segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NIETZSCHE x MARX

Motivado pela leitura da biografia de Domenico Losurdo sobre Friedrich Nietzsche, há duas postagens eu venho tratando deste filósofo, um dos grandes da escola alemã. A discussão com o blogueiro Cleomilton Filho, um nietzscheano convicto, acendeu uma viva polêmica depois que botei Karl Marx, também alemão e também filósofo, na berlinda. Minha síntese provisória - na forma de cartas, como faziam os antigos filósofos - é a que se segue:

Na verdade, nem Marx nem Engels definem a sua teoria como “socialismo”. Eles estavam interessados na análise da história presente, ou seja, do capitalismo. A definição “marxismo” surgiu sob os protestos do próprio Marx, e a definição “comunismo” surgiu como necessidade de se demarcar a luta política de 1844, quando foi publicado o Manifesto do Partido Comunista.

A sua questão de que o socialismo seria uma ponte para o comunismo está equivocada nas premissas. Primeiro porque não é possível passar de socialismo para comunismo em um Estado – comunismo é um sistema-mundo, tal qual o capitalismo. Segundo porque - contrariamente aos demais, daí porque a crítica não vale - o socialismo aí é a destruição do Estado, por meio dos próprios trabalhadores organizados em conselhos. O objetivo é exatamente substituir o conceito de Estado-Nação pelo de Nação-Mundo.

Por que, então, esta primeira fase recebe o nome de “socialismo”? Simples: porque os trabalhadores estão associados, eles participam do processo. Os indivíduos é que conduzem a estrutura e tomam as decisões. Esta é a única similaridade entre socialismo utópico (Fourier, Blanc, Owen, Babeuf etc) e “socialismo marxista”: o princípio da associatividade. No primeiro visando uma ação afirmativa. No segundo, visando uma ação iconoclasta.

Você deveria saber disso.

Mas vamos adiante. Vamos supor – o que me parece plausível – que Nietzsche imaginasse que esta organização também tenderia a limitar ou mesmo tolher a vontade de potência do indivíduo.

Nesse caso podemos pensar se as necessidades de abolir os Estados nacionais, participar de assembléias deliberativas locais, regionais ou mundiais e transformar meios de produção de riquezas, hoje privados (fábricas, indústrias etc) em bens dessa coletividade mundial, poderiam contradizer interesses individuais.

Eu penso que podem. Mesmo que esse modelo eliminasse o desemprego, produzisse uma sociedade mundialmente mais justa e dinamizasse a sobrevivência, e com isso a criatividade das pessoas, penso que algumas poderiam se sentir no direito de não participar de nada disso.

Mas imagino que até nesses casos os indivíduos deveriam imaginar-se na condição de seres que têm necessidades, ou seja, fome, sede, necessidade de vestir, de calçar etc. Se é assim, então não há impedimento em agir para satisfazer tais interesses. Tanto no capitalismo quanto em um comunismo isso pode ser feito obtendo bens que não são produzidos pelos indivíduos, mas por outra pessoa. Ou seja, são obtidos por meio de outras pessoas, que ali investiram sua criatividade, sua capacidade, seu trabalho.

Então, ou muito me engano, ou não há como escapar dessa dinâmica do trabalho socialmente produzido. Ou se satisfaz necessidades individuais em troca de bens produzidos coletivamente ou se renuncia ao imperativo do próprio corpo, simples assim.

Veja que esta organização não requer que todos “sejam iguais”. Requer apenas que os indivíduos sejam o que são na medida das suas limitações, mas que tenham mesmo assim o direito de atender livremente as suas necessidades trocando-as pelo resultado do trabalho de outras pessoas. A “igualdade comunista” é justamente que os indivíduos possam igualmente realizar esse imperativo biológico, ou mesmo psicológico (já que nem todas as nossas necessidades são físicas).

E aqui chegamos a um ponto complicado. Nietzsche sabia dessa relação de mútua dependência entre indivíduo e sociedade? Eu penso que sabia. No entanto, sua conclusão é clara: o indivíduo deve, para ser livre, rejeitar tais promessas de redenção social para viver a sua própria vida, que é toda indeterminação em comparação com o indivíduo e que, por isso, deveria ser gozada e não idealizada ou como faz a religião - no que concordo – transcendida.

Eu tenho a impressão que essa filosofia é capenga, pelas razões que demonstrei acima. O Ludwig Von Mises monta toda a sua teoria sobre liberdade partindo da mesma definição de indivíduo: um ser livre no mundo, que realiza o melhor em benefício de si mesmo, da sua individualidade.

Uma das grandes questões da Sociologia clássica, você sabe disso, é descobrir quem veio antes: o ovo ou a galinha; o indivíduo ou a sociedade.

Polêmica inútil. Indivíduo e sociedade sempre estiveram juntos, por determinação biológica, necessidade de criação simbólica e de trocas materiais. Mas não há um mísero momento na história em que o indivíduo não represente para a coletividade humana uma necessidade para a sua reprodução, gerando-se daí leis, códigos, valores etc. E vice-versa: toda a criatividade do indivíduo é perpassada por linguagens, hábitos, inventos, descobertas, ideologias, limites jurídicos, crenças filosóficas que não pertencem a ele, mas são introjetados até inconscientemente.

Os maiores gênios da humanidade, como Da Vinci, Einstein, Mozart etc, em suas vidas, não escaparam dessas limitações que são determinantes: elas se impõem por razões históricas. Apesar de terem sido geniais e avanços consideráveis, o tempo mostrou que todas as idéias de Da Vinci, por exemplo, precisaram de reformulações devido aos materiais existentes na época ou à sua compreensão inexata dos efeitos da gravidade e da biologia ainda incipiente. O mesmo pode-se dizer dos demais.

Nessa briga isolacionista, a Sociologia já embarcou em ambas. Em Durkheim e Comte, por exemplo, a proeminência é da sociedade em detrimento do indivíduo. Na nossa época a proeminência foi para o pólo oposto e passou a ser do indivíduo, gerando as teorias bizarras do pós-modernismo. Paradoxalmente, ambas se explicam pelo contexto: em Comte e Durkheim havia a preocupação romântica de criar uma sociedade justa e fraterna por meio de uma teoria política totalizante, com o protagonismo marcado de seus líderes. Na nossa época, o pós-modernismo nasce dentro de um capitalismo que necessita isolar o indivíduo e suas necessidades da óbvia conexão com o resto da sociedade – sua pobreza, injustiça, violência etc.

Penso que devemos superar esse cabo-de-guerra. O melhor conceito para isso é considerar o indivíduo um ser social, isto é, simultaneamente individual e social. Se isso for verdade, imagino que a teoria de Nietzsche, com tudo o que ela nos revela de um dos lados da moeda – e a sua virtude é exatamente esta – não deve ser tomada como verdade única, uma vez que não explora todos os meandros.

Veja o caso do comunismo: em todas as revoluções antigas houve guerras. O que é até meio óbvio. As guerras durante a expansão do Império Romano, as guerras medievais, a Revolução Francesa e Americana, as mortes provocadas durante as revoluções no Brasil. Aqui no Acre tivemos o exemplo de Plácido de Castro: ninguém contabiliza a quantidade de bolivianos e brasileiros mortos em emboscadas e conflitos abertos.

Mas quando uma revolução se propõe socialista ou comunista, imediatamente os números são convertidos em justificativas para demonstrar “a crueldade do coletivo contra o indivíduo”, o “genocídio das idéias coletivistas” ou “a identidade próxima entre nazismo e comunismo”.

Todas as idéias podem se tornar histerias e todas as revoluções podem ser transformadas em genocídios. Basta que a máquina de propaganda seja suficientemente legitimada socialmente para operar esse transformismo ideológico.

Um exemplo claro disso é “O Livro Negro do Comunismo”, onde se afirma que o comunismo matou 100 milhões de pessoas e o nazismo 10 milhões.

Afirmar que um regime é pior que outro com base no número de vítimas é algo sem sentido. Execuções sumárias são sempre um crime, independente de quantos sejam mortos. Mas o número de 100 milhões de vítimas do comunismo é simplesmente absurdo: segundo o cálculo desses autores, Stalin matou 30 milhões de pessoas na URSS. Este número é um disparate; a população soviética então era de bastante menos que 200 milhões - matar 30 milhões de pessoas equivaleria a exterminar mais de 15% de toda a população do país, o que é simplesmente impossível. Claro que, se Stalin tivesse matado tantas pessoas antes da Segunda Guerra Mundial, teria sido impossível a vitória soviética.

Além disso, todos os historiadores russos sérios de hoje, que não têm a menor simpatia por Stalin, concordam que o número de suas vítimas foi de não mais que 4 milhões: uma cifra imensa. Stalin foi, indubitavelmente, um dos tiranos mais brutais e violentos de todos os tempos. Simplesmente não há necessidade de exagerar o número de suas vítimas, com o propósito único de propaganda.

No entanto, isso é feito e é aceito como ciência! Da mesma forma que é aceito como ciência, ou mesmo como filosofia, dizer que o comunismo sacrifica o indivíduo em benefício da coletividade para encaixá-lo na crítica nietzschena, miseana, popperiana e outros. Na verdade a soma da sociedade é produzida pela interação dos indivíduos, não só na economia, mas também na circulação de valores afetivos, jurídicos, religiosos, lingüístico-literários etc. É evidente que o cerne do nazismo, por exemplo, foi a submissão do indivíduo aos valores coletivos, aos interesses “do todo” etc, mas isso não se aplica ao comunismo porque este se baseia na interatividade que já existe hoje. Na verdade, o materialismo histórico aposta todas as suas fichas exatamente na diferenciação entre “necessidades” e “capacidades” dos indivíduos, reconhecendo aí – socialmente - o mérito, a capacidade individual.

O que o comunismo combate é a desigualdade, não a diferença. Uma sociedade de iguais só se move por diferenças. Mas uma sociedade onde impera a desigualdade só pode gerar indiferentes.

A idéia é então maximizar as oportunidades por meio da igualdade de oportunidade para todos os diferentes, para que todos os diferentes possam ter iguais chances de dinamizar as suas capacidades e com isso elevar os indivíduos a novos estágios de vivência.

Isso, repito, está inteiramente fora da crítica nietzscheana, exatamente porque ela é isolacionista. Parte do indivíduo como uma mônada, quando isso não é possível, nem mesmo idealmente.

O livro do Domenico Losurdo traz exatamente esta reflexão, dentre outras. A plataforma isolacionista de Nietzsche, dado o seu caráter irrealizável e por isso mesmo ideológico (já que é uma idealização do indivíduo), torna-se exatamente o que ele combatia: uma proposta de vir-a-ser. É uma tentativa de recrutamento para uma concepção que é filosoficamente fraca, mas politicamente poderosa: a atomização do homem.

Leia, e, se você discordar, conversamos mais. Como cidadãos ou como cidadões (depende de como a sociedade estiver grafando este vocábulo, transformando-o, independentemente dos manuais de regras metalingüísticas que possamos adotar com a nossa larga e douta erudição).

Saudações de um indivíduo humano.

2 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Josafá,

Respondi no meu blog, o espaço ficou curto aqui, teria que quebrar o texto.

Unknown disse...

Caro Josafá,

Essa discussão está boa e você está bem perto de me levar a ler esse maldito. Mas tome cuidado porque a capacidade do liberal médio de acompanhar raciocínios contrários à sua teologia é muito pequena - afinal, a reafirmação de uma ideologia é um processo terapêutico, acrítico e quase inconsciente.

Grande abraço.