Pular para o conteúdo principal

O COURO QUE NÃO DEU NO COURO

“Amazônia 20º andar” é mais uma história do jornalista Guilherme Fiuza sobre gente que todo mundo acha que conhece, até aprender, em livros que parecem de ficção, que suas vidas não cabem no cotidiano de um repórter.

Fiuza já virou pelo avesso a típica figura do traficante carioca, tirando-o do tiroteio nas favelas para um apartamento da Zona Sul em “Meu nome não é Johnny”. Agora, recruta nas melhores famílias da cidade os empresários João Augusto Fortes e Beatriz Saldanha para estrelar uma saga acreana nos seringais do Juruá, entre índios sedutores, viagens de canoa ou ayahuasca, pajés taumatúrgicos, intervenções miraculosas de São Raimundo Nonato em execuções sumárias e antropólogos que parecem formados na escola de Indiana Jones.

Parece mentira. Mas o fato é que João Augusto e Beatriz puseram de pé, nos anos 1990, um projeto visionário de salvar a floresta pela exportação de couro vegetal – uma liga artesanal de pano rústico com látex que, industrializada numa reserva extrativista com quase um milhão de hectares, saiu dos ombros de seringueiros no coração da selva para as vitrines da casa Hermès ao redor do mundo. Destinava-se a provar que a floresta é, em si, um grande negócio.

Enquanto deu certo, o produto foi parar em bolsas Hermès de quase dois mil euros. Quando deu errado, os artigos da linha Amazonia desbotaram nas mãos de consumidores japoneses e a firma cancelou abruptamente os pedidos, em 2002, temendo que o produto manchasse a reputação marca.

E os dois visionários do couro vegetal faliram no Rio de Janeiro. Beatriz Saldanha, a Bia da butique Cores Vivas em Ipanema, descobriu um dia, na boca do caixa, que não tinha mais sequer sua conta bancária. João Augusto, diretor da João Fortes Engenharia, que seu pai transformara num império da construção civil no Rio de Janeiro, foi morar numa casa de vila operária no bairro do Jardim Botânico. Mas isso é um resumo bruto das aventuras que eles viveram e, em parte, continuam vivendo.

Para chegar ao couro vegetal – ora como sócios, ora cada um por sua conta – eles entraram de cabeça nas grandes utopias que animaram o Brasil na década de 1980, com o país recém-saído do regime militar. Marcharam contra o desmatamento da Amazônia ao lado de Chico Mendes no calçadão do Leblon. Arrebanharam a multidão que abraçou a Lagoa Rodrigo de Freitas, uma inesquecível coreografia da força popular que deveria levar, mas não levou, o candidato Fernando Gabeira ao governo do estado. E trouxeram o Dalai Lama para a Eco-92. Foi há pouco tempo. Mas o Brasil daquela época parecia séculos mais jovem que o de hoje.

Tudo isso cabe na parte do livro que termina antes da página 30. A aventura propriamente dita vem depois, quando a dupla mergulha fundo na Amazônia, como personagens de um romance de Joseph Conrad procurando seus próprios limites nos confins da África. No caminho, percorrem fronteiras que parecem ficar muito além do Brasil – onde o Brasil, na prática, vai “mais ou menos até ali na Praia do Mu”, como esclarece, lá pelas tantas, o cacique Txai Macedo.

No fim, onde o país aparece ao vivo e sem cores de urucum, o livro revela o jornalista, por trás do roteirista de cinema. Aí se entende que os índios Yawananuá, por obra e graça do cacique Biraci, entregaram a um concorrente as encomendas pagas por Bia e João Augusto. Que o presidente do BNDES prometeu dar toda força ao projeto numa hora em que o banco já estava pronto para executar sua dívida. Ou que um marqueteiro promoveu o lançamento suntuoso do couro vegetal numa feira de Milão para vender, ao todo, seis peças. Em outras palavras, por que a realidade não deixa as boas intenções frutificarem na floresta amazônica.


Fonte: revista virtual O ECO. O texto foi publicado originalmente com o título "Amazônia versus boas intenções".

A foto mostra algumas bolsas feitas com couro vegetal - antes do desbotamento, claro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A XENOFOBIA NOSSA DE CADA DIA

Deixem-me entender. Em 11 de setembro passado houve uma tentativa de golpe civil na Bolívia, perpetrada pelos dirigentes de vários departamentos - equivalentes aos "estados" no Brasil - opositores ao presidente Evo Morales. Em Pando, departamento fronteiriço com o Brasil pelo Acre, cerca de 18 pessoas foram assassinadas e o número de desaparecidos ainda hoje é incerto. Por isso ainda em setembro a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) enviou ao local uma comissão de investigação composta por advogados, antropólogos, peritos criminais, jornalistas e outros profissionais de várias áreas e de vários países. A comissão visitou Cobija, Brasiléia e Epitaciolândia, conversou com os refugiados, com as famílias das vítimas e sobreviventes, visitou os locais de confronto, coletou provas materiais e depoimentos. Conclusão: houve mesmo uma tentativa de golpe (clique aqui para baixar o relatório final da Unasul). Estupros, torturas, assassinatos a sangue frio, racismo, houve de tudo um...

OS DEMÔNIOS DESCEM DO NORTE

Os movimentos autônomos de cunho religioso, notadamente os de cunho pentecostal e neopentecostal surgidos nos EUA desde meados do século XIX até a atualidade, são subprodutos de um capitalismo que necessitava de uma base ideológica para se sustentar em seus desatinos de exploração e criação de subsistemas para alimentar os mecanismos de dominação ideológica e manutenção de poderes da matriz do grande capital - os Estados Unidos. Na década de 70 praticamente todos os paises da América Latina estavam sob o domínio de sanguinárias ditaduras militares, cuja ideologia de cunho fascista era a resposta política à ameaça da Revolução Cubana que pretendia se expandir para outros países do subcontinente. Era o tempo da Teologia da Libertação, que, com seu viés ideológico de matriz marxista, contribuiu de forma efetiva para a organização dos trabalhadores e dos camponeses em sindicatos e movimentos agrários que restaram depois na criação do PT e do Movimento dos Sem-Terra (MST). A ação dess...

AINDA SOBRE CRISTIANISMO E PAZ SOCIAL

A propósito da postagem " Por que o Cristianismo não produz paz social " recebi o seguinte comentário do leitor Marcelino Freixo: Me permita fazer uma correção. Pelo Evangelho, a salvação do homem é um ato de graça, e não o resultado do amor ao próximo ou mesmo a Deus. O amor a Deus e ao próximo é o resultado de ter a certeza dessa salvação, conforme está escrito em Efésios 2:8-9: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie". Acho que isso invalida o argumento central do seu texto, que o cristianismo ensina que o amor é condição para se ter algo.