sexta-feira, 12 de julho de 2013

AS PARALISAÇÕES E A LÓGICA HIGIENISTA

Charge: Maringoni
Manifestantes que fixaram cartazes e faixas em determinados locais pretensamente públicos nos últimos eventos em Rio Branco encontraram diversos níveis de resistência. A máquina pública ganhou vida autônoma. A burocracia, de meio administrativo, passou a ser um fim em si mesma e propôs a superação da própria atividade política. O sentido da res publica (lat. coisa pública), a exposição do conflito de idéias que integram a própria vida pública, foi substituído por um valor estético: a estética da ordem, na circunscrição dos espaços autorizados pela ordem. Tal inversão não é original nem surpreendente. É um sintoma do mal.

Em Arquitetura da Destruição (Undergångens arkitektur, 1989), o diretor sueco Peter Cohen tenta entender a irrefreável ascensão do fenômeno nazista. A velha e sombria pergunta que ainda hoje paira sobre a Alemanha - como foi possível? - é respondida de forma inovadora por Cohen, que foge das fórmulas prontas, como o poder econômico dos judeus na Europa (e o antissemitismo daí decorrente), o blecaute socioeconômico originado da primeira guerra mundial, a inteligência política de Adolf Hitler etc. No argumento de Arquitetura... todos esses fatores se entrelaçaram sobre um sólido fundamento: a higienização dos espaços públicos, doutrina nascida na própria Europa na primeira metade do século XIX.

A idéia de que espaços físicos organizados garantiriam a ordem política foi um dos subprodutos do liberalismo, doutrina que defende o individualismo econômico como salvaguarda da ação política. No alvorecer do século XX, liberalismo, individualismo e higienismo ultrapassaram de mãos dadas as comportas da Europa e desaguaram, via colonialismo, nos países da América Latina. No Novo Mundo veio a metamorfose: enquanto o liberalismo serviu como apelo moral para que os grupos enriquecidos no velho regime, em busca de maiores lucros, chegassem ao poder, o individualismo foi sacrificado no altar das conveniências pelos mesmos grupos. Só o higienismo, glorioso portador da mensagem mais profunda da civilização que o produzira - o progresso supõe a ordem - foi copiado como uma mensagem de valor universal, incontornável e irresistível, dos Estados Unidos à Terra do Fogo.

Embora não trabalhe nessa perspectiva - certamente por identificar a estética nazista como um fenômeno estritamente alemão -, Cohen fornece ferramentas importantes para compreender, a partir dos ingredientes históricos que forjaram e deram legitimidade social às idéias de Adolf Hitler, a estrutura atual dos Estados forjados na mesma lógica temporal.

No Brasil, práticas colonialistas mobilizaram vultosos recursos, intelectuais e financeiros, para construir uma civilização nos trópicos - a partir do olhar europeu. O primeiro ciclo da borracha (1879-1912) pavimentou o caminho na região norte: entre os preparativos do golpe militar que implantou no país o ideal europeu da república (1889) e os da primeira guerra mundial (1914-1918) surgiu a guerra do Acre (1899-1903). Bem aqui, no auge da ideologia higienista que constituía a percepção colonial sobre o novo mundo, erguida sobre uma poderosa base econômica, consolidou-se a vida urbana na Amazônia. Hitler tinha, ao final do conflito acreano, 14 anos de idade.

Práticas adequadas de alimentação, de vestuário, de expressão cívica, de moralidades e outros pormenores foram inseridos e disciplinados no convívio acreano desde então. Embora o exotismo de tais práticas fosse equiparável apenas à sua voracidade, o Estado brasileiro tratou de se apropriar dessas características para construir, tal e qual na Alemanha da mesma época - se é correta a abordagem estética de Arquitetura... - um sistema de organização dos espaços coeso, disciplinado.

Coesão, disciplina. Ordem, progresso. São características que outro filme genial, A onda (Die welle, 2008), de Dennis Gansel, capta do fascismo. A marca da mente nazifascista (de qualquer época), para Gansel, é a incapacidade de perceber ordem fora de sua ordem. Trata-se do velho problema da universalização da perspectiva pessoal, que impede o portador de cogitar a validade de outras ordens que não entende, pois entendê-las implicaria em violar o sentido de universalidade da sua própria ordem.

A impossibilidade de superar esquemas de sentido pessoais, aplicados ao mundo como se fossem regras com validade geral e universal, é definida nas ciências humanas como ideologia. Isso explica por que atos políticos que não se encaixam na ordem são considerados portadores de perigo iminente e "devem ser contidos", mas não explica o fenômeno histórico da identificação com uma ordem específica. Assim, a lógica higienista tem muito a nos dizer.

No caso do Acre e de outros Estados brasileiros onde vários grupos têm saído às ruas para protestar precisamente contra a insustentabilidade do seu legado urbano, houve resistência em alguns espaços públicos, alegando-se a necessidade de se manter a limpeza, a ordem das repartições.

Parece um argumento lógico. No entanto, qual seria o sentido de defender os espaços públicos da invasão das questões públicas? Justifica-se, em nome da ordem, restringir os debates políticos, sobre questões políticas, aos espaços autorizados dos próprios setores políticos?

A resposta parece surpreendentemente una e óbvia. É preciso, porém, averiguar o sintoma que pulsa latente em fenômenos desse tipo. Transformar o desafio em aprendizado.

Toda a evolução da máquina política acreana, desde os seus primórdios, consistiu no desenvolvimento da lógica estrutural que motivou o nazismo: o higienismo, o liberalismo, o individualismo e outros elementos, longe de criarem um modelo social, produziram uma cisão tão profunda que muitos amazônidas não reconhecem suas cidades como tais. Embora a distância física que separa seringais e municípios seja mínima, a distância simbólica, aquilo que lhes foi agregado como valor específico, criou um abismo intransponível que muitos se esforçam em aumentar, a machadadas, enquanto em outras partes do mundo - na Alemanha, inclusive - os jovens vão às ruas para dizer "não" a todo o metabolismo sociopolítico engendrado há 300 anos.

Felizmente, em assuntos humanos, é possível renunciar a heranças malditas. Não é obrigatório, por enquanto, defender um legado político cujas origens não se compreende, especialmente se ficam claras as suas intenções. No nível puramente individual, trata-se de não reproduzir práticas destrutivas. Numa leitura social, se considerada a abordagem de Arquitetura... é um sinal do poder dos (múltiplos) colonialismos entre nós. Um péssimo sinal.

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