domingo, 10 de março de 2013

A MALDIÇÃO DE CAM



A bíblia narra, em Gênesis 9:18-27, a maldição do patriarca Noé ao neto, Canaã. Noé foi flagrado bêbado e nu pelo filho, Cam, e, irritado, condenou o filho deste, Canaã, a ser escravo dos irmãos Cuxe, Mizraim e Pute e também dos tios Sem e Jafé.

Ainda segundo a bíblia, descendentes de Canaã se proliferaram em duas frentes: uma ocupou a região onde é hoje o Estado de Israel e outra foi para o sudeste da África. E é aqui onde a história fica interessante.

A escravidão, fenômeno antigo na história humana, ganhou força nas américas com a chegada dos europeus. A pilhagem dos recursos do novo continente enriqueceu as cortes europeias e exigiu que a igreja legitimasse o escravismo africano.

Em 1452, o papa Nicolau V (1397-1455) emitiu a bula Dum Diversitas, autorizando os reis da Espanha e de Portugal a escravizarem não-cristãos. O papa mirava os povos do Oriente Médio, que resistiam ao evangelho e suas cruzadas, mas a medida beneficiou os traficantes negreiros a partir do século XV. Porém, desde 324 a igreja proibia, sob pena de excomunhão, que se ajudasse na fuga de escravos.

Apesar de aceitar a escravidão como força de trabalho legítima, o poder papal não a justificava com a narrativa bíblica sobre o desafortunado Canaã. Oficialmente, para a Santa Sé, a escravidão era uma questão de "costume dos povos". As frentes missionárias nos países do Novo Mundo pensavam de forma diferente. Uma carta do padre jesuíta Manuel da Nóbrega (1517-1570), por exemplo, afirma: “Por serdes descendentes de Can e terdes descoberto a vergonha de seu pai deverão os negros serem escravos dos brancos por toda a eternidade”.

A versão dos missionários traz uma dupla corruptela, uma dificuldade que os papas souberam contornar. Primeiro: Noé amaldiçoou o neto, Canaã, e não o filho, Cam. Segundo: a maldição foi sobre Canaã, não sobre seus descendentes.

Apesar de contrariar a própria bíblia, foi a versão modificada que atravessou os séculos e passou a justificar toda forma de atrocidades contra escravos no Novo Mundo. Com o tempo, outra narrativa do livro sagrado, a do genocídio hebreu à cidade que tinha o mesmo nome do neto de Noé, Canaã, foi também atribuída à "maldição de Cam".

A nova versão ficou assim:

1 - o primeiro grupo de descendentes de Cam que se estabeleceu no Oriente Médio foi eliminado pelos hebreus, por ordem divina, para dar cumprimento à maldição de Noé (a trágica narrativa deste genocídio está no livro de Josué, na bíblia). Em 1948, no calor do fim da Segunda Guerra Mundial, o direito de posse do povo judeu sobre a região foi um dos argumentos usados por judeus para criar ali o atual Estado de Israel.

2 - o segundo grupo de descendentes de Cam, que ocupou partes da África (especificamente o Egito, segundo os livros de Salmos 78:51, 105:23-27 e 106:22 e I Crônicas 4:40), serviu para justificar a escravidão ao longo dos séculos XV e XIX. Considerava-se todos os africanos descendentes de Cam, e, como tais, responsáveis pela própria escravidão. A cor da pele, negra, reforçava a versão modificada da narrativa bíblica, servindo-lhe como "prova" - acreditava-se que a cor era a degradação da pele humana, resultante da maldição.

Hoje sabe-se que a África é habitada há cerca de 200 mil anos, bem antes da data atribuída pela própria bíblia ao dilúvio (em torno de 2.000 a.C). Sabe-se também que a variada pigmentação da pele e outras características físicas dos seres humanos (e de outros animais e plantas) resultam da adaptação dos corpos às condições naturais, como calor ou frio, escassez ou fartura de alimentos, variedades de nutrientes, relevos e outros. Com o advento da democracia, sabe-se que narrativas religiosas (e suas modificações) devem ter validade somente para quem nelas acredita, não se aplicando aos demais.

Nada disso impede que o pastor Marcos Feliciano, deputado e atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, propague como se fossem universais as suas concepções religiosas sobre afrodescendentes e homossexuais. Como ele, muita gente está também convencida de que negros são o resultado de uma maldição, homossexuais são uma ameaça à família, sexo antes do casamento invoca a ira divina etc. A força dessas narrativas é tão poderosa que muitos negros, homossexuais, mulheres e outros grupos submetem-se a elas por questões de segurança pessoal, mesmo que não sejam religiosos.

É outra questão, tema para outro artigo, mas a proliferação de crenças contrárias aos direitos humanos no âmbito religioso é um sintoma cristalino do preço que o Brasil paga, e vai pagar por alguns anos, da precarização do seu sistema educacional. Será necessário muito tempo, planejamento e investimentos para corrigir os estragos da agenda neoliberal que viabilizou, entre outras coisas, o protagonismo político de concepções fundamentalistas sobre a vida social. As forças que legitimaram Feliciano e seu eleitorado são as mesmas que, nos anos 80 e 90, levaram milhões ao desemprego e à miséria.

Há que se afirmar o básico, o caráter supra-religioso da democracia. Significa que democracia e religião podem conviver, mas a democracia não pode assimilar os valores morais de uma religião. Religiões abraâmicas têm enorme dificuldade de compreendê-lo, não foram criadas para isso. Não se consideram, por exemplo, opções de fé. Consideram-se, cada uma, verdades irrefutáveis com validade universal. Excetuadas as múltiplas interpretações pessoais, o indivíduo que professa outra crença é considerado, pelo religioso de ordem abraâmica, um condenado à danação eterna enquanto não se arrepender.

Este ponto de tensão, acentuado no caso do cristianismo pentecostal, não pode ser solucionado. Fazer com que os cristãos percebam que ele incentiva a exclusão, a miséria, a perda de direitos e outros problemas sociais, enquanto há recursos para combater tudo isso, é o grande desafio da geração atual. Felizmente não é muito difícil, para alguém racional, entender que é errado combater leis nacionais de controle da violência baseando-se na interpretação de uma religião, qualquer que seja.

Entender que alguém é negro porque foi amaldiçoado por Noé, além de ignorar histologia básica (que, infelizmente, só se aprende nos bancos escolares), reforça um mito criado para justificar um dos crimes mais hediondos de todos os tempos, a escravidão na África. Quem o defende utiliza os mesmos argumentos - depois da sangrenta epopeia da luta por direitos civis nas américas e na própria África - dos antigos traficantes de navios negreiros. De quebra, tambem mostra que ignora o que diz a própria bíblia sobre a maldição.

Para não justificar monstruosidades históricas, como fazem Feliciano e outros, deve-se compreender que qualquer religião vale para quem nela acredita e isto se faz pela fé. Ou seja, não se pode estender assuntos religiosos para a vida geral. Socialmente as pessoas são e devem ser diferentes na medida das suas escolhas individuais. Desconsiderar isso é o caminho mais rápido para uma ditadura, como já ocorreu na história do judaísmo, do islamismo e do próprio cristianismo.

Outra questão é o que fazer quando uma interpretação religiosa choca-se frontalmente contra os direitos elementares dos seres humanos. É possível, para este religioso, entender a sua opção religiosa como opção e não como verdade universal?

Há momentos em que interpretações religiosas evidenciam a sua origem dedicada a dominar a consciência de povos inteiros em prol de um país conquistador qualquer.

Este é um desses momentos.

Por isso escrevi esse artigo.

Se você é cristão, pense nisso.


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