quarta-feira, 30 de junho de 2010

GRAMÁTICA E PODER

Por: Monteiro Lobato, 1922.


- Pilhei a senhora num erro! - gritou Narizinho. A senhora disse: "deixe estar que já te curo!" Começou com Você e acabou com o Tu, coisa que os gramáticos não admitem. O "te" é do "Tu", não é do "Você"...

- E como queria que eu dissesse, minha filha?

- Para estar bem com a gramática, a senhora devia dizer: "Deixa estar que eu já te curo."

- Muito bem. Gramaticalmente é assim, mas na prática não é. Quando falamos naturalmente, o que nos sai da boca é ora o você, ora o tu - e as frases ficam muito mais jeitozinhas quando há essa combinação do você e do tu. Não acha?

- Acho, sim, vovó, e é como falo. Mas a gramática...

- A gramática, minha filha, é uma criada da língua e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo - e a gramática o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar. Quem manda é o uso geral e não a gramática. Se todos nós começarmos a usar o tu e o você misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer...

- Eu sei o que é que ela tem a fazer, vovó! - gritou Pedrinho. É pôr o rabo entre as pernas e murchar as orelhas...

Dona Benta aprovou.


Mais sobre o assunto aqui.

terça-feira, 29 de junho de 2010

DEMOCRACIA

Está lá, no 1º artigo da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo”. Significa, entre outros pormenores, que todas as representações do Poder Público têm como origem o corpo de cidadãos.


Logo, uma democracia se caracteriza quando o poder, o poder decisório, de governar a vida social, pertence aos cidadãos (e não ao rei, como ocorria nas monarquias absolutistas).


Se é assim, por que os indivíduos (cidadãos) não governam o Estado?


Os indivíduos não governam porque votam.


O voto é uma alienação do poder. Ao votar o cidadão abre mão do seu direito de governar o Estado, nomeando em seu lugar um ou mais representantes. Esses representantes são os políticos: vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores e o presidente da República.


Por isso votar tornou-se tão importante em nosso regime político. O voto é antes de tudo um ato de transferência: o eleito ganha o poder de representar não só as pessoas de quem obteve votos, mas toda a sociedade.


Isso é muito grave, porque coloca para a democracia um desafio: o poder do povo (demokratía) é realmente possível quando se restringe o poder a um grupo de pessoas? Ou melhor: o povo realmente governa o Estado ao transferir o seu poder?


Questões geralmente abordadas na imprensa, como a importância dos partidos, das oposições, da alternância de poder etc parecem querer fazer crer que sim. No entanto, esquece-se que tais exigências devem-se ao caráter representativo da democracia, não à democracia propriamente dita. Ou melhor: o fato da democracia ser representativa, com voto e transferência de poder, é que impõe complementos como partidos, oposições etc.


Na essência, uma democracia subentende uma funcionalidade ainda melhor. Como o exercício do poder é prerrogativa dos cidadãos, ao invés de restringir-se a uma elite “profissional” (políticos e seres do tipo), há não só alternância no debate como ainda os consensos sobre a vida pública surgem do próprio debate. Em um ambiente democrático, uma vez que o poder é do povo, os próprios cidadãos são construtores sociais. Todos gerenciam a vida social que, por sua vez, constrói a política.


Há então problemas mais profundos em nosso regime do que tentam nos fazer crer. O principal é a clara anulação da democracia pela representatividade. Outro, não menos grave, é a transformação bizarra da democracia em "coisas de autoridades". E não pára aí. Como suas carreiras dependem da continuidade desses problemas, os políticos, e também a imprensa, tendem a apresentar a representatividade como a essência da democracia, não como o seu substitutivo.


Logo, ao invés de apresentar programas de governo como se fossem currículos em busca de empregos, oposição e situação deveriam apresentar ao povo soluções efetivas para tornar democrático o atual regime representativo. Isso que temos hoje não apenas não resolve as enormes contradições sociais como precisa delas para fazer marketing eleitoral. Ou seja: nosso regime, que se democrático seria exercido de forma a transformar o social em corpo político, alimenta-se exatamente dos "problemas sociais" surgidos da ausência de democracia.


Nosso regime justifica a sua existência pela existência da miséria, quando a miséria é que é o resultado e o pressuposto da sua existência.


Daí entende-se, por exemplo, a grita da imprensa por "planos de governo" para os candidatos: como é na representação que reside o poder, torna-se mister apresentar propostas convincentes para gerir as contradições sociais.


Ora, se são as contradições que engendram e alimentam o sistema político, que proposta política poderá resolver tal imbróglio?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A TESE DE IVAN KARAMAZOV

Por: Antonio Cicero


Volta e meia alguém traz novamente à tona a famosa tese de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Acho que muita gente acredita piamente nela e atribui à irreligiosidade da população a constante e inquietante alta dos índices de criminalidade. Será talvez com a intenção de baixar esses índices que os donos ou editores das revistas brasileiras de circulação nacional raramente deixam passar uma semana sem que, ao menos numa das suas revistas, façam propaganda, numa reportagem de capa, da fé e da religiosidade dos brasileiros.

Ora, a tese do personagem de Ivan não resiste a um simples experimento de pensamento. Suponha que me apareça Deus e me ordene matar o meu filho (ou mãe, ou pai, ou irmão, ou amante, ou amigo). Que faria eu? Ponha-se o leitor na minha pele. Não tenho dúvida de que a minha primeira reação - a primeira reação de qualquer pessoa que não tivesse perdido o juízo - seria duvidar do que parecia estar vendo e ouvindo. Eu me beliscaria, para saber se não estava sonhando; suspeitaria estar tendo um surto de loucura, um delírio etc.

Aquilo simplesmente não poderia estar acontecendo. E não poderia estar acontecendo por duas razões: primeiro, porque Deus não costuma aparecer, pelo menos hoje em dia. Quando alguém diz que conversou com Deus -ainda que quem o diga seja o presidente dos Estados Unidos-, suspeita-se imediatamente da sua sanidade mental. De todo modo, eu não obedeceria.

Mas a segunda razão é ainda mais séria. É que, se isso estivesse realmente acontecendo, então Deus me estaria mandando fazer uma coisa má: uma coisa inteiramente, indiscutivelmente, inapelavelmente errada. Ora, não posso contemplar tal hipótese. Logo, isso não poderia estar acontecendo. Eu pensaria antes que, ou não havia ninguém ali, e eu estava simplesmente a delirar, ou havia alguém de fato ali, mas se tratava de um impostor -talvez até de um demônio-, mas não de Deus, pois seria impensável que Deus me mandasse fazer uma coisa errada: e que coisa poderia ser mais errada do que aquela? Em suma, eu não obedeceria.

Mas levemos a coisa ainda mais longe. Suponhamos que, por alguma razão inconcebível, fosse incontornável a evidência de que ali se encontrava Deus. Ouso dizer que, ainda assim, eu não mataria meu filho ou amigo: eu não mataria sequer um estranho. Por quê? Porque seria errado. E seria errado, não por causa dos mandamentos que o próprio Deus decretara, uma vez que, naquele instante, Ele mesmo os estaria revogando, mas simplesmente porque, independentemente de qualquer mandamento, é errado matar uma pessoa. É, portanto, errado matar uma pessoa, ainda que Deus não exista. Logo, ao contrário do que afirma a tese do personagem de Dostoiévski, nem tudo é permitido, ainda que Deus não exista.

O leitor terá sem dúvida lembrado que, na Bíblia (Gn 22), Abraão se encontrou na situação em que me imaginei no experimento de pensamento. Com efeito, Deus pôs Abraão à prova, ordenando-lhe que matasse o seu filho primogênito. Ao contrário de mim (e do leitor que se pôs na minha pele), Abraão se dispôs a obedecer e, quando já havia pegado a faca para sacrificar seu filho, foi impedido por um anjo, enviado por Deus.

Como se sabe, foi sobre esse episódio que Kierkegaard escreveu as páginas impressionantes de "Temor e Tremor". Nelas, ele mostra que, do ponto de vista puramente ético, não se justificaria a prontidão de Abraão. Só a fé -superior, segundo Kierkegaard, à ética, por constituir uma relação individual e absoluta com Deus- justifica a atitude de Abraão. Desse modo, graças à religião, a esfera da ética é relativizada pela da fé.

Sendo assim, devemos inverter a tese de Ivan Karamazov: não só não é verdade que, se Deus não existe, tudo é permitido -já que, como vimos, não é permitido matar-, mas, ao contrário, é se Deus existir que tudo é permitido.

Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar e, no limite, negar a ética. Isso lembra as palavras do físico norte-americano Steven Weinberg, detentor do Prêmio Nobel de Física: "Com ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal; mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião".

sexta-feira, 25 de junho de 2010

OLIGARQUIA, MONARQUIA, TEOCRACIA

No Acre se pratica antipolítica.

De 1904 a 1961 o governo foi exercido por interventores, a maioria militares, nomeados pelo governo federal. Em 1962 chega ao poder o primeiro governador eleito, o petebista José Augusto de Araújo. Não dura dois anos. O golpe de 64 derruba ele e todos os governadores que ascenderam ao cargo por voto direto.

Somente em 1982, com o Acre em seu 78º ano de idade, os cidadãos elegem o primeiro governador que concluiria o próprio mandato: Nabor Teles da Rocha Junior.

Ou seja, de 1904 a 1981 o Estado forjou uma consciência política ao arrepio das tradições democrático-representativas. Mesmo as eleições de José Augusto e Nabor Júnior foram conduzidas por legislações eleitorais draconianas que inviabilizavam o direito ao voto livre (aliás, vale dizer, ainda hoje o voto não é livre no Brasil).

Em 2010 temos mais evidências do legado cedido por esse passado autoritário. O primeiro é Rodrigo Pinto, cuja candidatura ao governo do Estado, felizmente gongada por sua própria sigla (PMDB), fundava todo o seu programa político em um só argumento: ser filho de seu pai, o ex-governador Edmundo Pinto de Almeida Neto.

O argumento segundo o qual alguém deve ser eleito por ser filho do pai lembra as disputas pelo direito à sucessão nas monarquias medievais. Contra esse argumento pré-político, absolutista, bateram-se socialistas, republicanos, iluministas em geral: o poder passado pelo sangue não é só antipolítica, é um dogma. Daí porque ele só tem sentido em monarquias, dominadas por justificativas metafísicas para o poder do rei.

Nesta sexta-feira surgiu uma segunda evidência, ainda mais forte, desse legado: o argumento que cimenta a candidatura do apóstolo José Ildson ao cargo de vice-governador na chapa de Tião Bocalom (PSDB):

"Já fui contrário à mistura da política com religião. Mas observando algumas coisas que considero necessárias dentro de uma sociedade mudei meu ponto de vista. Trabalho num projeto chamado Transformação Mundo onde acompanhamos mais de 700 comunidades em vários países. Queremos usar esse critério de transformação social aqui também aqui na nossa cidade", disse o apóstolo ao repórter Nelson Liano Jr, da Gazeta do Acre (clique aqui para ler a entrevista inteira).

Ou seja, temos um candidato a vice-governador cuja maior contribuição para a vida coletiva é a sua condição privada: o fato de ser um homem de religião.

É um argumento do mesmo naipe do de Rodrigo Pinto. José Ildson não é inapto para o cargo de vice-governador por ser religioso. É antidemocrático pensar nesses termos. A compreensão da democracia como um processo de conversão a um "plano maior", no qual Deus redime os pecadores e instaura uma ordem social dividida entre filhos e ímpios, é que invalida não só a democracia, mas toda a política.

Pode parecer um papo muito filosófico, mas o efeito concreto desta inversão surge e afeta a vida de todos. Questões fundamentais, como aborto, eutanásia, pena de morte, anencefalia, células-tronco, evolução das espécies e outras, são historicamente analisadas pelo cristão-político sob o prisma da fé, não segundo o critério da utilidade social (que seria o critério democrático).

Já escrevi sobre isso aqui, mas não custa repetir. Religiões, especialmente as salvacionistas, não podem ser alçadas à vida social porque não a compreendem. Para o cristão não há ordem social "neutra": o mundo, mesmo o mundo político, é pecador ao não converter-se ao Senhor Jesus e esta condição pecadora é a responsável por toda sorte de "iniquidades", cabendo ao religioso, como filho e herdeiro de Jesus, impor ao mundo a única moral capaz de salvá-lo do pecado: a moral da conversão, ou seja, a própria moral religiosa.

Esta concepção aparece claramente nas declarações do candidato. Sem entrelinhas.

O defeito desse arranjo é que ele impõe uma visão particular a todo o processo social. Em nome da Moral Correta, impõe a conversão. Em nome do fim da iniquidade, exige a submissão de todo o tecido social a uma Ordem, sendo esta pertencente uma visão religiosa, por sua vez ligada a uma instituição eclesiástica.

Esta visão inescapável (totalizante, se quiserem) possui um nome pouco conhecido nas crônicas de nossos tempos. Chama-se Teocracia, que na minha opinião (e na de muita gente mais séria que eu) é o risco mais latente em nossos dias. Não por acaso, em sociedades mais longevas que a nossa, e igualmente sem tradição de desenvolvimento democrático-representativo, é precisamente este o regime político. Na África, no Oriente Médio, na Ásia e mesmo dentro dos Estados Unidos (como pequenas comunidades independentes), esta é a acepção política mais comum.

Com todo o respeito aos cristãos e seu direito à liberdade de culto: democracia é espaço da deliberação coletiva. Religião é o espaço da fé individual. A primeira pode auxiliar e garantir os direitos da segunda (os direitos de expressão, de organização, de liberdade etc), mas a segunda, por ser incapaz de conceber uma ordem social inteira fora da polarização Filhos X Ímpios, não pode administrá-la sem enormes riscos à democracia e, no limite, a si mesma.

Tendo em vista o nosso triste legado, descristianizar a política acreana é o primeiro passo para desfascistizar a sociedade. O primeiro de uma longa, longa caminhada.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O DIREITO À DÚVIDA

Causou furor uma postagem no Twitter inicialmente atribuída à candidata à presidência da República pelo PV, Marina Silva, sobre a morte do escritor José Saramago.

"Como podemos lamentar a morte de uma pessoa que blasfemou contra Deus a vida toda?", dizia o texto.


Não entrarei no mérito da confusão gerada pelo episódio, até porque a equipe de campanha da candidata já se desdobrou - confira aqui - para mostrar que tratou-se de um equívoco.

O que me chamou a atenção foi um problema filosófico esquecido no debate e que consiste no seguinte: qual é o nascedouro da concepção segundo a qual é possível contrapor o direito à fé pessoal ao debate crítico? Em outras palavras: como se pode conceber a validade do argumento que esgrima um valor pessoal - no caso, a fé - como critério para eliminar possibilidades de crítica?

Este foi, naturalmente, o argumento da "leitora" (e provavelmente, eleitora) de Marina Silva e que se inseriu no debate de forma curiosa: como a fé é um valor baseado na subjetividade da crença pessoal, a discussão que põe na berlinda os elementos constituintes desta fé (sua razão, sua racionalidade etc) é imediatamente tomada como um ataque à própria fé - daí a expressão "blasfêmia" usada no debate.

Punido com a morte, o crime de blasfêmia ocorria em várias legislações da Europa Medieval (inclusive após a Inquisição). Nos primórdios dos Estados Unidos, o
crime de blasfêmia proporcionou importantes episódios para juristas e estudiosos do Direito, sendo o mais famoso o que se tornou conhecido como o julgamento das bruxas de Salém.

Esta questão é importante porque trata do limite do debate contemporâneo entre dois preciosos direitos das democracias representativas: liberdade de expressão e liberdade de culto.

A chave do enigma está na natureza dessas liberdades. O argumento religioso, firmemente ancorado nas subjetividades da tradição e da interpretação, necessita de garantias legais para afirmar - sem que ninguém seja preso por isso - o que confere legitimidade ao seus pressupostos: a realidade, toda ela, seria a manifestação de um plano cuja natureza é divina. Logo, a realidade tal qual conhecemos seria não só enganosa (motivo pelo qual deveríamos desconfiar das certezas do mundo) como estaria imersa em uma dimensão inacessível ao homem devido ao problema do pecado - o que reforça, por sua vez, a necessidade de existência de uma divindade para governar um universo decaído, desfigurado.

O argumento religioso, portanto, é autolegitimado. Ele apresenta as condições, pela fé, da necessidade de existência da fé, o que leva automaticamente à necessidade de existência de um Deus.

O mesmo não ocorre com o argumento filosófico, já que é a filosofia, a "mãe de todas as ciências", a incumbida de lidar com questões dessa estirpe. Para a filosofia, a discussão sobre a religião possui a mesma validade metateórica de todas as discussões (sobre ética, razão, verdade etc), devendo apresentar, para ser aceita como argumento válido, as fontes racionais, os métodos de investigação do seu excurso cognitivo.

Mas a religião, fundada numa concepção "revelada" do mundo, não admite que se discuta a razão dos seus métodos, porque não a possui. É precisamente por não possui-la, uma vez que o significado da religião reside "na consciência do crente", que toda discussão sobre a religião é também um ataque ao direito de exercer a religião. O questionamento sobre a razão religiosa é tomado pelo religioso como um ataque ao seu direito de crer.

É daí que surge o argumento da "blasfêmia", por exemplo. É daí que surge também a resposta ao problema do embate entres liberdades de culto e de expressão: se a democracia é o espaço da construção da vida social, dos direitos coletivos e individuais e das possibilidades de rearranjo dos mecanismos de poder, como uma concepção "revelada" (e portanto, restrita, de interpretação particular) pode ser usada para interpretar e conduzir toda a dinâmica da vida social?

É evidente que esse arranjo não é possível. Não porque são concepções diferentes, mas porque são contrárias: a concepção religiosa da vida social só se concretizaria se planejasse recriar a sociedade à sua "imagem e semelhança". Ou seja: só se concretizaria se transformasse a política na realização do plano de Deus para o homem (que há um só Deus e um só Senhor, que a salvação só se dá mediante a conversão ao sacrifício de Cristo e que, por fim, este mesmo sacrifício dividiu a humanidade em dois grupos: filhos e condenados).

Ou seja, devido à sua própria natureza (da qual não abre mão para manter-se como tal) a concepção religiosa do mundo só se realizaria na política eliminando a democracia.

Mas, ainda bem, antes seria necessário vencer uma corrida à Presidência da República...

sábado, 19 de junho de 2010

JANELA DA ALMA





Da filósofa Marilena Chauí, em seu Convite à Filosofia:

"Frequentemente, não notamos a origem cultural dos valores morais, do senso moral e da consciência moral porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Por que isso acontece? Porque, para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los, isto é, a fazer com que sejam seguidos e respeitados como se fossem uma segunda natureza. A naturalização da existência moral esconde, portanto, a essência da moral, ou seja, que ela é essencialmente uma criação histórico-cultural, algo que depende de decisões e ações humanas."

Para reconhecermos isso, basta, aliás, considerarmos a própria palavra moral: ela vem de uma palavra latina, mos, moris, que quer dizer "o costume", e no plural, mores, significa os hábitos de uma cultura ou de comportamento instituídos por uma sociedade em condições históricas determinadas. Da mesma maneira, a palavra ética vem de duas palavras gregas: éthos, que significa 'o caráter de alguém', e êthos, que significa 'o conjunto de costumes instituídos por uma sociedade para formar, regular e controlar a conduta de seus membros'".

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O MUNDO MAIS BURRO

O escritor português e Prêmio Nobel de Literatura José Saramago morreu nesta sexta-feira em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. Segundo a família, a morte ocorreu por volta das 13h no horário local (8h de Brasília), quando o escritor estava em casa, acompanhado da mulher, Pilar del Río.


Leia mais, clique aqui.



segunda-feira, 14 de junho de 2010

A CAPRICHOSA ARTE DE DESEMPREGAR

O presidente da Federação das Indústrias do Estado do Acre (FIEAC), João Francisco Salomão, publicou no último dia 7 (sábado) um artigo intitulado “O pecado original de empregar”, que todos deveriam ler com atenção pela competência com que defende a perspectiva do empresariado acreano. Salomão segue a cartilha nacional definida por sua classe, a classe dos patrões, para apresentar uma agenda local nos jornais de maior circulação do Estado.


No mesmo estilo dos periódicos veiculados por associações patronais, sempre ciosas na difusão de idéias importantes para si mesmas, o texto levou à imprensa diária bordões próprios daqueles panfletos: o emprego prejudica a empresa, inviabiliza a atividade produtiva! Abaixo os impostos! Como sempre ocorre em períodos eleitorais, os empresários acentuam as suas pautas que são apresentadas à sociedade como constatações gerais da própria sociedade, e não deles mesmos.


Mas os fatos que embasam qualquer pleito podem ser analisados, discutidos, e isso mostra até onde servem para sustentar reivindicações.


Assim sendo, vamos aos fatos!


No primeiro parágrafo o autor argumenta que a “contratação de um funcionário com carteira assinada” exige do empregador o pagamento de “67,53% dos vencimentos”, que seriam “referentes aos encargos trabalhistas e previdenciários sobre o salário”.


Pois não exige.


Primeiro porque parte daquilo que o próprio texto denomina “encargos e tributos” é descontada direta e integralmente dos salários mensais dos trabalhadores – o INSS, por exemplo. Aliás, no tocante à Previdência, o trabalhador não pode sacar a própria contribuição e renegociar depois. Mesmo assim esse recolhimento tem uma função social inegável, pois paga as aposentadorias de quem trabalhou a vida inteira, paga os salários de quem adoeceu produzindo riquezas para os empresários, paga os afastamentos temporários por doenças, acidentes e outros motivos. O INSS, descontado dos salários brutos (e não das empresas, como o texto afirma), paga a assistência à saúde dos trabalhadores brasileiros garantindo corpos sadios para o desgaste no processo de produzir patrimônios privados.


Um ponto curioso da argumentação é o que Salomão define como “INSS a maior”. Sabe-se que a alíquota máxima de desconto para o INSS, calculada sobre o salário bruto é de 11%. O “INSS a maior” configura-se nos casos em que são recolhidos percentuais acima disso, mas atenção: o INSS devolve a diferença recolhida além do teto (ou, “a maior”).


O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), por sua vez, foi uma exigência do próprio empresariado organizado e fortalecido pela Ditadura Militar de 1964, no contexto de repressão da liberdade de organização e expressão da cidadania. Em 1966 os empresários impuseram várias mudanças na legislação trabalhista que anularam a estabilidade empregatícia após 10 anos de trabalho. Em troca eles – os empresários – criaram o FGTS.


É por esta razão que o trabalhador não tem acesso a esse dinheiro imediatamente (a não ser na demissão). Os patrões, ao inventar o FGTS, impuseram regras para acessá-lo: somente quando os trabalhadores fossem demitidos ou por morte. Os militares criaram então o Banco Nacional de Habitação (BNH), que concentrava o manuseio do FGTS e financiava a construção de casas próprias para os trabalhadores de menor salário.


Quem construía essas casas? Empresas de construção civil, empreiteiras, escritórios de engenharia e arquitetura, lojas de materiais de construção – ou seja, o grosso de todo o “empreendedorismo” que “desbravou” o Acre a partir dos anos 60. A profusão dessas empresas na zona urbana rio-branquense, ao longo dos anos 60 a 80, foi um espetáculo curioso para olhos leigos. Mas eis aí a explicação.


O FGTS não só financiava grande parte desses negócios como ainda garantia o mercado de toda a cadeia produtiva do Acre pós-borracha: cimento, tijolo, telha, areia, barro, materiais elétricos etc. Isto sem falar no efeito amortecedor das crises, pois empregava trabalhadores de menor qualificação expulsos dos seringais pelo crescimento econômico da Ditadura Militar.


Na década de 90 o FGTS financiou o ainda o Fundo de Assistência ao Trabalhador (FAT), disputado como um butim pelos ggrupos financeiros que buscavam incorporar aos seus patrimônios os encargos e juros pagos pelos trabalhadores nas numerosas parcelas da casa própria. Os que conseguiram, cresceram, expandiram atividades e são hoje os parceiros do nosso processo de “desenvolvimento sustentável”.


Aqui e no resto do país, banqueiros, financistas, industriais, construtores e comerciantes em geral organizam parte de seus negócios contando com essa fonte de apropriação privada. Aliás, haveria uma comoção nacional se ganhasse força a idéia de distribuir todo o FGTS já recolhido, acrescido da incorporação financeira, para todos os trabalhadores credores. É por isso – atenção, diretores da FIEAC – que o fundo não acaba!


Já os salários, férias, 13º, aposentadoria, jornada de trabalho, descanso semanal remunerado e outros, são direitos confirmados pela Constituição de 1988 como tentativas de construir uma sociedade democrática com partes desiguais. Sem contar que já é senso-comum muitos trabalhadores serem convidados a relativizar tais direitos em troca de “vestir a camisa da empresa”, “mostrar serviço” e coisas do tipo.


Ou não é assim que se “cresce na firma” hoje em dia?


É no mínimo curiosa a defesa da flexibilização dos direitos do trabalhador, quando se sabe que o crescimento da massa salarial permite a realização dos ciclos econômicos, a circulação das mercadorias e engorda os bolsos dos empresários. Portanto, a FIEAC deveria dizer em alto e bom som: Viva o emprego e os direitos sociais!


Mas isso não ocorrerá. Somente escamoteando esses dados é que os empresários conseguirão fazer a sociedade agradecer pelo emprego e aplaudir o fim dos “encargos trabalhistas e previdenciários” como se fosse uma conquista para todos. Mas não é. Vagas de emprego exigem qualificação, que pressupõe investimento que por sua vez requer alguma reserva salarial.


Como pode haver reserva, como existiria salário, entre desempregados sem qualificação? O que espera essa gente, a não ser subempregos subassalariados, temporários, "voluntários" etc? O artigo não responde.

Parodiando o texto “salomônico”, isto sim é um pecado. Só não é original.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

ALIENAÇÃO E FUTEBOL



Vi no programa Gazeta Alerta de hoje uma matéria curiosa em que uma educadora do Instituto São José comentava a "importância da educação sobre a Copa do Mundo" para compreender esse momento de "confraternização entre as nações".


Muito importante, de fato.


Como ao invés de "confraternização" interna temos violência e péssima qualidade da educação (como se vê), projetar nossas necessidades nos outros, ou seja, no exterior, ajudará muito - na eliminação da pobreza, por exemplo.


Transcrevo a seguir um texto da filósofa Marilena Chauí sobre a origem e a função social desse tipo de alienação criada pela Ditadura Militar e que se chama verde-amarelismo (clique para saber mais). É o tipo de mito perfeito para sociedades com larga tradição de paternalismo estatal:



Na escola, todos nós aprendemos o significado da bandeira brasileira: o retângulo verde simboliza nossas matas e riquezas florestais, o losango amarelo simboliza nosso ouro e nossas riquezas minerais, o círculo azul estrelado simboliza nosso céu, onde brilha o Cruzeiro do Sul, indicando que nascemos abençoados por Deus, e a faixa branca simboliza o que somos: um povo ordeiro em progresso. Sabemos por isso que o Brasil é um “gigante pela própria natureza”, que nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques têm mais flores e nossos mares são mais verdes. Aprendemos que por nossa terra passa o maior rio do mundo e existe a maior floresta tropical do planeta, que somos um país continental cortado pela linha do Equador e pelo trópico de Capricórnio, o que nos faz um país de contrastes regionais cuja riqueza natural e cultural é inigualável. Aprendemos que somos “um dom de Deus e da Natureza” porque nossa terra desconhece catástrofes naturais (ciclones, furacões, vulcões, desertos, nevascas, terremotos) e que aqui, “em se plantando, tudo dá”.


Sabemos todos que somos um povo novo, formado pela mistura de três raças valorosas: os corajosos índios, os estóicos negros e os bravos e sentimentais lusitanos. Quem de nós ignora que da mestiçagem nasceu o samba, no qual se exprimem a energia índia, o ritmo negro e a melancolia portuguesa? Quem não sabe que a mestiçagem é responsável por nossa ginga, inconfundível marca dos campeões mundiais de futebol? Há quem não saiba que, por sermos mestiços, desconhecemos preconceito de raça, cor, credo e classe? Afinal, Nossa Senhora, quando escolheu ser nossa padroeira, não apareceu negra?


Aprendemos também que nossa história foi escrita sem derramamento de sangue, com exceção de nosso Mártir da Independência, Tiradentes; que a grandeza do território foi um feito da bravura heróica do Bandeirante, da nobreza de caráter moral do Pacificador, Caxias, e da agudeza fina do Barão do Rio Branco; e que, forçados pelos inimigos a entrar em guerras, jamais passamos por derrotas militares. Somos um povo que atende ao chamamento do país e que diz ao Brasil: “Mas se ergues da justiça a clava forte/ Verás que um filho teu não foge à luta/ Nem teme quem te adora a própria morte”. Não tememos a guerra, mas desejamos a paz. Em suma, somos um povo bom, pacífico e ordeiro, convencido de que “não existe pecado abaixo do Equador”.


Duas pesquisas recentes de opinião, realizadas em 1995, uma delas pelo Instituto Vox Populi e a outra pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, indagaram se os entrevistados sentiam orgulho de ser brasileiros e quais os motivos para o orgulho. Enquanto quase 60% responderam afirmativamente, somente 4% disseram sentir vergonha do país. Quanto aos motivos de orgulho, foram enumerados, em ordem decrescente: a Natureza, o caráter do povo, as características do país, esportes/música/ carnaval. Quanto ao povo brasileiro, de quem os entrevistados se sentem orgulhosos, para 50% deles a imagem apresentava os seguintes traços, também em ordem decrescente: trabalhador/lutador, alegrei divertido, conformado/ solidário e sofredor.


Mesmo que não contássemos com pesquisas, cada um de nós experimenta no cotidiano a forte presença de uma representação homogênea que os brasileiros possuem do país e de si mesmos. Essa representação permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiros, e, em outros momentos, conceber a divisão social e a divisão política sob a forma dos amigos da nação e dos inimigos a combater, combate que engendrará ou conservará a unidade, a identidade e a indivisibilidade nacionais.


Eis por que algumas pesquisas de opinião indicam que uma parte da população atribui os males do país à colonização portuguesa, à presença dos negros ou dos asiáticos e, evidentemente, aos maus governos, traidores do povo e da pátria. Nada impede, porém, que em outras ocasiões o inimigo seja o “gringo” explorador ou alguma potência econômica estrangeira. A representação é suficientemente forte e fluida para receber essas alterações que não tocam em seu fundo.





Continue lendo aqui.

domingo, 6 de junho de 2010

EXEMPLO PARA O ACRE

Londres lança a moda dos cycle cafés

Do Estadão

Estacionar não leva mais do que dois minutos ao chegar de bicicleta ao Look Mum No Hands!, o mais novo cycle café de Londres, aberto há um mês. Encontrar um lugar para se sentar também não é motivo de estresse, pois o galpão de 1.500 metros quadrados em Old Street tem mesas compridas onde ninguém se importa em dividi-las.

A decoração, quase 100% de móveis e materiais recicláveis, traduz a filosofia do lugar, onde reaproveitar é um dos lemas. "Os copos são diferentes uns dos outros, pois compramos todos de segunda mão", diz Matthew Harper, dono do café.

A ideia era criar um espaço onde os aficionados pudessem fazer lanches enquanto vissem competições de ciclismo. Mas Harper resolveu agregar ao local uma oficina para pequenos reparos e alguns extras. "A gente promove workshops, vende livros e divulga eventos", diz. Enquanto espera pelo conserto da bike, o cliente pode escolher opções como saladas de quinua e torteletas de cogumelo. O público de cerca de 300 pessoas por dia superou as expectativas.

Na capital da Inglaterra, ter bicicleta nunca pareceu tão em alta quanto em 2010, declarado ano do ciclismo pelo prefeito Boris Johnson, que é sempre visto em passeios de bicicleta pela cidade. Segundo a prefeitura, meio milhão de viagens são feitas de bicicleta por dia e, até 2026, a estimativa é que o número de ciclistas aumente 400%.

De olho nesse público, os cycle cafés surgem em lugares inusitados, como o Container Café, situado em meio às construções do Parque Olímpico, em uma zona afastada do centro. Além de aluguéis de bikes nos fins de semana e dos serviços de oficina que custam entre 12 e 20 libras (R$ 32 e R$ 54), um dos atrativos é a vista privilegiada para o futuro Estádio da Olimpíada de 2012.


Meu comentário: Já pensou se esta moda pega na nossa cidade de 20,5 Km?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A CONTRADIÇÃO DA GREVE


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Incluídas as sinuosidades e curvas, Rio Branco mede 20,5 Km entre os bairros Vila Custódio Freire e Vila Acre. Nesse curto intervalo os trabalhadores de transporte público vêm fazendo uma greve que, no dizer da nossa imprensa, criou um "caos na capital".

Seu Luiz Isidoro, que mora no aqui no finalzinho da 6 de Agosto, ganha a vida limpando quintais. Nem ele, nem a mulher Sofia, nem mesmo os cinco filhos, todos estudantes de escola pública, usam ônibus. Não porque não querem, mas porque não podem. "Três e oitenta no orçamento pesa, né?", comentou comigo em certa ocasião. "Imagina sete e sessenta, se for voltar pra almoçar em casa? Dá pra comprar um quilo de costela e fazer um cozido!"

Luiz vai ao trabalho de bicicleta. É de magrela que todo dia ele deixa na escola a filha caçula, Iana, de seis anos e meio, e vai buscá-la no fim da manhã.

A bicicleta, qualquer rio-branquense atento sabe, é de longe o transporte "oficial" dos trabalhadores informais e mesmo formais da capital.

Faz todo o sentido, numa cidade de perímetro urbano minúsculo, cuja explosão da violência acompanha fielmente o crescimento dos bairros periféricos e o fenômeno da subproletarização trazido pelo "progresso".

Não vou aqui negar as dificuldades enfrentadas por vários trabalhadores para chegar ao trabalho nesta greve. Só quero lembrar onde estamos e como vivemos. Em Rio Branco, trabalhadores como Seu Luiz gastam R$ 91,2 ao mês com ônibus. Quem almoça em casa paga o dobro (e se a empresa não der o almoço a despesa multiplica-se duas, três vezes).

A questão fundamental é que transporte coletivo em Rio Branco, sem greve, é tão público quanto os meios de comunicação são sociais.

Transporte é privado, e foi com base na lei do lucro que as empresas de transporte, concessionárias deste serviço pela Prefeitura, recolheram os ônibus às garagens quando perceberam que os trabalhadores pretendiam circular de graça - daí porque "paralisou 100%" da frota de ônibus na última segunda.

Sendo assim, qual o sentido de bradar contra os grevistas? Não é mais fácil compreender a contradição trazida pela greve, que expôs a indústria do transporte "público" em uma cidade de 20,5 Km de extensão?

Por que tanto impasse?

Uma vez que sem greve o direito público ao transporte é questionável, na greve o interesse prevalecente é o dos trabalhadores no transporte. Está com eles a geração de riquezas que vai para os bolsos dos empresários (verdadeiro motivo de tanto chororô dos patrões). Está com eles, também, a possibilidade de melhorar o transporte “público” na plutocracia reinante em Rio Branco.