Está lá, no 1º artigo da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo”. Significa, entre outros pormenores, que todas as representações do Poder Público têm como origem o corpo de cidadãos.
Logo, uma democracia se caracteriza quando o poder, o poder decisório, de governar a vida social, pertence aos cidadãos (e não ao rei, como ocorria nas monarquias absolutistas).
Se é assim, por que os indivíduos (cidadãos) não governam o Estado?
Os indivíduos não governam porque votam.
O voto é uma alienação do poder. Ao votar o cidadão abre mão do seu direito de governar o Estado, nomeando em seu lugar um ou mais representantes. Esses representantes são os políticos: vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores e o presidente da República.
Por isso votar tornou-se tão importante em nosso regime político. O voto é antes de tudo um ato de transferência: o eleito ganha o poder de representar não só as pessoas de quem obteve votos, mas toda a sociedade.
Isso é muito grave, porque coloca para a democracia um desafio: o poder do povo (demokratía) é realmente possível quando se restringe o poder a um grupo de pessoas? Ou melhor: o povo realmente governa o Estado ao transferir o seu poder?
Questões geralmente abordadas na imprensa, como a importância dos partidos, das oposições, da alternância de poder etc parecem querer fazer crer que sim. No entanto, esquece-se que tais exigências devem-se ao caráter representativo da democracia, não à democracia propriamente dita. Ou melhor: o fato da democracia ser representativa, com voto e transferência de poder, é que impõe complementos como partidos, oposições etc.
Na essência, uma democracia subentende uma funcionalidade ainda melhor. Como o exercício do poder é prerrogativa dos cidadãos, ao invés de restringir-se a uma elite “profissional” (políticos e seres do tipo), há não só alternância no debate como ainda os consensos sobre a vida pública surgem do próprio debate. Em um ambiente democrático, uma vez que o poder é do povo, os próprios cidadãos são construtores sociais. Todos gerenciam a vida social que, por sua vez, constrói a política.
Há então problemas mais profundos em nosso regime do que tentam nos fazer crer. O principal é a clara anulação da democracia pela representatividade. Outro, não menos grave, é a transformação bizarra da democracia em "coisas de autoridades". E não pára aí. Como suas carreiras dependem da continuidade desses problemas, os políticos, e também a imprensa, tendem a apresentar a representatividade como a essência da democracia, não como o seu substitutivo.
Logo, ao invés de apresentar programas de governo como se fossem currículos em busca de empregos, oposição e situação deveriam apresentar ao povo soluções efetivas para tornar democrático o atual regime representativo. Isso que temos hoje não apenas não resolve as enormes contradições sociais como precisa delas para fazer marketing eleitoral. Ou seja: nosso regime, que se democrático seria exercido de forma a transformar o social em corpo político, alimenta-se exatamente dos "problemas sociais" surgidos da ausência de democracia.
Nosso regime justifica a sua existência pela existência da miséria, quando a miséria é que é o resultado e o pressuposto da sua existência.
Daí entende-se, por exemplo, a grita da imprensa por "planos de governo" para os candidatos: como é na representação que reside o poder, torna-se mister apresentar propostas convincentes para gerir as contradições sociais.
Ora, se são as contradições que engendram e alimentam o sistema político, que proposta política poderá resolver tal imbróglio?
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