domingo, 16 de maio de 2010

OS PAIS DA CRIANÇA

Editado em 23.05.2010, acatando sugestões - geniais - da minha querida orientadora, professora e amiga, Eurenice de Oliveira. Pensei em fazer um novo texto, mas vou deixar os vários adendos geniais destacados em vermelho.
Nos Estados Unidos, uma arraigada tradição política de culto à personalidade cunhou a expressão "pais fundadores" para designar a bravura, audácia, perspicácia e capacidade de liderança dos primeiros presidentes daquele país. Trata-se de algo com repercussões diversas na vida política, responsável inclusive pela personalização do poder político - como se a democracia não fosse um processo coletivo.
No Acre, esta experiência geopolítica conduzida em grande parte de sua história pelo capital internacional, vamos na mesma direção.
Bastou por exemplo terminar a greve dos professores para pipocarem, aqui e ali, vários candidatos ao elevado cargo de "pai da criança" (entendida como tal o acordo entre governo e grevistas que encerrou o movimento de 29 dias).
Assim é que no dia seguinte ao fim da greve - dia 15 - o deputado estadual Moisés Diniz correu à imprensa para ponderar, com toda a gravidade, nos seguintes termos: "Os operadores do governo estavam tendo muitas dificuldades de conduzir o encerramento da greve. Os líderes sindicais estavam perdidos, inclusive, alguns brigando entre si e sem controle junto à base. Resolvi fazer uma ação atípica que foi me despir do papel de líder do Governo e ir dialogar com as lideranças dos trabalhadores que não se entendiam". Ou seja: quando tudo parecia perdido, quando não restava mais qualquer esperança, eis que de repente ele - El Gran Rojo! - surge e salva a lavoura.
(“Salva a lavoura” prestando um servicinho de desqualificar as lideranças que conduziram a mobilização “indicando” sua desorganização, seus conflitos e sua falta de representatividade. Técnica totalmente conhecida e esperada.)
A Secretaria de Estado de Educação (SEE) também fez circular, no mesmo dia 15, uma nota nos meios de comunicação acusando o movimento de ter apresentado uma espécie de clarão de bom-senso nos últimos minutos do segundo tempo, caindo nas graças do governo por ter suspendido a greve para obter o acordo. A mesma nota, que pode ser lida na íntegra no site da SEE, aponta o papel fundamental de núcleos municipais do Sinteac "na construção da proposta de suspensão do movimento" - o que soa algo estranho, uma vez que a suspensão ou continuidade da greve depende de votação geral da categoria, não do protagonismo deste ou daquele grupo.
Por fim o próprio Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Acre (Sinteac), por meio de Manoel Lima, seu presidente, surgiu como um terceiro pai. Lima, após dizer que a imprensa estava atrapalhando o diálogo com o governo, afirmou em entrevista que a proposta de reajuste teria partido dos grevistas. Não partiu. A proposta original, votada pela categoria um dia antes, tinha quatro itens. O governo só admitiu um, criando assim uma outra proposta e levando os grevistas, já exauridos pelos 29 dias de manifestações, a pensar que a mudança fora provocada "no processo de diálogo".
(Ao governo interessa a gestão democrática das mobilizações sociais, o que inclui o paternalismo de afirmar que somente o governo sabe o que é melhor para os grevistas, muito mais que a sua liderança. Continua a desqualificação da direção do movimento...Por outro lado, afirmar que só concedeu uma reivindicação fica antipático politicamente. O diálogo e o consenso são politicamente corretos).
Pois não foi. A proposta dos servidores foi alterada pelo governo, aceita pela categoria e daí sim carimbada pelo governo. Se isso ocorreu antes ou após a suspensão da greve - votada por volta das 11 horas do dia 14 - é algo de um profundo e cósmico mistério...
Vou abstrair propositalmente todas as falhas que podem e devem ser esperadas de mobilizações sociais desse tipo - especialmente em ano eleitoral - para lançar reflexão sobre a manifestação de uma velha prática herdada dos antigos seringais: a tentativa de tutelamento da sociedade. Em uma publicação pouco conhecida, o cientista político Marcos Inácio Fernandes revela que os primeiros seringalistas acreanos utilizavam os jornais de Manaus e Belém para criticar acidamente a política da recém-nascida República do Brasil em relação ao Acre. Queriam autonomia, mas só a defendiam porque tinham interesse em estabelecer a sua própria política tarifária sobre a borracha.
Nos anos de chumbo, quando a rede Diários Associados, de Assis Chateaubriand, criou o primeiro jornal diário no Acre - O Rio Branco, existente até hoje -, as páginas foram logo utilizadas pelos empresários locais como meio de lobby em relação aos nazifascistas tupiniquins. Construtoras famosas ergueram verdadeiros impérios às custas de obras faraônicas implantadas na Amazônia graças à constante e implacável pressão dessa imprensa "imparcial".
Hoje, quando o velho ciclo da borracha é somente uma lembrança e a Ditadura Militar ainda é chamada de "revolução" em alguns jornais, uma característica desses dois períodos permanece: a tentativa insidiosa de controlar, mapear, zonear e frear o ímpeto das necessidades materiais dos trabalhadores em luta. Isso ocorre numa dupla direção: estabelecendo agentes do Estado como heróis mediadores de imensa capacidade de liderança e também criminalizando ou relativizando a importância de mobilizações trabalhistas, reivindicatórias e potencialmente transformadoras.
Na esquerda, esse processo é auxiliado por uma leitura enviesada de Antonio Gramsci, o intelectual da sociedade civil. No submundo do cárcere, num momento em que militantes de esquerda eram perseguidos, torturados e punidos pelo fascismo italiano, Gramsci elaborou várias estratégias de conquista do poder político por parte dos trabalhadores organizados em sindicatos e partidos. Em outras palavras, Gramsci pretendia que o protagonismo político fosse feito pelos próprios trabalhadores, que deveriam criar seus partidos - logo, partidos de trabalhadores ou trabalhistas - e lutar dentro das regras da democracia representativa para desfascistizar a sociedade, tornando-a realmente democrática.
(Não aguentei e mexi no parag. Não mexi na idéia!)
Na esquerda, esse processo é auxiliado por uma leitura enviesada de Antonio Gramsci, o intelectual da sociedade civil. Este autor elaborou várias estratégias de conquista do poder político por parte dos trabalhadores organizados em sindicatos e partidos. No momento em que militantes de esquerda eram perseguidos, torturados e punidos pelo fascismo italiano, Gramsci analisava o protagonismo político dos próprios trabalhadores, que deveriam criar seus partidos - logo, partidos de trabalhadores ou trabalhistas - e lutar dentro das regras da democracia representativa cujo fortalecimento poderia se contrapor ao fascismo na sociedade, tornando-a realmente democrática.
Da leitura de Gramsci surgiram várias correntes partidárias que abandonaram a idéia de revolução, ou tendem a ver como uma revolução essa luta institucional dos trabalhadores e seus partidos representativos.
O problema - e aí vem o equívoco de várias esquerdas, dentre outras - é que o próprio Gramsci desenvolveu sua extraordinária teoria tendo como base a crítica da economia política. Na teoria gramsciana a luta institucional é uma luta "contra hegemônica" precisamente porque os espaços de sociabilidade política são representações da luta de classes, não de uma democracia em sentido estrito. Numa democracia o povo não manda, ao contrário do que diz o dicionário. O poder do trabalhador é reduzido ao ato do voto, a uma transferência de poder. Essa transferência de poder é o pressuposto básico da luta de classes: uma sociedade de dominadores e dominados.
(Aqui talvez coubesse dizer as filiações partidárias “desses meninos” para qualificar o “não entendem ou não leram” e a penúria intelectual ou o afastamento do ideário de esquerda dessas lideranças mencionadas. Presumo que para elas, seja um elogio dizer que não são de esquerda. São evangélicas?)
Este é o ponto que Moisés Diniz, Manoel Lima e o próprio governo do Estado do Acre não entendem ou não leram. Luta institucional dos trabalhadores requer primeiro trabalhadores organizados, não a criminalização dos movimentos dos trabalhadores. Requer a crítica da economia política, não o estabelecimento do Estado como agente produtor da paz e glória eterna para sempre amém... numa sociedade capitalista, Estado é um Estado de classe mesmo que em sua condução esteja um partido trabalhista nos moldes atuais.
(Substituir luta institucional por “luta social dos trabalhadores” . Aqui, talvez o mais interessante fosse indicar a prática política do governador diante de mobilizações sociais. Como ele agiu diante das várias manifestações. Por outro lado, esses caras lendo a Crítica...sei não! É bom para você mencionar esses textos. Indica sua proximidade com o pensamento socialista fundante. Por outro lado, para eles, que importância tem isto? E para o leitor?)
Há aqui um desvio notável entre teoria e prática política - em benefício, evidentemente, da prática desprovida de teoria. O governo que se propõe ser o dos trabalhadores é o governo que se coloca como o grande pai de todos os trabalhadores e burgueses, aquele que os conduz, que os pacifica, "com todos e para todos". É obviamente um processo de tutelamento e submissão da classe trabalhadora a um processo político-partidário, mas é também o resultado histórico e inevitável de uma herança política nazifascista.
(Não concordo que haja desvio. O PT há muito deixou de ser um partido de esquerda. Antes, até de ganhar as eleições presidenciais. O Estado burguês resolve crises criminalizando, tutelando e jogando a polícia sobre as lideranças, ao mesmo tempo em que apela para medidas jurídicas que penalizam o exercício da liberdade de organização e manifestação pública. Simultaneamente joga uma parte da sociedade contra a outra parte e assume a responsabilidade pelo bem-estar geral da sociedade. Isto é feito, também, através da tecnologia da comunicação organizada na imprensa falada e escrita. Os empresários (da comunicação?) sempre participam da greve como generais de todas as guerras, a lutar nas guerras de movimento e posição para reposicionar os grupos no poder. Penso que o governo seguiu a cartilha em todos os pontos.) Mas será que o sindicato seguiu? Já houve avaliação sobre os alcances e os limites dessa greve? E as principais forças desse sindicato, como atuaram? Essa mobilização permitiu o crescimento da solidariedade entre este segmento de trabalhadores? Quais as formas de solidariedades manifestadas pelos outros trabalhadores organizados? Quem vai fazer o registro dessa mobilização? Esta é uma sugestão de pauta sintética para os intelectuais orgânicos dos trabalhadores em educação. Quem se habilita?
Gramsci para nós faria todo o sentido, se não fosse a tentativa insidiosa de colocar a política acima dos interesses históricos das classes trabalhadoras. Acima da própria luta de classes! Quem se beneficia disso, a não ser as classes dominantes, incrustadas no próprio aparelho estatal?
Tal qual os seringalistas do primeiro ciclo da borracha e os nazistas do Regime Militar, vivemos um momento que não foge do velho processo que sempre marcou a trajetória política acreana: estabelecer interesses particulares como se fossem os de uma classe.
Há, na Sociologia, um nome e uma classificação para um processo político que atua nos mesmos moldes. A ênfase no controle da sociedade, na única dinâmica que pode criar o possível, é a sua ambição fundamental. Outras são a mitologização da história e a febre do desenvolvimentismo tecnológico.
Dicas?
(A burguesia estabelece seus interesses particulares como se fossem os interesses da sociedade. Os interesses da sociedade estão acima dos interesses das classes e da política: “os alunos não podem perder o ano letivo, os pais estão contra a greve e pressionam o governo, é ano de política não podemos dar o aumento que pedem”, etc, etc, etc É eficiente em produzir a aparência de que o universal prevalece sobre o particular. Por isso está no poder até hoje).
Seu texto esta bom. Eu não conseguiria fazer nada igual. Sempre que a gente escreve um texto, quem lê encontra brechas para fazer várias observações. É bom para o debate. Desculpe se peguei pesado. Você pediu. Você teve.

Uma das suas orientadoras mais queridas. Lembra?

Eurenice de Oliveira

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