximo de eficácia da forma pelas transações dos conteúdos, nada melhor que nomear pessoas de confiança do Estado para “deliberar” sobre os interesses populares, nas instituições populares. Assim se consegue, ao mesmo tempo, jogar entre as oposições ideológicas e também reduzi-las, maximizando a eliminação das prioridades populares na condução orçamentária. Em suma: o Estado ganha tempo. Não se pode deliberar, argumentará mais tarde, sobre propostas que não foram apresentadas... (!)

Não é isso o que ocorria nas antigas reuniões do Orçamento Participativo?

Não é isso o que se ouve quando alguém reclama do "contingenciamento" de recursos para projetos de interesse público?


É no mínimo curioso nos depararmos com a defesa pueril, intransigente, de um Estado projetado para não atender aos interesses de toda a população, como reivindica a sociedade burguesa, ostentando - impunemente - o seu mito do laissez-faire.

Curiosamente, é a prática do Estado contemporâneo, e não a sua fundamentação teórica, a responsável pela figura do "cidadão marginal", tão abundante hoje nos Gazeta Alertas da vida.

Essa figura é inexistente nos pais do Estado moderno (de Aristóteles a Thomas Hobbes, se preferirmos propositalmente excetuar Rousseau).

As Constituições modernas, a norte-americana incluída, também não citam sequer de passagem essa massa de excluídos e - necessariamente - ignorados pelo Estado, porque são uma composição necessária à vida civil.


Por outro lado, o estatuto da cidadania só é permitido ao cidadão que se sobrepõe aos demais, violentando o conceito fundamental da democracia: a igualdade de direitos.

É por isso que, ao optar pelo modo de produção burguês, o Estado doou ao capitalismo a sua soberania.

O Estado, o Estado clássico, morreu.

Para nós, resta a luta de classes.

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