segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

FUTURO DO PRETÉRITO

É com grande prazer que reproduzo aqui entrevista do Brasil de Fato ao professor Oswaldo Sevá, que conheci em 2007 num evento da UFAC sobre as ameaças de prospecção de petróleo nas Terras Indígenas próximas ao Parque Nacional da Serra do Divisor, no Vale do Juruá.


Sevá é um desses estudiosos incansáveis dos impactos sociais e econômicos das grandes obras do excurso neodesenvolvimentista adotado pelo governo federal. Em tempos de idiotização intelectual, como se todos os fenômenos que nos produziram enquanto sociedade não fossem suficientemente claros, vale lembrar um velho dito: a história (acreana, no caso) pode sim se repetir; agora não como tragédia, mas como farsa...


“Ofensiva do capital contra os povos indígenas e camponeses é global”, observa Oswaldo Sevá

Spensy Pimentel e Joana Moncau



Engenheiro e doutor em geografia, o professor Oswaldo Sevá tem sido, nas universidades brasileiras, um dos principais aliados dos movimentos sociais em suas lutas contra os grandes projetos de “desenvolvimento”, como usinas hidrelétricas, minas e estradas. Trata-se de empreendimentos que ele, em seus cursos na Universidade de Campinas (Unicamp), chama de “conflitos atuais da acumulação primitiva”. A maior luta em que está envolvido atualmente é contra a megausina de Belo Monte, no rio Xingu, paraíso da bio e da sociodiversidade em plena Amazônia, agora ameaçado por esse projeto dos tempos da ditadura civil-militar que foi atualizado e desengavetado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde os anos 80, Sevá publica estudos críticos ao projeto, demonstrando suas falhas e inconsistências. Na entrevista a seguir, o professor mostra que o atual cenário de conflitos socioambientais tem, na realidade, uma amplitude global, representando um desafio para os movimentos sociais de todo o mundo. E adverte: “A ameaça também é muito grave quando os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à expropriação”.

É possível perceber na atualidade uma ofensiva de alcance latino-americano desses projetos de exploração de recursos naturais em terras comunitárias (camponesas/indígenas)?

Oswaldo Sevá – Sim, é uma ofensiva com grande preferência pelas américas Central e do Sul, mas que também assola várias regiões da África, da Ásia e da Oceania. Mas é uma ofensiva global, pois envolve agentes econômicos e políticos de muitos países, agentes que raciocinam e decidem com o “mapa mundi” aberto numa grande mesa ou numa grande tela digital. É uma ofensiva capitalista, e não podemos omitir nem esquecer esse nome, porque se trata de tentar superar mais uma das grandes crises estruturais do sistema capitalista. No caso, dizem os estudiosos como Harvey e Arrighi, é uma crise de super-acumulação, uma crise financeira, uma demonstração exuberante da famosa lei da “queda tendencial das taxas de lucro”. Por isso, os alvos preferenciais da ofensiva são as localidades e regiões com recursos naturais considerados estratégicos. E aí se criam projetos de investimentos considerados capazes de gerar taxas de retorno altas – o que obviamente depende de custos econômicos e de custos sociais, e depende da possibilidade de concretizar, novamente, o “velho” mecanismo da acumulação primitiva, que nunca deixou de atuar. Os grandes oligopólios que controlam a eletricidade e os equipamentos elétricos, os minérios e a metalurgia, o agronegócio, o petróleo e o gás, a celulose e papel, estão há algumas décadas estudando minuciosamente as possibilidades de novas fontes desses materiais e energias e esquadrinhando com métodos sofisticados os novos territórios onde produzir tais mercadorias. Anunciam investimentos similares ao mesmo tempo em todos os lugares, por exemplo, hidrelétricas para barrar todos os rios ainda barráveis em muitos países, incluindo até mesmo alguns dos países mais antigos e mais ricos, como os europeus. Por exemplo, anunciam a abertura de novas minas de ferro, manganês, ou de níquel, cobre, zinco, cromo, mas principalmente minas de ouro, prata, platina e metais mais raros como o nióbio, em várias regiões do mundo ao mesmo tempo. O primeiro passo para conseguir concretizar cada um desses investimentos – ao contrário do que muitos argumentam, não é o financiamento, pois de algum modo sobra capacidade de investir no sistema global – é a conquista dos territórios. Que, em geral, já têm ocupantes, donos e usuários anteriores, em alguns casos, muito antigos, grupos humanos secularmente estabelecidos. Suas terras devem ser agora “liberadas” para barragens, novas minas ou grandes plantios de eucaliptos ou palmeiras ou soja, e estradas e ferrovias que os conectem ao mercado mundial. Aí, os moradores e os vizinhos desses locais escolhidos pelo grande capital devem ser expropriados e transformados em proletários, uma parte deles em  assalariados, que somente conseguirão sobreviver no mercado e para o mercado. Essa é a ofensiva.

Como classifica o grau dessa ameaça?

É muito grave, pois o sistema capitalista sob ameaça retoma suas origens autoritárias, as empresas gastam cada vez mais com a segurança do patrimônio, dos executivos e dos homens de campo, empregam cada vez mais intermediários da coação sobre os povos, informantes que na prática fazem contrainformação, rastreando os movimentos legítimos e libertários, agem por meio de capangas para rastrear e intimidar esses dissidentes e resistentes. O capital se apossa ainda mais dos postos de governo nas três esferas – Executiva, Legislativa e principalmente no Judiciário. Enquanto aumentar o poderio das grandes empresas, as duras conquistas democráticas serão corroídas e  derrubadas, restando para a sociedade uma intoxicação de propaganda institucional, as empresas se autovangloriando, alardeando “responsabilidade social”, “sustentabilidade”. As mesmas corporações que dependem da expropriação e da violência usam o dinheiro público, isenções de impostos para exercer o mecenato, patrocinar e usufruir da promoção de sua imagem nas atividades culturais, esportivas, musicais, cinematográficas etc.

Quais os casos mais graves, em sua avaliação?

Considerar situações sociais mais ou menos graves depende muito do acesso à informação sobre o que ocorre, o que é dificultado pela própria ofensiva comentada, e depende, claro de escalas de valor ético. Acho que são mais graves os casos em que as pessoas estão sendo desalojadas à força, em que os antigos moradores, sejam indígenas, ou afrodescendentes, ou simplesmente famílias rurais e até mesmo pequenos proprietários, são removidos contra a vontade e vão para a diáspora, para “reassentamentos” quase prisionais, vão para as novas favelas das cidades. São muito graves os casos em que o suprimento de água da população, ou o “Riego” secularmente compartilhado entre vizinhos, ficou ou vai ficar comprometido em quantidade e qualidade. É fatalmente o que se passa na região onde são abertas minas de ouro, pois a mineração e a concentração do metal usam muita água, secam os lençóis, contaminam o solo e o subsolo e destroem ou envenenam os cursos d’água, diminuindo ou acabando com a pesca. E são igualmente graves os casos em que haverá fome porque se perdeu a terra de plantio, ou a mata de colheita e caça, o rio onde se pesca.

Essa insistência dos governos em realizar grandes projetos hidrelétricos justifica-se na conjuntura atual de crise climática/econômica?

A insistência que você pergunta existe, mas não é dos governos, é por meio dos governos. Ou seja, é uma insistência que tem origem na grande dependência que têm alguns setores industriais em relação à eletricidade para uso em seus processos produtivos, é o caso do alumínio, do cobre, do níquel, dos metais em geral, da celulose e seus produtos, de alguns ramos da química, como cloro-soda. Mais do que isso, é a insistência das empresas desses setores em reduzir na sua planilha de custos o grande peso que tem a energia elétrica, e aí vão atrás de novas fontes que sejam “baratas”, ou seja, nas quais os custos fundiários, sociais, ambientais sejam reprimidos para baixo; e, principalmente, vão atrás de condições propícias à celebração de contratos lesivos aos países “anfitriões” desses projetos. Foi o que ocorreu há quase 30 anos com a eletricidade de Tucuruí no Brasil, e que está delineado agora com a eletricidade do rio Madeira.

Trata-se, realmente, de “energia limpa”, como se costuma dizer?

Bem, sou professor na área de Energia há mais de 20 anos, me formei em Engenharia Mecânica. Posso responder de modo simples, fundamentado apenas na ciência da Termodinâmica, que é um ramo importante da Física, que estuda o calor e o frio, as máquinas que transformam as energias naturais em trabalho útil. Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é “gerada” como dizem os economistas, os políticos e jornalistas desinformados. A energia é apenas transformada de um tipo em outro, sucessivamente. O montante total se conserva e em cada transformação uma boa parte se perde, se degrada, não podendo ser novamente obtido o mesmo total de trabalho útil. Portanto, não existem energias “renováveis”. De modo similar, existe a lei da conservação da massa e dos fluxos de massa, das vazões: tudo que entra num sistema tem que sair, de um modo ou de outro; se sair menos é porque se acumulou lá dentro, se sair mais é porque havia um estoque que foi usado. Portanto, não há como produzir nada de forma “limpa”; toda operação produtiva produz resíduos sólidos, líquidos ou gasosos. Mesmo uma hidrelétrica construída em cima de um solo estéril emitirá vapor d’água por causa da insolação e da evaporação e gases da fermentação da matéria orgânica trazida pelo rio. Se a represa de uma hidrelétrica tiver vegetação na área alagada, produzirá muitos gases de fermentação, do apodrecimento dessa vegetação, inclusive o gás metano, que é um dos gases que desequilibra o efeito-estufa natural do planeta. insisto na resposta: não há nada renovável, nada limpo. E vou além: mesmo que tecnicamente fosse possível, esses valores nunca nortearam o capitalismo. Se assim fosse, nunca teriam existido na proporção de hoje os depósitos de lixo urbano, o lançamento de esgoto bruto nos rios e litorais, a poluição do ar, a contaminação do solo com resíduos perigosos.

Quais interesses estão, geralmente, ocultados aí?

Transformar o interesse dos oligopólios e a luta deles pela sua permanência e crescimento em um valor geral, em interesses de toda a sociedade. A meta privada travestida em objetivo público. A não explicitação do vínculo íntimo entre os “políticos” e os “empresários”, entre a Política e a Economia; e por aí vamos nesse período histórico que mais parece uma “Idade Média” obscurantista: Estado fica sob o foco o tempo todo, e as empresas estão “fora do alvo”... No caso brasileiro, a eletricidade, a mineração, a siderurgia, o petróleo, dentre outros, são os setores civis onde a ditadura militar continua, se aperfeiçoa, renova os quadros e a mentalidade dominadora, antidemocrática.

O discurso em favor desses empreendimentos (mineração/energia/transportes) que afetam terras de populações camponesas/tradicionais em geral opõe um “interesse nacional” à resistência de uma “minoria que não pode prejudicar o desenvolvimento para uma maioria” – sem falar em recorrentes componentes xenófobos/conspiratórios que apelam a uma “suposta ameaça estrangeira”. Esse discurso se sustenta?

Isso tem a ver com o que eu dizia. É uma tentativa obsessiva de dissimulação, uma espécie maligna de autodesconstrução: acusar os outros de fazerem aquilo que as próprias corporações fazem. Numericamente são, sim, minorias que moram nos territórios escolhidos para os projetos de investimento; mas os beneficiários não são a maioria do país, e sim as minorias mais ricas, os grandes proprietários, o sistema financeiro. Porque o sistema não desconcentra com esses investimentos e, sim, concentra terras, patrimônios, rendas, tudo. Conhecemos no Brasil esse tipo de discurso maligno: é o dos dirigentes da nossa Agência Nacional de Energia Elétrica, do nosso Ministério de Minas e Energia, da tropa de choque da “dam industry”. Ficam difundindo essa coisa de “investimento estruturante”, “estratégico”, falam em “segurança energética” – expressão que vem dos EUA, com sua dependência de petróleo importado. E daí preparam o terreno para uma desregulamentação total, para o licenciamento acelerado e garantido de qualquer obra, ou melhor ainda, para que se possa qualquer coisa sem licenciamento. O “componente xenófobo” que você menciona acho que é a hipocrisia ao extremo, uma manobra retórica inteligente a curto prazo, funciona para a opinião pública de tendência direitista e uma parte dos patriotas mesmo de esquerda. No caso da Amazônia brasileira, os territórios já estão sendo internacionalizados pelo capital e pelas Forças Armadas e de inteligência dos países mais fortes, que tudo monitoram. E também pelos biopiratas, pelos compradores de terras e de florestas. Mas não se pode negar que atuam também ONGs e missionários de igrejas que, de fato, fazem o jogo das multinacionais.

Quais os cenários que se descortinam em relação ao quadro?

A situação futura será mais grave onde a população está hoje mais desinformada, desmobilizada, manipulada por coronéis à moda antiga, ou então, amedrontada por um passado de repressão. Mas a ameaça também é muito grave quando os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo, e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à expropriação.
Aí o Brasil da década de 2010 será um antiexemplo, o Brasil que foi presidido durante oito anos por um ex-sindicalista, eleito pela esquerda, embora não tenha feito um governo de esquerda, um país que agora elegeu presidente – apesar de uma grande soma de abstenção e voto nulo e branco – a “mãe do PAC”, a senhora-propaganda da “Aceleração do Crescimento”. É incrível o realismo da linguagem, pois nem se coloca mais o desenvolvimento como conceito-chave, e sim o crescimento. Crescer somente não basta, como se 3 ou 4 % ao ano não fosse já uma vitória num mundo em crise, isso tem que ser “acelerado”. A ideia da aceleração é exatamente o que o sistema busca desesperadamente – contrariar a queda da taxa de lucro, obter retornos, lucros extraordinários.  Voltamos assim à primeira resposta: a ofensiva é para tentar desafogar o excesso de capital. Por causa da desigualdade, do dogma antidistribuição, da despesa crescente do próprio ato de comandar e preservar privilégios, o capital encontra cada vez mais impossibilidade de se realizar fechando o ciclo da acumulação.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A IDEOLOGIA


Leandro Konder, no Brasil de Fato


A ideologia, como sabemos, é uma distorção no conhecimento do outro. Minha mente, conforme sustentam pensadores dogmáticos, não distorce nenhuma apreensão da realidade.

O que eu vejo é o que todo mundo devia estar vendo. O que eu ouço é o que os outros deviam estar ouvindo. Não preciso mudar nada no meu conhecimento da realidade.

Os antigos romanos criaram a palavra alter, que em português passou a significar outro. Se formos fiéis à história dessa palavra, veremos que o termo original já nos diz com clareza que só podemos conhecer de fato o outro, alterando-o. Quer dizer: para entender o que é diferente, é necessário ir ao outro. Viver a aventura de se modificar.

Nós, neste valente semanário, que é o Brasil de Fato, reunimos e transformamos realidades empíricas que precisamos usar contra as mentiras contadas pelos nossos inimigos. Evitamos, porém, alimentar a ilusão de que vamos convencê-los.

Não sei da existência de nenhum banqueiro, de nenhum latifundiário, de nenhum milionário, que se ponha realmente à disposição dos grandes movimentos sociais. Eles alegarão que estão sempre sob a pressão plebeia, cercados por adversários implacáveis; dirão que, se não se defenderem, com energia acabarão tendo seus bens confiscados e, eventualmente, suas vidas tolhidas.

A força de Marx está no fato de ele ter mostrado como a história humana tem se realizado através das duas coisas: de um lado, o desenvolvimento econômico, o avanço tecnológico, o “progresso”. De outro, a divisão que os privilegiados mantêm a qualquer custo, reprimindo os movimentos dos de “baixo”.

Nesse segundo sentido, a educação que a burguesia organizou e proporciona ao povo ensina os trabalhadores a repetir velhos preconceitos e acaba desmoralizando a própria ideologia.

Nas discussões a respeito das inevitáveis distorções ideológicas, aparecem sempre alguns “mussolinis” que proclamam desavergonhadamente o assassinato da verdade pela ideologia. Para proteger o caroço de verdade que a ideologia possui (ao lado da mentira), a esquerda teve o mérito de inspirar um poeta/cantor brasileiro – Cazuza – que reivindicou para ele e seus camaradas a liberdade de possuir sua própria ideologia (Ideologia, eu quero uma pra viver...).

Em Marx, a atitude em face da ideologia é afrontosamente negativa. O poeta Cazuza, entretanto, dispõe-se a enfrentar a confusão ideológica dos seus inimigos (e, se for o caso, também de alguns amigos).

Marx e Cazuza se dão conta, por diferentes caminhos, do uso da distorção ideológica e tratam de combatê-la. Para o filósofo alemão, ideologia é uma categoria que diminui muito a credibilidade do conceito. Marx sustenta que a chave da ideologia está no fato de que a burguesia explora o trabalhador, deixando oculta a chamada mais valia.

Cazuza é menos “radical”. Seu canto o mostra plenamente inserido na realidade, mas sem se comprometer com as categorias do pensamento teórico-político. Seus heróis “morreram de overdose” e seus inimigos estão no poder. Por isso, ele canta: “ideologia, eu quero uma pra viver”.

Atualmente, o que se vê é a presença do pensamento conservador pragmático que desfaz as críticas que lhe são feitas em nome de critérios exclusivamente utilitários e deixa de lado a análise critica dos fenômenos ideológicos. Para a superação da ideologia, é imprescindível abrir espaço no pensamento para a autocrítica. Não uma lenga-lenga que finge ser autocrítica, contudo é apenas o auto-elogio de intelectuais a serviço da burguesia.

Sem autocrítica, é impossível aprofundar nossas ideias a respeito da ideologia. Sem a ideologia, tendemos a atrofiar e empobrecer nossa relação conosco mesmos.

Temos manifestado falhas e deficiências no nosso trabalho teórico. O que nos consola é o fato de a burguesia não ter resolvido nenhum dos problemas que ela vem enfrentando nas últimas décadas.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

RECURSIVIDADE

Desenvolvimento, concentração de renda e explorações. Paralelos entre a Ditadura Militar e o Brasil dos PAC's. Da recursividade como fenômeno histórico.

Na entrada dos anos 70, a imprensa nacional e internacional gostava de utilizar a expressão "milagre econômico" para referir-se ao rápido crescimento da economia brasileira daquele período. Falava-se então em boom, em "modelo brasileiro", em "gigante da América Latina". As empresas multinacionais consideravam o Brasil área segura e rentável para seus investimentos. Relatórios como os da BIC (Business Internacional Corporation) descreviam o Brasil como país com "base industrial sólida e variada [...], acelerando para o "segundo estágio da industrialização", fase que o tornaria "competitivo nos mercados mundiais e talvez, no final da década de 70, o transforme numa potência econômica de peso, pelos padrões globais." (Davis, 1978, p. 38-9).

Os índices anuais do PIB (Produto Interno Bruto) pareciam ir ao encontro desta avaliação: 11,3% de crescimento em 1971; 10,4% em 1972 e o recorde de 11,4% em 1973. Liderava este crescimento da produção industrial, tendo à frente a indústria de bens de consumo duráveis.

Na esteira deste processo, expandiam-se as cidades, o mercado interno, a construção civil, a de estradas e hidrelétricas, as operações nas Bolsas de Valores. Uma febre consumista parecia ter tomado conta das classes médias: compravam o "carro do ano" financiado em 36 meses; apartamentos "estilo mediterrâneo ou barroco" financiados pelo BNH (Banco Nacional de Habitação); o último aparelho de som "três em um"; a recentíssima TV a cores e as ilusões da última "novela das oito".

Ao final de cada balanço econômico, o governo e a burguesia parabenizavam-se pelos números, pelo "clima de calma e tranquilidade" que diziam existir no País e, é claro, pelas altíssimas taxas de lucros obtidos. No País dos recordes estatísticos, outros números desnudavam a face real do "milagre" para a imensa massa de trabalhadores da cidade e do campo. Mais da metade dos assalariados recebiam menos de um salário mínimo.

Em matéria de subnutrição, mortalidade infantil e acidentes de trabalho, o Brasil estava entre os primeiros do mundo.

Segundo dados de 1975, 72 milhões de brasileiros (67% da população) eram subnutridos. A taxa de mortalidade infantil aumentou não só nas regiões tradicionalmente atrasadas como também nas mais industrializadas. Em 1970, de cada 1000 crianças nascidas vivas, 114 morriam em menos de um ano, tendência esta crescente nos anos seguintes.

Em meados da década, o Brasil foi considerado campeão mundial em acidentes de trabalho. Os números são sempre imprecisos, pois boa parte dos acidentes de trabalho não é registrada pelas empresas. Estima-se que dos 36 milhões de pessoas que compunham a PEA (População Economicamente Ativa), dois milhões foram vítimas de acidentes de trabalho. Só no ano de 1974, no Estado de São Paulo, região mais industrializada do País, um quarto da força de trabalho registrada foi atingida, considerando-se apenas os números dos acidentes de trabalho que foram registrados (780 mil casos).

O ministro da Fazenda do período do "milagre", Delfim Neto, um dos mais conhecidos representantes da política econômica dos governos militares (foi também ministro nos governos Costa e Silva e João Figueiredo), explicava a economia como um "bolo que primeiro deveria crescer para depois ser dividido". O "bolo" cresceu, engalanado por uma das maiores concentrações de renda do mundo (em 1980, os mais ricos, apenas 1% da população, concentravam uma parcela da renda quase igual ao total da renda de 50% da população - os mais pobres). As declarações oficiais forneciam um prato cheio para a caricatura política de então (quando conseguiram driblar a censura), como aquela famosa frase do presidente Médici: "A economia vai bem mas o povo vai mal...".

Na realidade, o crescimento da economia brasileira entre 1969 e 1973 nada tinha de milagroso. O período Médici representou a consolidação da expansão capitalista nos moldes que já vinham se delineando, contando com as bases econômicas e políticas anteriormente implantadas e com a recuperação da economia mundial a partir de 1967-68.

O que se convencionou chamar de "milagre" tinha a sustentá-lo três pilares básicos: o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora submetida ao arrocho salarial, às mais duras condições de trabalho e à repressão política; a ação do Estado garantindo a expansão capitalista e a consolidação do grande capital nacional e internacional; e a entrada maciça de capitais estrangeiros na forma de investimentos e de empréstimos.

O arrocho salarial e a intensificação da exploração do trabalho foram os elementos básicos para a grande acumulação de capitais. Desde 1964, era o governo que fixava os índices anuais de inflação passada, ficando os salários cada v ez mais abaixo da inflação e da produtividade reais. O controle total sobre a política econômica e a circulação de informações permitia ao governo anunciar índices de inflação irreais, rebaixando ainda mais os reajustes salariais, como o caso flagrante ocorrido em 1973 com Delfim Neto como ministro da Fazenda.

Além do arrocho salarial, contou-se com a implantação do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), instituído em 1966, que eliminou a estabilidade no emprego e facilitou aos empresários demitirem, aumentando assim a rotatividade e a insegurança dos trabalhadores e contribuindo para maior rebaixamento salarial.

Os salários deterioraram-se de tal forma que, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos), o salário mínimo em 1975 teria que ser quase três vezes maior do que era para equiparar-se ao de 1958 e, para isso, o último aumento deveria ter sido de 275% e não de pouco mais de 40%. (cf. Camargo, 1976, p. 45).

Isso tudo vinha aliado a uma redobrada extorsão do trabalho na produção - aumento do ritmo de trabalho, horas extras, normas de disciplina draconianas nos locais de trabalho, pressão das chefias, salários inferiores pagos às mulheres e menores.

Garantindo a política econômica do governo estava a repressão sistemática a qualquer manifestação operária, a proibição total das greves e o controle sobre os sindicatos. A ditadura militar não só manteve inalterada a estrutura sindical herdada de Getúlio Vargas, baseada na concepção de conciliação de classes, no corporativismo e na unicidade sindical, como a reforçou intervindo para colocar ou manter cúpulas sindicais pelegas e imobilistas. Tudo isso convergiu para uma prolongada paralisia da luta sindical, embora nunca tenham deixado de existir, em todos aqueles anos, manifestações de resistência dos trabalhadores nas fábricas.

A "milagrosa" expansãso da economia brasileira fazia-se, pois, à custa da pauperização e do silêncio forçado de imensos contingentes de trabalhadores assalariados.

Além de controlar a política salarial e de subjugar a classe trabalhadora, o Estado teve um papel fundamental na expansão capitalista: removeu todo entrave à entrada dos capitais internacionais e à remessa de lucros; subvencionou o grande capital nacional e internacional com uma política de créditos abundantes, incentivos e isenções fiscais; ampliou e modernizou a infra-estrutura necessária à expansão das grandes empresas (estradas, portos, telecomunicações, energia elétrica etc); e ampliou a presença do capital estatal em vários setores básicos (siderurgia, petróleo, petroquímica, mineração).

Ao mesmo tempo, o Estado patrocinou gigantescos projetos, chamados pela crítica de "projetos faraônicos" - a exemplo da Transamazônica e da ponte Rio-Niterói -, que, além de serem usados para alardear a ideologia do "Brasil Grande", favoreceram o rápido enriquecimento de grandes empresas financeiras, empreiteiras, mineradoras, agropecuárias.

De uma forma geral, a política econômica da ditadura militar favoreceu a concentração de capitais, as fusões e associações de empresas, enfim, o predomínio da grande empresa nacional, estatal e especialmente multinacional, associadas ou não entre si, em todos os setores da economia. As multinacionais consolidaram o seu predomínio nas indústrias de ponta, como a automobilística, química e farmacêutica, eletro-eletrônica, máquinas e equipamentos, além de reforçarem sua presença na mineração e na agroindústria. Ao lado dos tradicionais capitais norte-americanos, cresceu a presença dos capitais europeus e japoneses.

O carro-chefe do "milagre" foi especialmente a indústria de bens de consumo duráveis, destacando-se a de automóveis, eletro-eletrônicos e construção civil.

A indústria automobilística foi a que mais cresceu, chegando à produção de 750 mil veículos em 1973, o que deixava bem distante a produção dos tempos de Juscelino Kubitschek, estimada em 130 mil em 1960. Não foi à toa que o petróleo tornou-se elemento vital para o chamado "modelo brasileiro". O País importava a maior parte do combustível que consumia, a preços internacionais que mantiveram-se relativamente baixos até o início da crise do petróleo em 1973.

A indústria da construção foi alimentada pelos imensos recursos do BNH provenientes do FGTS. Em tese, o BNH destinaria os recursos para a construção de casas populares, mas, na prática, a maior parte serviu para financiar imóveis para os setores de renda alta e média.

A expansão do consumo dos bens duráveis foi impulsionada pela criação de um moderno sistema de crédito ao consumidor e pela intensa propaganda de produtos e serviços. A TV foi importante instrumento para a ampliação e unificação do mercado interno, verificando-se alterações nos padrões de consumo dos assalariados.

No campo, consolidou-se a grande empresa capitalista favorecida pela política de financiamento, isenções e incentivos fiscais, créditos a juros baixos para aquisição de máquinas e implementos agrícolas modernos.

Na esteira do slogan "Exportar é a solução", imensas regiões foram ocupadas com programas de expansão agropecuária para exportação. Além dos produtos tradicionais como café, algodão e açúcar, outros produtos encabeçaram a lista das exportações, a exemplo da soja que, em poucos anos, tomou conta de vastos territórios da região Sudeste, ocupando terras antes destinadas à produção de alimentos básicos para o mercado interno, como arroz, feijão e milho.

O processo de capitalização no campo, com a mecanização da produção, o predomínio do trabalho assalariado e a concentração da propriedade da terra, foi acompanhado por violenta expropriação e expulsão de milhões de pequenos proprietários e trabalhadores rurais das terras e das fazendas e pelo intenso êxodo para as cidades.

Nos moldes em que a economia brasileira estava inserida no sistema capitalista mundial, o chamado "milagre" estava intimamente ligado à entrada maciça de capitais estrangeiros, seja em forma de investimentos, seja em forma de empréstimos, crescendo o endividamento externo.

Bilhões de dólares foram tomados emprestados no exterior para sustentar a política financeira, os subsídios, os financiamentos das estatais e das empresas privadas, os projetos faraônicos, os custos das importações, o pagamento dos juros e royalties.

Por conta das garantias proporcionadas pelo regime político e pela certeza de lucros fabulosos, os bancos internacionais tinham dado "sinal verde" à liberação de créditos ao "País do milagre". "Em 1972, o Brasil ultrapassou o Japão como maior tomador de empréstimos do Export-Import Bank dos Estados Unidos e tornou-se a maior nação devedora do Banco Mundial" (Davis, 1978, p. 67).

Entre 1969 e 1973, a dívida externa pulou de 4 a 12 bilhões de dólares e continuou crescendo cada vez mais nos anos seguintes. No final da década estava em torno de 60 bilhões de dólares, saltando para 100 bilhões em 1984, uma das maiores dívidas externas do mundo.

Em pleno "milagre econômico" (1972), 52,5% dos assalariados recebiam menos de um salário mínimo, piorando a situação nos anos seguintes. Em 1975, "para cobrir os gastos básicos, considerados mínimos, com nutrição, moradia, transporte, vestuário etc., o trabalhador que recebe salário mínimo deveria atualmente trabalhar 466 horas e 34 minutos mensais, isto é, 15 horas e 55 minutos durante 30 dias por mês" (Camargo, 1976, p. 45). No esforço de garantir o mínimo para sobreviver, os trabalhadores foram obrigados a multiplicar as horas extras e mais membros da família entraram no mercado de trabalho (mulheres e menores).

As mulheres acumulam a dupla jornada de trabalho (dentro e fora de casa) e no emprego se defrontam com a discriminação sexual e econômica - salários menores, dificuldades de arrumar emprego para as casadas, demissão de gestantes, prepotência das chefias.

Os filhos menores são obrigados a abandonar os estudos e são impelidos para empregos mal-remunerados ou para as ruas, engrossando o contingente dos que aprendem a "se virar" no mundo marginal. Só na Grande São Paulo, em 1971, 20% dos menores em idade escolar (dos 7 aos 14 anos) estavam fora das escolas (cf. Camargo, 1976, p. 93).

Na fábrica impera rígida disciplina imposta por normas draconianas de produção e pela permanente vigilância dos chefes. O clima é tenso e há um sistema ostensivo de repressão contra qualquer forma de organização e manifestação de rebeldia dos operários. A ausência de estabilidade no emprego aumenta a rotatividade, a insegurança e a competição entre eles. A intensificação do ritmo de trabalho e as horas extras provocam desgaste físico e exaustão emocional. A jornada de trabalho se estende para 14/15 horas, incluídas as horas passadas na condução, pois o deslocamento casa-emprego ficou cada vez mais longo. Os ônibus e trens circulam em condições precárias e transportam o dobro da lotação máxima prevista. Dependurados nas portas, vão os "pingentes".

Obrigados a procurar moradia mais barata, a maioria dos trabalhadores mora em favelas e cortiços espalhados pela cidade e nos distantes bairros da periferia. Ali, nas vilas e nos loteamentos clandestinos, falta tudo: água, esgoto, luz, calçamento, transporte, posto de saúde, creches, escolas. É nestes verdadeiros acampamentos sem infra-estrutura que moram operários da indústria e da construção, empregadas domésticas, ambulantes, office-boys, antigos e novos migrantes, paus-de-arara e bóias-frias.

Para os migrantes que chegam expulsos do campo, a cidade continua sendo o lugar onde há mais chances de encontrar trabalho, embora lhes sejam destinados empregos sem qualificação e mal-remunerados. Muitos estão só de passagem e moram em barracos improvisados enquanto dura o serviço incerto e temporário que arranjaram.

Iguais a eles há muitos outros peregrinando no campo, assalariados temporários, por dia ou serviço.


Trecho das páginas 12 a 19 do livro cuja capa ilustra a postagem. Clique aqui para comprá-lo.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

TRABALHADORES X COMUNIDADE

Alguém me esclareça uma dúvida: trabalhadores de qualquer categoria não fazem parte da comunidade? Não têm famílias a dar de comer e beber? Não moram na cidade, não pagam IPTU, não VOTAM?

Então como entender a oposição feita por alguns jornais acreanos - de outros Estados também - entre interesses de trabalhadores e interesses da comunidade, todas as vezes que há um protesto sindical? Como se fossem núcleos populacionais distintos?

Até parece que a luta por condições de trabalho para a categoria em mobilização não significa precisamente melhores serviços para todos.

A comunidade que viu o protesto dos motoristas e cobradores de ônibus no Terminal Urbano de Rio Branco na semana passada é na verdade inteiramente formada por trabalhadores de outras categorias, muitas sem sindicatos atuantes. Outras, informais, sequer têm representação sindical.

É evidente que só uma extraordinária necessidade de mistificação da realidade explica tamanho lapso. A mesma necessidade que levou o prefeito, Raimundo Angelim (do Partido dos Trabalhadores!), a dizer, comentando a manifestação supra:

“Agora, o que não podemos admitir é que um grupo pequeno de trabalhadores esteja dificultando este processo, fazendo baderna na cidade. Nossa equipe de articulação tem conversado com todos os setores envolvidos e não tem faltado diálogo. Então, bagunça nós não vamos admitir. Diálogo, sim. Bagunça, não. Porque só quem perde é a comunidade” - declaração do prefeito de Rio Branco (AC), Raimundo Angelim, disponível no site A Gazeta.net e na página da própria Prefeitura. (grifos meus)


Vejam que a polarização entre "comunidade" e "trabalhadores", que parecia exclusividade da mídia - e da direita - está também na fala do prefeito (e, portanto, no seu ideário). A questão, porém, é um pouco mais grave.

Como se explica que um prefeito do Partido dos Trabalhadores (PT) classifique como "bagunça" um protesto de pais e mães de família que foram demitidos injustamente e só querem voltar a trabalhar? Como se explica, se foi o apoio e associação a esse exato tipo de protesto que deu ao PT a chance de chegar aos mais altos postos da política acreana e nacional?

Angelim tem todo o direito aos louvores, gabações, tapinhas nas costas e outras falsidades que desejar, e não tanto por sua - admito - excelente administração. É porque ele logrou obter legalmente, segundo afirma, a readmissão de 70% dos 400 cobradores e motoristas demitidos pela Empresa de Transporte São Roque, por participar de uma greve em 2010.

A questão então é: os 30% que ficarão no olho da rua, sem direito a indenização trabalhista (eles foram enquadrados na demissão por justa causa), devem ser impedidos de fazer a mais mísera baguncinha. Não podem se movimentar para não eclipsar a aura grisalha de seu salvador, que já rebrilha, como sempre, nos nossos digníssimos meios de comunicação.

A conferir: o que vão fazer com os miseráveis que não calarem a boca? Chamar a Polícia Militar pra descer porrada?

O que a comunidade vai achar?




A foto é dos trabalhadores de imprensa lotados na Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Rio Branco.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

PEQUENA E GRANDE POLÍTICA

"Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você" - Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal.


Desconfio profundamente de qualquer indivíduo que diz lutar por transformações sociais exclusivamente à base de lições de moral. A subordinação da realidade ao ideal pessoal de moralidade, subjacente a essa tarefa, tende a criar o que a Psicanálise chama de complexo de Messias.

Invariavelmente, por trás de pregações doutrinárias sobre o desajustamento ético do mundo e coisas do tipo, reside uma inconfessável necessidade de ter poder.

Felizmente esse tipo de "crítica" tem maneirismos exclusivos que permitem aos mais atentos diagnosticá-la. Primeiro: permite alianças com os próprios criticados (no fundo é esta a sua ambição). O outro é usar quase sempre o famoso argumentum ad hominem (por exemplo, usar um fato da vida pessoal de alguém como argumento em um debate).

Exploração, injustiça, violência, toda a miséria do mundo em que vivemos hoje são fenômenos reais com vítimas também reais. Se há algo que pode ser apreendido da história de todas as revoluções é que estas sempre são movimentos contra situações opressivas que afetam a cotidianidade das pessoas, não idealizações morais por mundos inexequíveis.

Idealizações morais são ótimas para aumentar o prestígio pessoal, obter fama, ganhar dinheiro etc. Isso se faz criando seitas, que podem ser individuais, religiosas ou políticas. E se essa prática tem efeito nulo sobre os problemas reais que afligem a maior parte da sociedade, entre seus simpatizantes há um cultivo interessante pela tirania interpessoal, pelo chiste e pela fraqueza de caráter.

Passo, então, a escrever para quem acha que me converti ao capitalismo (o itálico é proposital).

Desde a Revolução Americana (1776), passando pela Revolução Francesa (1789) até a Revolução Russa (1917), todas as insurgências que implantaram novas formas societais tiveram a mesma característica: a existência, na sociedade em crise, de formas embrionárias por meio das quais as novas sociedades se organizariam.

O ímpeto revolucionário, qualquer um, nunca se organizou por meio "do que será". Sempre foi motivado "contra o que existe", "contra o que está aí".


Este é o motivo pelo qual as pessoas se mobilizam hoje por causas que nem sempre são suas: direitos da mulher, dos gays, dos deficientes etc. São causas válidas não porque são belas ou morais, mas porque a violência a mulheres, gays e deficientes ocorre de fato e de fato comove a maioria de nós.


Da mesma forma, revoluções políticas eclodem quando os trabalhadores percebem, mesmo parcialmente, que seu trabalho dirige-se ao enriquecimento alheio e que esta é a causa mesma da concentração de renda que distribui violência e miséria. Que a acumulação de capital só é possível por meio da apropriação do seu próprio trabalho.

Grécia, Tunísia e Egito acordaram recentemente para esta realidade. Falta mais gente.