É com grande prazer que reproduzo aqui entrevista do Brasil de Fato ao professor Oswaldo Sevá, que conheci em 2007 num evento da UFAC sobre as ameaças de prospecção de petróleo nas Terras Indígenas próximas ao Parque Nacional da Serra do Divisor, no Vale do Juruá.
Sevá é um desses estudiosos incansáveis dos impactos sociais e econômicos das grandes obras do excurso neodesenvolvimentista adotado pelo governo federal. Em tempos de idiotização intelectual, como se todos os fenômenos que nos produziram enquanto sociedade não fossem suficientemente claros, vale lembrar um velho dito: a história (acreana, no caso) pode sim se repetir; agora não como tragédia, mas como farsa...
“Ofensiva do capital contra os povos indígenas e camponeses é global”, observa Oswaldo Sevá
Spensy Pimentel e Joana Moncau
Engenheiro e doutor em geografia, o professor Oswaldo Sevá tem sido, nas universidades brasileiras, um dos principais aliados dos movimentos sociais em suas lutas contra os grandes projetos de “desenvolvimento”, como usinas hidrelétricas, minas e estradas. Trata-se de empreendimentos que ele, em seus cursos na Universidade de Campinas (Unicamp), chama de “conflitos atuais da acumulação primitiva”. A maior luta em que está envolvido atualmente é contra a megausina de Belo Monte, no rio Xingu, paraíso da bio e da sociodiversidade em plena Amazônia, agora ameaçado por esse projeto dos tempos da ditadura civil-militar que foi atualizado e desengavetado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde os anos 80, Sevá publica estudos críticos ao projeto, demonstrando suas falhas e inconsistências. Na entrevista a seguir, o professor mostra que o atual cenário de conflitos socioambientais tem, na realidade, uma amplitude global, representando um desafio para os movimentos sociais de todo o mundo. E adverte: “A ameaça também é muito grave quando os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à expropriação”.
É possível perceber na atualidade uma ofensiva de alcance latino-americano desses projetos de exploração de recursos naturais em terras comunitárias (camponesas/indígenas)?
Oswaldo Sevá – Sim, é uma ofensiva com grande preferência pelas américas Central e do Sul, mas que também assola várias regiões da África, da Ásia e da Oceania. Mas é uma ofensiva global, pois envolve agentes econômicos e políticos de muitos países, agentes que raciocinam e decidem com o “mapa mundi” aberto numa grande mesa ou numa grande tela digital. É uma ofensiva capitalista, e não podemos omitir nem esquecer esse nome, porque se trata de tentar superar mais uma das grandes crises estruturais do sistema capitalista. No caso, dizem os estudiosos como Harvey e Arrighi, é uma crise de super-acumulação, uma crise financeira, uma demonstração exuberante da famosa lei da “queda tendencial das taxas de lucro”. Por isso, os alvos preferenciais da ofensiva são as localidades e regiões com recursos naturais considerados estratégicos. E aí se criam projetos de investimentos considerados capazes de gerar taxas de retorno altas – o que obviamente depende de custos econômicos e de custos sociais, e depende da possibilidade de concretizar, novamente, o “velho” mecanismo da acumulação primitiva, que nunca deixou de atuar. Os grandes oligopólios que controlam a eletricidade e os equipamentos elétricos, os minérios e a metalurgia, o agronegócio, o petróleo e o gás, a celulose e papel, estão há algumas décadas estudando minuciosamente as possibilidades de novas fontes desses materiais e energias e esquadrinhando com métodos sofisticados os novos territórios onde produzir tais mercadorias. Anunciam investimentos similares ao mesmo tempo em todos os lugares, por exemplo, hidrelétricas para barrar todos os rios ainda barráveis em muitos países, incluindo até mesmo alguns dos países mais antigos e mais ricos, como os europeus. Por exemplo, anunciam a abertura de novas minas de ferro, manganês, ou de níquel, cobre, zinco, cromo, mas principalmente minas de ouro, prata, platina e metais mais raros como o nióbio, em várias regiões do mundo ao mesmo tempo. O primeiro passo para conseguir concretizar cada um desses investimentos – ao contrário do que muitos argumentam, não é o financiamento, pois de algum modo sobra capacidade de investir no sistema global – é a conquista dos territórios. Que, em geral, já têm ocupantes, donos e usuários anteriores, em alguns casos, muito antigos, grupos humanos secularmente estabelecidos. Suas terras devem ser agora “liberadas” para barragens, novas minas ou grandes plantios de eucaliptos ou palmeiras ou soja, e estradas e ferrovias que os conectem ao mercado mundial. Aí, os moradores e os vizinhos desses locais escolhidos pelo grande capital devem ser expropriados e transformados em proletários, uma parte deles em assalariados, que somente conseguirão sobreviver no mercado e para o mercado. Essa é a ofensiva.
Como classifica o grau dessa ameaça?
É muito grave, pois o sistema capitalista sob ameaça retoma suas origens autoritárias, as empresas gastam cada vez mais com a segurança do patrimônio, dos executivos e dos homens de campo, empregam cada vez mais intermediários da coação sobre os povos, informantes que na prática fazem contrainformação, rastreando os movimentos legítimos e libertários, agem por meio de capangas para rastrear e intimidar esses dissidentes e resistentes. O capital se apossa ainda mais dos postos de governo nas três esferas – Executiva, Legislativa e principalmente no Judiciário. Enquanto aumentar o poderio das grandes empresas, as duras conquistas democráticas serão corroídas e derrubadas, restando para a sociedade uma intoxicação de propaganda institucional, as empresas se autovangloriando, alardeando “responsabilidade social”, “sustentabilidade”. As mesmas corporações que dependem da expropriação e da violência usam o dinheiro público, isenções de impostos para exercer o mecenato, patrocinar e usufruir da promoção de sua imagem nas atividades culturais, esportivas, musicais, cinematográficas etc.
Quais os casos mais graves, em sua avaliação?
Considerar situações sociais mais ou menos graves depende muito do acesso à informação sobre o que ocorre, o que é dificultado pela própria ofensiva comentada, e depende, claro de escalas de valor ético. Acho que são mais graves os casos em que as pessoas estão sendo desalojadas à força, em que os antigos moradores, sejam indígenas, ou afrodescendentes, ou simplesmente famílias rurais e até mesmo pequenos proprietários, são removidos contra a vontade e vão para a diáspora, para “reassentamentos” quase prisionais, vão para as novas favelas das cidades. São muito graves os casos em que o suprimento de água da população, ou o “Riego” secularmente compartilhado entre vizinhos, ficou ou vai ficar comprometido em quantidade e qualidade. É fatalmente o que se passa na região onde são abertas minas de ouro, pois a mineração e a concentração do metal usam muita água, secam os lençóis, contaminam o solo e o subsolo e destroem ou envenenam os cursos d’água, diminuindo ou acabando com a pesca. E são igualmente graves os casos em que haverá fome porque se perdeu a terra de plantio, ou a mata de colheita e caça, o rio onde se pesca.
Essa insistência dos governos em realizar grandes projetos hidrelétricos justifica-se na conjuntura atual de crise climática/econômica?
A insistência que você pergunta existe, mas não é dos governos, é por meio dos governos. Ou seja, é uma insistência que tem origem na grande dependência que têm alguns setores industriais em relação à eletricidade para uso em seus processos produtivos, é o caso do alumínio, do cobre, do níquel, dos metais em geral, da celulose e seus produtos, de alguns ramos da química, como cloro-soda. Mais do que isso, é a insistência das empresas desses setores em reduzir na sua planilha de custos o grande peso que tem a energia elétrica, e aí vão atrás de novas fontes que sejam “baratas”, ou seja, nas quais os custos fundiários, sociais, ambientais sejam reprimidos para baixo; e, principalmente, vão atrás de condições propícias à celebração de contratos lesivos aos países “anfitriões” desses projetos. Foi o que ocorreu há quase 30 anos com a eletricidade de Tucuruí no Brasil, e que está delineado agora com a eletricidade do rio Madeira.
Trata-se, realmente, de “energia limpa”, como se costuma dizer?
Bem, sou professor na área de Energia há mais de 20 anos, me formei em Engenharia Mecânica. Posso responder de modo simples, fundamentado apenas na ciência da Termodinâmica, que é um ramo importante da Física, que estuda o calor e o frio, as máquinas que transformam as energias naturais em trabalho útil. Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é “gerada” como dizem os economistas, os políticos e jornalistas desinformados. A energia é apenas transformada de um tipo em outro, sucessivamente. O montante total se conserva e em cada transformação uma boa parte se perde, se degrada, não podendo ser novamente obtido o mesmo total de trabalho útil. Portanto, não existem energias “renováveis”. De modo similar, existe a lei da conservação da massa e dos fluxos de massa, das vazões: tudo que entra num sistema tem que sair, de um modo ou de outro; se sair menos é porque se acumulou lá dentro, se sair mais é porque havia um estoque que foi usado. Portanto, não há como produzir nada de forma “limpa”; toda operação produtiva produz resíduos sólidos, líquidos ou gasosos. Mesmo uma hidrelétrica construída em cima de um solo estéril emitirá vapor d’água por causa da insolação e da evaporação e gases da fermentação da matéria orgânica trazida pelo rio. Se a represa de uma hidrelétrica tiver vegetação na área alagada, produzirá muitos gases de fermentação, do apodrecimento dessa vegetação, inclusive o gás metano, que é um dos gases que desequilibra o efeito-estufa natural do planeta. insisto na resposta: não há nada renovável, nada limpo. E vou além: mesmo que tecnicamente fosse possível, esses valores nunca nortearam o capitalismo. Se assim fosse, nunca teriam existido na proporção de hoje os depósitos de lixo urbano, o lançamento de esgoto bruto nos rios e litorais, a poluição do ar, a contaminação do solo com resíduos perigosos.
Quais interesses estão, geralmente, ocultados aí?
Transformar o interesse dos oligopólios e a luta deles pela sua permanência e crescimento em um valor geral, em interesses de toda a sociedade. A meta privada travestida em objetivo público. A não explicitação do vínculo íntimo entre os “políticos” e os “empresários”, entre a Política e a Economia; e por aí vamos nesse período histórico que mais parece uma “Idade Média” obscurantista: Estado fica sob o foco o tempo todo, e as empresas estão “fora do alvo”... No caso brasileiro, a eletricidade, a mineração, a siderurgia, o petróleo, dentre outros, são os setores civis onde a ditadura militar continua, se aperfeiçoa, renova os quadros e a mentalidade dominadora, antidemocrática.
O discurso em favor desses empreendimentos (mineração/energia/transportes) que afetam terras de populações camponesas/tradicionais em geral opõe um “interesse nacional” à resistência de uma “minoria que não pode prejudicar o desenvolvimento para uma maioria” – sem falar em recorrentes componentes xenófobos/conspiratórios que apelam a uma “suposta ameaça estrangeira”. Esse discurso se sustenta?
Isso tem a ver com o que eu dizia. É uma tentativa obsessiva de dissimulação, uma espécie maligna de autodesconstrução: acusar os outros de fazerem aquilo que as próprias corporações fazem. Numericamente são, sim, minorias que moram nos territórios escolhidos para os projetos de investimento; mas os beneficiários não são a maioria do país, e sim as minorias mais ricas, os grandes proprietários, o sistema financeiro. Porque o sistema não desconcentra com esses investimentos e, sim, concentra terras, patrimônios, rendas, tudo. Conhecemos no Brasil esse tipo de discurso maligno: é o dos dirigentes da nossa Agência Nacional de Energia Elétrica, do nosso Ministério de Minas e Energia, da tropa de choque da “dam industry”. Ficam difundindo essa coisa de “investimento estruturante”, “estratégico”, falam em “segurança energética” – expressão que vem dos EUA, com sua dependência de petróleo importado. E daí preparam o terreno para uma desregulamentação total, para o licenciamento acelerado e garantido de qualquer obra, ou melhor ainda, para que se possa qualquer coisa sem licenciamento. O “componente xenófobo” que você menciona acho que é a hipocrisia ao extremo, uma manobra retórica inteligente a curto prazo, funciona para a opinião pública de tendência direitista e uma parte dos patriotas mesmo de esquerda. No caso da Amazônia brasileira, os territórios já estão sendo internacionalizados pelo capital e pelas Forças Armadas e de inteligência dos países mais fortes, que tudo monitoram. E também pelos biopiratas, pelos compradores de terras e de florestas. Mas não se pode negar que atuam também ONGs e missionários de igrejas que, de fato, fazem o jogo das multinacionais.
Quais os cenários que se descortinam em relação ao quadro?
A situação futura será mais grave onde a população está hoje mais desinformada, desmobilizada, manipulada por coronéis à moda antiga, ou então, amedrontada por um passado de repressão. Mas a ameaça também é muito grave quando os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do capitalismo, e usam o seu capital político e cultural para amainar as críticas e flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam resistindo à expropriação.
Aí o Brasil da década de 2010 será um antiexemplo, o Brasil que foi presidido durante oito anos por um ex-sindicalista, eleito pela esquerda, embora não tenha feito um governo de esquerda, um país que agora elegeu presidente – apesar de uma grande soma de abstenção e voto nulo e branco – a “mãe do PAC”, a senhora-propaganda da “Aceleração do Crescimento”. É incrível o realismo da linguagem, pois nem se coloca mais o desenvolvimento como conceito-chave, e sim o crescimento. Crescer somente não basta, como se 3 ou 4 % ao ano não fosse já uma vitória num mundo em crise, isso tem que ser “acelerado”. A ideia da aceleração é exatamente o que o sistema busca desesperadamente – contrariar a queda da taxa de lucro, obter retornos, lucros extraordinários. Voltamos assim à primeira resposta: a ofensiva é para tentar desafogar o excesso de capital. Por causa da desigualdade, do dogma antidistribuição, da despesa crescente do próprio ato de comandar e preservar privilégios, o capital encontra cada vez mais impossibilidade de se realizar fechando o ciclo da acumulação.
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