O texto é um artigo do autor sobre seu livro, Poétique de la Relation (Paris: Gallimard, 1996), sem tradução no Brasil (há uma edição em Portugal pela Sextante). Publico porque considero os conceitos avanços notáveis sobre as noções de "tolerância", "diversidade" e outras.
Do exílio à errância, a medida comum é a raiz, que em ambos os casos falta. É por aí que há que começar12.
Gilles Deleuze e Félix Guattari criticaram os conceitos de raiz e, porventura, de enraizamento. A raiz é única, é uma origem que de tudo se apodera e que mata o que está à volta; opõem‑lhe o rizoma, que é uma raiz desmultiplicada, que se estende em rede pela terra ou no ar, sem que nenhuma origem intervenha como predador irremediável. O conceito de rizoma mantém, assim, a noção de enraizamento, mas recusa a ideia de uma raiz totalitária.
O pensamento do rizoma estaria na base daquilo a que chamo uma poética da Relação, segundo a qual toda a identidade se prolonga numa relação com o Outro.
Estes autores fazem um elogio do nomadismo, presumível libertador do ser, talvez por oposição à sedentariedade, cuja raiz intolerante fundaria a lei. Kant, no início da Crítica da razão pura, faz já corresponder os céticos aos nómadas, e diz também que de vez em quando «eles rompem com o laço social». Parece assim estabelecer uma correlação entre sedentarismo, verdade e sociedade, por um lado, e nomadismo, ceticismo e anarquismo, por outro. Esta aproximação a Kant sugere‑nos que o interesse do conceito de rizoma parece provir do seu anticonformismo, mas que daí não se poderia inferir uma função de subversão, uma capacidade do pensamento rizomático de abalar a ordem do mundo, pois assim regressaríamos à pretensão da ideologia que esta teoria pretende contestar3.
Mas não estará o nómada sobredeterminado pelas suas condições de existência? E o nomadismo por uma obediência a contingências constrangedoras, e não por um desejo de liberdade? É o caso do nomadismo circular: muda de direção à medida que partes do território ficam esgotadas, a sua função é garantir, através dessa circularidade, a sobrevivência de um grupo. Nomadismo dos povos que se deslocam nas florestas, das comunidades arawaks que navegavam de ilha em ilha nas Caraíbas, dos contratados agrícolas que peregrinam de quinta em quinta, da gente do circo que atua de terra em terra, todos eles movidos por um movimento determinado em que nem a audácia nem a agressão intervêm.
O nomadismo circular é uma forma não intolerante da sedentariedade impossível.
Oponhamos‑lhe o nomadismo invasor, o dos hunos, por exemplo, ou o dos Conquistadores, que tem como objetivo conquistar terras através do extermínio dos seus ocupantes. Este nomadismo não é prudente nem circular, não mede os seus efeitos, é um salto absoluto em frente: um nomadismo em flecha. Mas os descendentes dos hunos, dos vândalos ou dos visigodos, tal como os descendentes dos Conquistadores, que impunham os seus clãs, acabaram por se ir estabilizando, fundindo‑se nas suas conquistas. O nomadismo em flecha é um desejo devastador de sedentarismo4.
Nem num caso nem noutro, o nomadismo circular ou o nomadismo em flecha, se manifesta a raiz. Aquilo que «agarra» o invasor, antes de ser cativado pela sua conquista, é o em‑frente; e aliás também não poderia dizer‑se que a sedentariedade forçada constituiria o verdadeiro desenraizamento do nómada circular. Do mesmo modo, o sofrimento do exílio não pesa nesses casos, nem o gosto pela errância se acentua. A relação com a terra é demasiado imediata, ou predadora para que a preocupação de identidade (essa reivindicação ou esse conhecimento de uma linhagem inscrita num território) a ela esteja ligada. A identidade adquirir‑se‑a quando as comunidades tiverem tentado, através do mito ou da palavra revelada, legitimar o seu direito a essa posse de um território. Afirmação que pode surgir muito antes da sua resolução efetiva.
Daí às múltiplas formas da legitimidade, frequentemente e longamente contestada, que em seguida traçarão as dimensões feridas ou apaziguadoras do exílio ou da errância.
Na Antiguidade ocidental, o homem no exílio não se sente inferiorizado nem desapossado, porque não se sente oprimido pela falta – em relação a uma nação, que para ele ainda não existe. Parece até que uma experiência da viagem e do exílio tenha sido então considerada necessária à realização do ser, a acreditar nas biografias de inúmeros pensadores gregos, como Platão e Aristóteles. Platão será um dos primeiros a tentar fundar a legitimidade, não ainda – ou já não – da comunidade num território, mas da Cidade na racionalidade das suas leis. Num momento em que Atenas, a sua cidade, estava já ameaçada por uma desregulação «final»5.
Nessa época, a identificação faz‑se com uma cultura – que é concebida como civilização – e não ainda com uma nação6.
O Ocidente pré‑cristão partilha esta maneira de ver e de sentir com a América pre‑colombiana, com a África dos grandes conquistadores e com a maior parte dos países da Ásia. Foi contra a generalização (a pulsão de um identitário universal) promovida pelo Império Romano que primeiro se exerceram as ações sucessivas do nomadismo em flecha e da sedentarização. O particular resiste então ao universal generalizador, para em breve engendrar, em círculos concêntricos (províncias, depois nações), os particularismos.
A ideia de civilização ajudará pouco a pouco a manter juntos esses contrários, que inicialmente só se identificam por oposição ao Outro.
Na época dos nomadismos invasores, a paixão de se definir adquire a feição da aventura pessoal. Ao longo dos seus périplos, os conquistadores constituem impérios que se desmoronam com a sua morte. As suas capitais deslocam‑se com eles. «Roma não está em Roma, está sempre onde eu estou.» Não é a raiz que importa, mas sim o movimento. O pensamento da errância não se destaca, travado pela realidade insana desse nomadismo demasiado funcional, cujos fins nunca teria podido conhecer.
Centro e periferias equivalem‑se.
Os conquistadores são a raiz móvel e efémera dos seus povos.
É pois aí, no Ocidente, que o movimento se torna fixo e que as nações se pronunciam até se repercutirem no mundo. Essa fixação, esse enunciado e essa expansão requerem então que a ideia de raiz ganhe pouco a pouco esse sentido intolerante que Deleuze e Guattari certamente pretendiam recusar. Se regressamos a esse episódio ocidental, é precisamente porque ele proliferou pelo mundo.
O modelo propagou‑se.
A maior parte das nações que se libertaram do colonialismo tenderam a formar‑se em torno da ideia de poderio, pulsão totalitária da raiz única, e não de uma relação fundadora com o Outro. O pensamento cultural de si era dual, opondo o cidadão ao bárbaro. Não houve nada mais absolutamente oposto ao pensamento da errância do que esse período da história das humanidades em que as nações ocidentais se constituíram e que depois se repercutiram no mundo.
Esse pensamento da errância, que ia a contracorrente da expansão nacionalista, transforma‑se então «em» aventuras muito pessoais – tal como o aparecimento das nações fora precedido da deriva dos construtores de impérios. A errância do trovador, ou a de Rimbaud, não é ainda a vivência densa (opaca) do mundo, mas é já o desejo apaixonado de contrariar a raiz. Ao mesmo tempo, a realidade do exílio é sentida como uma falta (temporária), sendo interessante notar que ela dirá, antes de mais, respeito à língua. No Ocidente, as nações constituíram‑se sobre o modo da intransigência linguística, e o exilado confessa de bom grado que aquilo que mais o afeta é a impossibilidade de comunicar na sua língua. A raiz é monolingue. Com o trovador, com Rimbaud, a errância é vocação, que apenas se diz pelo desvio. É o apelo, e ainda não a plenitude, da Relação.
Contudo, e isso é um imenso paradoxo, os livros fundadores da comunidade, o Antigo Testamento, a Ilíada, a Odisseia, as Canções de Gesta, as Sagas, a Eneida ou as epopeias africanas eram livros de exílio e, muitas vezes, de errância. Essa literatura épica é espantosamente profética: diz a comunidade, mas através da relação do seu fracasso aparente ou, em todo o caso, da sua superação, e a errância, considerada como tentação (desejo de contrariar a raiz) e quase sempre sentida nos factos. Os livros coletivos do sagrado ou da historicidade contêm em si o exato contrário das suas turbulentas pretensões. Neles, a legitimidade da posse de um território, sempre mitigada pela relativização da própria noção de território. Livros do despertar para a consciência coletiva, eles introduzem assim a percentagem de mal‑estar e de angústia que permitem ao indivíduo reencontrar‑se, sempre que ele se torna um problema para si mesmo. A vitória dos gregos na Ilíada depende de um embuste, Ulisses, ao regressar da sua Odisseia, é apenas reconhecido pelo seu cão, o David do Antigo Testamento é desonrado pelo adultério e pelo homicídio, a Canção de Rolando é a crónica de uma derrota, as personagens das Sagas estão marcadas pelo signo de uma fatalidade incontornável, e assim por diante.
Esses livros fundam algo de muito distinto de uma certeza absoluta, dogmática ou totalitária (independentemente da utilização religiosa que deles será feita): são livros de errância, para além da procura ou do triunfo do enraizamento que o movimento da História exige.
Alguns desses livros são dedicados à suprema errância, como o Livro dos mortos egípcio. Precisamente aquilo cuja função é consagrar a comunidade intransigente, já transige, matizando, portanto, o triunfo comunitário em errâncias reveladoras 7.
Em L’intention poétique e Le discours antillais (de que a presente obra constitui um eco reformulado, ou a repetição em espiral), abordei esta dimensão de uma literatura épica, interrogando‑me se nos dias de hoje não nos seriam ainda necessárias obras fundadoras que se baseassem numa semelhante dialética do desvio: afirmando, por exemplo, o rigor político, mas também o rizoma da relação múltipla com o Outro, e fundando as razões de viver de qualquer comunidade numa forma moderna do sagrado, que seria, em suma, uma poética da Relação8.
Este movimento (entre outros, noutras regiões do mundo, que serão igualmente decisivos) levou, assim, do nomadismo primordial à sedentarização das nações ocidentais e depois à Descoberta e à Conquista que se cumpriram, até aos limites do místico, na Viagem.
Nesse percurso, a identidade, pelo menos no que toca a esses viajantes ocidentais que forneceram a massa dos descobridores e dos conquistadores, reforça‑se antes de mais de modo implícito («a minha raiz é a mais forte»), e em seguida é exportada explicitamente como valor («o ser vale pela sua raiz9»), obrigando os povos visitados ou conquistados à longa e dolorosa busca de uma identidade que deverá sobretudo opor‑se às desnaturações provocadas pelo conquistador. Variante trágica da procura de identidade.
Durante um período histórico de mais de dois séculos, a identidade afirmada dos povos terá de ser conquistada contra os processos de identificação ou de aniquilamento desencadeados por esses invasores. Se no Ocidente a nação é antes de mais um «contrário10», para os povos colonizados a identidade será, em primeiro lugar, um «oposto a», isto é, em princípio, uma limitação. O verdadeiro trabalho da descolonização terá sido superar esse limite.
A dualidade do pensamento de si (há o cidadão, e há o estrangeiro) repercute‑se na ideia que se tem do Outro (há o visitante e o visitado; aquele que parte e aquele que permanece; o conquistador e a sua conquista). O pensamento do Outro só deixará de ser dual no momento em que as diferenças forem reconhecidas. O pensamento do Outro «compreende», a partir de então, a multiplicidade, mas de uma maneira mecânica que cultiva ainda as subtis hierarquias do universal generalizante. Reconhecer as diferenças não obriga a envolver‑se na dialética da sua totalidade. No limite, «posso reconhecer a tua diferença e pensar que ela te prejudica.
Posso pensar que a minha força está na Viagem (faço a História) e que a tua diferença é imóvel e muda». Há um passo a dar antes de entrar verdadeiramente na dialética da totalidade. Parece aqui que, ao contrário da mecânica da Viagem, essa dialética é movida pelo pensamento da errância.
Se supusermos que a procura da totalidade, a partir desse contexto não universal das histórias do Ocidente, passou pelos seguintes estádios:
– pensamento do território e de si (ontológico, dual)
– pensamento da viagem e do outro (mecânico, múltiplo)
– pensamento da errância e da totalidade (relacional, dialético), teremos de convir que esse pensamento da errância se afasta implicitamente da desestruturação das compacticidades nacionais, há pouco triunfantes, e, simultaneamente, dos aparecimentos difíceis e incertos das novas formas de identidade que nos solicitam. Assim, o desenraizamento pode contribuir para a identidade e o exílio tornar‑se proveitoso, quando são vividos não como uma expansão de território (um nomadismo em flecha) mas como uma procura do Outro (por nomadismo circular). O imaginário da totalidade permite esses desvios, que afastam do totalitário.
A errância não provém de uma renúncia nem de uma frustração em relação a uma situação de origem que se tivesse deteriorado (desterritorializado) – não é um ato determinado de recusa, nem uma pulsão incontrolável de abandono. Por vezes, é abordando os problemas do Outro que nos encontramos a nós mesmos; as histórias contemporâneas fornecem‑nos alguns exemplos flagrantes disso: por exemplo, o trajeto de Frantz Fanon, da Martinica para a Argélia. É bem a imagem do rizoma, que nos faz reconhecer que a identidade não está só na raiz, mas também na Relação. É que o pensamento da errância é também pensamento do relativo, que é o substituído mas também o relatado. O pensamento da errância é uma poética, que subentende que a certo momento ela se diz.
O dito da errância é o da Relação.
Contrariamente ao nomadismo em flecha (descoberta ou conquista), contrariamente à situação de exílio, a errância comunica com a negação de todo o polo ou de toda a metrópole, estejam eles ligados ou não à ação conquistadora de um viajante. Não nos cansamos de repetir que o que este exportava em primeiro lugar era a sua língua. Por isso as línguas do Ocidente eram consideradas veiculares e faziam as vezes de metrópoles. Por oposição, o dito da Relação é multilingue. Além das imposições das potências económicas e das pressões culturais, ele opõe‑se em direito ao totalitarismo das intenções monolingues.
Poderá parecer, neste caso, que nos afastámos bastante dos sofrimentos e das preocupações daqueles que suportam a injustiça do mundo. A sua errância é, com efeito, imóvel. Não viveram o luxo do desenraizamento, melancólico e extrovertido. Não viajam. Mas para eles o saber da raiz passa agora a ser‑lhes dado pela intuição da Relação: é essa uma das constantes do nosso mundo. Viajar já não é o lugar de um poder, mas o momento de um prazer, se bem que privilegiado. A obsessão ontológica do conhecimento dá lugar à fruição de uma relação, de que o turismo é a forma elementar e, a maior parte das vezes, caricatural. Os que ficam sobressaltam‑se com essa paixão do mundo, comum a todos. Acontece‑lhes sofrer os tormentos do exílio interior.
Não falo daqueles que, no seu próprio país, suportam a opressão de um Outro, como é o caso dos negros da África do Sul. Porque neste caso a solução é visível, a resolução determinada; só a força se lhe opõe. Falo desse exílio interior que atinge os indivíduos, quando as soluções não são, ou não são ainda, no que toca às relações de uma comunidade com o seu meio, por ela globalmente consentidas. Essas soluções, esboçadas através de resoluções precárias, permanecem o apanágio de alguns, que assim são marginalizados.
O exílio interior é a viagem para fora dessa prisão. Introduz de forma imóvel e exacerbada o pensamento da errância. A maior parte das vezes, distrai‑se em compensações parciais de prazer, em que o indivíduo se consome. O exílio interior predispõe ao conforto das coisas, que não distrai da angústia.
Se o exílio pode pulverizar o sentido da identidade, o pensamento da errância, que é pensamento do relativo, quase sempre o reforça. Não é certo, pelo menos aos olhos de um observador, que a errância perseguida dos judeus tenha reforçado muito mais o seu sentido identitário do que a sua fixação em terra palestina. Os exílios dos judeus transformavam‑se em vocação de errância, por referência a uma terra ideal, cujo poder poderá ter sido delido pela terra concreta (o território) eleita e conquistada. Mas isto trata‑se tão‑só de conjeturas minhas. Porque se se pode comunicar no imaginário da errância, as experiências dos exílios são incomunicáveis.
O pensamento da errância não é nem apolítico nem antinómico de uma vontade de identidade que no fundo mais não é do que a procura de uma liberdade num determinado meio. Se ela contraria as intolerâncias territoriais, à predação da raiz única (que hoje torna tão difíceis os processos identitários), é porque, na poética da Relação, o errante, que já não é o viajante, nem o descobridor, nem o conquistador, procura conhecer a totalidade do mundo e sabe já que nunca conseguirá fazê‑lo – e que é aí que reside a beleza ameaçada do mundo.
O errante recusa o estatuto universal, generalizante, que reduzia o mundo a uma evidência transparente, atribuindo‑lhe um sentido e uma finalidade pressupostos. Mergulha nas opacidades da parte do mundo a que acede. A generalização é totalitária: elege, do mundo, um painel de ideias ou de factos que destaca e que tenta impor, fazendo viajar os modelos. O pensamento da errância concebe a totalidade, mas renuncia de bom grado à pretensão de a comandar ou de a possuir.
Os livros fundadores ensinam que a dimensão do sagrado nunca é mais do que o aprofundamento do mistério da raiz, matizado pelas variantes da errância. Na verdade, o pensamento da errância é postulação do sagrado que nunca se revela e que nunca se apaga. Lembremo‑nos que Platão, que conhecia o poder do Mito, desejara banir os poetas, impositores do obscuro, para longe da República. Desconfiara da palavra abissal. Não a encontraremos nós nos meandros imprevisíveis da Relação? Nada obriga a pensar que as humanidades não conseguirão transmutar, nesse pensamento da errância, as opacidades anteriormente enraizadoras do Mito e as claridades desmultiplicadas da filosofia política, conciliando Homero e Platão, Hegel e o griot africano.
Mas para isso haveria que adivinhar se, vindas de outras partes do mundo, e agindo ainda subterraneamente, outras suculências da Relação não poderão rasgar de súbito outras vias, contribuindo em breve para corrigir as exclusões etnocêntricas e simplificadoras que uma tal perspetiva terá podido suscitar.
Quanto ao domínio da literatura, duas criações contemporâneas fazem, quanto a mim, o jogo da errância e da Relação, sem que seja necessário que eu as isole num Panteão que elas recusariam.
A obra de certo modo teológica de William Faulkner. Tratar‑se‑ia aí de escavar as raízes de um lugar evidente, o sul dos Estados Unidos. Mas a raiz adquire a aparência de um rizoma, as certezas não estão fundadas, a relação é trágica. A disputa acerca da fonte, o enigma sagrado, mas agora inexprimível, do enraizamento, fazem desse universo de Faulkner um dos momentos palpitantes da moderna poética da Relação. Em tempos, lamentei que um tal universo não se tivesse expandido mais: nas Caraíbas, na América Latina. Mas essa reação provinha, porventura, do despeito inconsciente de quem se sentira excluído.
A obra errática de Saint‑John Perse em busca daquilo que se move, daquilo que tende ao absoluto11. Obra que convida à totalidade – até à exaltação irredutível de um universal que se esgota, de tanto ser dito.
(…)
- 1. Ao contrário das notas com asterisco, as notas com número estão agrupadas no final do livro.
- 2. O poeta Monchoachi organizou na cidade de Le Marin, no sul da Martinica, uma série de conferências sobre este tema da errância. Creio que fui um dos primeiros contactados para o abordar neste contexto. As Caraíbas são terra de enraizamento e de errância. Os exílios antilhenses testemunham‑no.
- 3. Kant, na Crítica da razão pura, apresenta deste modo o que diz sobre a Relação: A unidade incondicionada da relação isto é ela mesma, não enquanto inerente mas enquanto subsistente (Pléiade, vol. I, p. 1468) Quer esta relação contribua para a unidade sistemática dos fins (princípio moral) ou para a unidade dos conhecimentos (princípio arquitetónico), podemos reconhecer‑lhe aqui duas qualidades: antes de mais, que ela é o elo que garante a permanência do pensamento no indivíduo; em seguida, que ela faz parte da substância. Esta diferença que Kant parece estabelecer entre substância e subsistência é preciosa. Seja como for, a ideia de Relação não intervém nele enquanto abertura para a pluralidade, na medida em que ela seria totalidade. Para Kant, a pluralidade tem lugar no tempo, não no espaço. No espaço há existência, que parece não se diferenciar em si mesma.
- 4. Não nos deteremos aqui na ideia de que esta devastação tenha podido desencadear, em relação ao declínio do Império Romano, por exemplo, um retorno positivo da história e engendrar um negativo fecundante. Subentende‑se geralmente que o nomadismo em flecha dá origem a novas eras, enquanto o nomadismo circular permaneceria endógeno e sem devir. Trata‑se, pura e simplesmente, de legitimar o ato da conquista.
- 5. O Diálogo platónico substitui a função do Mito. Este funda a legitimidade da sua posse de um território, apoiando‑se quase sempre nos rigores não interrompidos de uma filiação. O Diálogo funda a justiça da Cidade sobre a revelação de uma razão que organiza as sucessões rigorosas da ordem política.
- 6. Através da noção ocidental de civilização, resume‑se o adquirido de uma sociedade, para o projetar, de imediato, num devir que é também e quase sempre uma expansão. Quando se diz civilização, torna‑se implícita a própria vontade de civilizar. Esta ideia está ligada à paixão de a impor ao Outro.
- 7. Hegel mostra, no Livro III da Estética, como as obras fundadoras de comunidades surgem, de modo espontâneo, no momento em que a consciência ingénua se assegura da sua legitimidade – sejamos claros: do seu direito à posse de um território. Nesse sentido, o pensamento épico está muito próximo do mito.
- 8. A superação necessária do mítico ou do épico foi dada na razão política que organiza a Cidade. A palavra épica é obscura e abissal; trata‑se de uma das condições da ingenuidade. A razão política é evidente. Superar pode ser a contradição.
- 9. Isto é, essencialmente pela língua, como já dissemos.
- 10. A ideia de civilização manterá juntos estes contrários: o universal generalizante será o princípio da sua ação no mundo, que realizará os conflitos de interesse numa conceção finalista da História.
- 11. A tensão poética para a totalidade em nada recusa as minúcias daqueles que se empenham num determinado lugar. Não há contradição na matéria, e Saint‑John Perse não ofusca Faulkner. É, antes, possível que o demasiado‑dito do universal, em que Saint‑John Perse tanto se arriscou, se disperse diante da Relação, sem a tocar verdadeiramente. O discurso generalizante nem sempre acompanha o grito dos povos nem dos países que se nomeiam. Aliás, o espírito universalizante apoia‑se de bom grado na tendência para negar histórias e tempos particulares – periféricos – (Borges ou Saint‑John Perse), e a aspiração a esse universal tende a negar espaços e devires singulares (V. S. Naipaul). Através de uma tensão da mesma natureza, muitos intelectuais do nosso país, em vez de arriscarem em obras as suas próprias imperfeições fecundas, deleitam‑se com as perfeições realizadas, e tranquilizadoras, do Outro. Chamam‑lhes universal. Sentem nisso um amargo e legítimo prazer, que os autoriza a elevarem‑se acima daquilo que poderiam ter podido partilhar em redor. O seu afastamento em relação a uma linha de medida comum leva‑os assim, tão calmamente, a ajuizar sobre aquilo que balbucia em sua volta. Mas essa serenidade é crispada.
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