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PEQUENA E GRANDE POLÍTICA

"Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você" - Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal.


Desconfio profundamente de qualquer indivíduo que diz lutar por transformações sociais exclusivamente à base de lições de moral. A subordinação da realidade ao ideal pessoal de moralidade, subjacente a essa tarefa, tende a criar o que a Psicanálise chama de complexo de Messias.

Invariavelmente, por trás de pregações doutrinárias sobre o desajustamento ético do mundo e coisas do tipo, reside uma inconfessável necessidade de ter poder.

Felizmente esse tipo de "crítica" tem maneirismos exclusivos que permitem aos mais atentos diagnosticá-la. Primeiro: permite alianças com os próprios criticados (no fundo é esta a sua ambição). O outro é usar quase sempre o famoso argumentum ad hominem (por exemplo, usar um fato da vida pessoal de alguém como argumento em um debate).

Exploração, injustiça, violência, toda a miséria do mundo em que vivemos hoje são fenômenos reais com vítimas também reais. Se há algo que pode ser apreendido da história de todas as revoluções é que estas sempre são movimentos contra situações opressivas que afetam a cotidianidade das pessoas, não idealizações morais por mundos inexequíveis.

Idealizações morais são ótimas para aumentar o prestígio pessoal, obter fama, ganhar dinheiro etc. Isso se faz criando seitas, que podem ser individuais, religiosas ou políticas. E se essa prática tem efeito nulo sobre os problemas reais que afligem a maior parte da sociedade, entre seus simpatizantes há um cultivo interessante pela tirania interpessoal, pelo chiste e pela fraqueza de caráter.

Passo, então, a escrever para quem acha que me converti ao capitalismo (o itálico é proposital).

Desde a Revolução Americana (1776), passando pela Revolução Francesa (1789) até a Revolução Russa (1917), todas as insurgências que implantaram novas formas societais tiveram a mesma característica: a existência, na sociedade em crise, de formas embrionárias por meio das quais as novas sociedades se organizariam.

O ímpeto revolucionário, qualquer um, nunca se organizou por meio "do que será". Sempre foi motivado "contra o que existe", "contra o que está aí".


Este é o motivo pelo qual as pessoas se mobilizam hoje por causas que nem sempre são suas: direitos da mulher, dos gays, dos deficientes etc. São causas válidas não porque são belas ou morais, mas porque a violência a mulheres, gays e deficientes ocorre de fato e de fato comove a maioria de nós.


Da mesma forma, revoluções políticas eclodem quando os trabalhadores percebem, mesmo parcialmente, que seu trabalho dirige-se ao enriquecimento alheio e que esta é a causa mesma da concentração de renda que distribui violência e miséria. Que a acumulação de capital só é possível por meio da apropriação do seu próprio trabalho.

Grécia, Tunísia e Egito acordaram recentemente para esta realidade. Falta mais gente.

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