A seguir, adapto um comentário que fiz sobre o post "Uma concepção autoritária de Estado laico e um discurso que legitima a violência", de Gutierres Fernandes Siqueira, no blog Reflexões teológicas acerca da doutrina e espiritualidade do pentecostalismo, bem aqui. É necessário ler o texto do link para poder entender o meu.
A perspectiva do autor lembra a demissão da Maria Rita Kehl do jornal O Estado de S. Paulo. O princípio é o mesmo. OESP alegou, na época, "incompatibilidade editorial", mas demitiu por conta de um artigo que contrariou a estratégia política do jornal. Colocar a demissão numa "zona de penumbra" é estratégico, pois dificulta constatar o motivo. Você pode escrever uma aberração qualquer, mas não pode colocar em xeque a estratégia social do veículo. Atualmente, todos os jornais funcionam assim porque todos dão suporte a grupos políticos que buscam, acima de tudo, o poder de convencer.
A questão de que africanos ou afrodescendentes são humanos desprovidos de humanidade por conta da maldição de Noé foi utilizada historicamente, sim, para justificar o tráfico negreiro. Há vários artigos científicos a respeito. Obviamente, e como a escravidão no Brasil perdurou até o século XIX, as consequencias dessa perspectiva ainda se fazem presentes em teologias atuais. Ou seja, não é só uma "bobagem do Feliciano", é um fenômeno social que o abrange e o ultrapassa.
Outra coisa é a exploração de mão-de-obra por empresas chinesas dentro do sistema de mercado (empresas privadas) no continente africano. Aqui o mito de Noé não se aplica, a lógica da exploração é outra. São relações de exploração privadas do trabalho, as mesmas que empresários brasileiros aplicam a trabalhadores na Bolívia, por exemplo. Detalhe: muitas dessas empresas têm sede na China, mas não são chinesas. A maior parte é norte-americana (que foram para lá justamente em busca da mão-de-obra chinesa abundante e barata). Algumas, inclusive, contratam milícias armadas para acalmar os ânimos dos trabalhadores nos canteiros de obras africanos.
E por "ditadores que escravizam países há décadas", a pretexto ou não do socialismo, há uma farta produção teórica. E grande parte da agenda de lutas do que se chama "esquerda" tem sido, há muitas décadas, pela libertação de povos do escravismo, do imperialismo etc.
Quanto ao anti-americanismo, o pentecostalismo é um fenômeno norte-americano importado pelo Brasil precisamente sob relações de colonização cultural. Não houve um desenvolvimento pentecostal no Brasil, houve missões estrangeiras que o trouxeram para cá, assim como trouxeram o catolicismo anteriormente, sendo que havia religiões anteriores, línguas anteriores, culturas anteriores plenamente desenvolvidas.
As próprias bíblias de estudo pentecostais são traduções mal-feitas de edições norte-americanas. Essas bíblias norteiam a perspectiva teológica pentecostal no Brasil e dão substância a valores historicamente datados (criados para consubstanciar uma determinada visão política), como, por exemplo, a escravidão como subproduto da maldição de Noé.
Vide, por exemplo, as notas de rodapé das bíblias pentecostais norte-americanas em Gênesis 9:25, disponíveis aqui.
Apoiar o governo do PT não coloca nenhum partido à esquerda no espectro político brasileiro. Fosse assim o PMDB seria esquerda, já que apoia o governo Dilma, assim como o PP, que foi base de apoio durante a ditadura militar. O que dá base à comparação entre a direita religiosa norte-americana e a bancada evangélica no Congresso é a sua agenda política, seu programa partidário. E, nisso, ambas são idênticas (têm que ser, considerando os fatores supra).
Deve-se a essa agenda, inclusive, o que se define como parcelas sociais de risco: mulheres, negros, homossexuais etc. Ou seja, o que se define (equivocadamente) como minoria é a maioria do povo brasileiro, mas uma maioria sob violência constante, simbólica ou real, uma vez que fatores ideológicos consideram que tais grupos devem exercer papéis sociais secundários no campo religioso e, como se não bastasse, estendem tais interpretações à vida pública, à res publica.
É por isso que a "instituição da vítima" não cabe ao evangélico, até porque é uma religião que cresce com todas as garantias legais e sem qualquer aparato repressor estatal desde a sua origem. O que há é uma oposição sistemática no campo das opiniões justamente devido a essas práticas, fenômeno que se interpreta, equivocadamente, e por parte dos próprios evangélicos, como "preconceito a evangélicos". Em outras palavras, esta definição é inadequada para descrever a oposição a valores que, embebidos de uma interpretação moral estrangeira, tentam saltar da esfera privada da religião para a vida pública, coletiva, civil.
E isto nos remete à questão do Estado laico. A definição do artigo está correta, só desconsidera que, historicamente, ela vem sendo sistematicamente descumprida. A própria ideia de uma bancada evangélica, ou de evangélicos que norteiam o mandato segundo a sua concepção religiosa já é frontalmente anti-laicidade. Assim como é anti-laicidade que uma interpretação sobre a maldição de Noé ao neto seja usada, no século XIX e hoje, para substanciar a relativização da dignidade de seres humanos.
A solução, ao meu ver, seria abolir partidos políticos com programas religiosos. Religião é o campo da vida privada, da confissão, da fé. Assim, deve-se garantir ou reafirmar todas as formas de culto e crença, inclusive em suas manifestações sociais, passeatas etc. Mas não se pode admitir que um princípio religioso reivindique um status político, porque isso viola a ideia de laicidade mencionada pelo próprio autor. Uma moral religiosa é sempre particular, é questão de fé.
O problema, nesse caso, seria teológico: cristãos, muçulmanos e judeus compartilham a ideia de que suas respectivas religiões são verdades reveladas, não devendo se submeter a
leis humanas no esforço evangelizatório. Ou seja, nesses três modelos a esfera pública é algo a ser evangelizado, convertido.
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Não há, portanto, a perspectiva de que a religião é uma interpretação entre outras possíveis. Essa interpretação é contemporânea, nasceu com a democracia. Por isso, é igualmente alienígena ao cristianismo, ao judaísmo e ao islamismo.
Um problema derivado disso é: o que fazer com concepções religiosas eivadas de colonialismo cultural? Ou, para um desafio teórico mais amplo: há uma religião que não seja derivada de algum colonialismo cultural? Mais ainda: cristianismo, judaísmo e islamismo se manteriam como sistemas doutrinários se começassem a se perceber como religiões, como confissões, entre outras possíveis (eu tenho a impressão que sim)?
Por fim: a questão de como definir objetivamente a verdade se todas as proposições são interpretações da mesma foi um problema epistemológico muito bem sintetizado pelo "princípio da carruagem" de Max Weber. Trata-se, porém, de questão respondida nos seguintes termos: se toda apreensão da realidade é aproximativa, a interpretação mais próxima (da verdade) é aquela que melhor traduz os interesses materiais em disputa.
Conferir, a esse respeito, Adam Schaff (História e verdade), Gyorgy Lukács (História e consciência de classe), Michael Löwy (As aventuras de KM contra o barão de Münchausen) etc.
PS - A frase atribuída a Sartre está errada. E o sentido também.
Atualização às 14h57: Meu interlocutor informa que não entendeu o paralelo entre a demissão de Maria Rita Kehl e de Ricardo Gondim, acrescentando, porém, que o jornal em questão foi O Estado de São Paulo, e não a Folha de São Paulo. Correto, como se pode ver nesta entrevista da psicanalista ao Terra Magazine. Alteração feita no texto.
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