Por: Agência Carta Maior
Nenhum dos dois grevistas (Orlando Zapata Tamayo, que faleceu em 23 de fevereiro, e Guillermo Fariñas Hernández, que estava em estado crítico em um hospital cubano no final da segunda semana de março) foi condenado por atividades políticas, mas por delitos como furto, invasão de domicílio e agressões físicas, conforme registros judiciais cubanos. Os presos por atividades políticas, cuja libertação é reivindicada por Fariñas - e que agora o governo cubano atendeu - são os remanescentes do processo de 2003, quando 75 opositores foram condenados por receberem dinheiro do Escritório de Representação dos Estados Unidos em Havana para participar de atividades contra o governo revolucionário (e não, como diz a campanha-padrão contra Cuba, por se oporem ao regime).
O julgamento dos 75 foi realizado em tribunais regulares, em sessões públicas, com base em leis pré-existentes e assegurado o pleno direito de defesa e de apelação. O governo cubano divulgou, na ocasião, provas documentais sobre a relação que os acusados mantinham com representantes do governo estadunidense. É uma relação passível de incriminação penal em qualquer país do mundo. Em todo caso, cerca de 20 deles foram, desde então, libertados pelo governo por problema de saúde, obedecendo às 95 regras de tratamento carcerário humanitário, estabelecidas pela ONU.
De acordo com a ficha corrida de Guillermo Fariñas Hernández, em 1995 ele espancou uma mulher na instituição de saúde onde trabalhava como psicólogo, causando-lhe ferimentos múltiplos no rosto e nos braços. Sofreu pena de três anos de prisão sem internamento (por sua primariedade), além de multa de 600 pesos. Em 2002, atacou um ancião com um bastão na cidade de Santa Clara, onde reside. A vítima teve de ser operada para extirpação do baço e o agressor foi condenado a 5 anos e 10 meses de prisão (Causa 569/2002, do Tribunal Popular Provincial de Villa Clara). Por essa época, ele começou a utilizar o recurso da greve de fome para obter vantagens, como televisor em sua cela, tendo dessa forma atraído a atenção dos grupos contrarrevolucionários, aos quais aderiu em seguida. Em dezembro de 2003, devido à sua saúde fragilizada pela sucessão de greves, recebeu uma licença extra-penal com base no código cubano. Fora da cadeia, passou a colaborar com a Rádio Martí e a receber dinheiro regularmente da já mencionada representação dos EUA em Havana. Em 2006, voltou a se declarar em greve de fome, para reivindicar acesso domiciliar à internet.
Na atual greve, Fariñas Hernández recusou toda oferta oficial para tratamento de sua saúde, obstinando-se em dizer que irá até o fim. Da mesma forma, rejeitou oferta de asilo na Espanha, feita com a anuência de Havana. Por isso, a intervenção médica cubana só pôde acontecer quando o manifestante entrou em estado de choque, na noite de quinta-feira, 11 de março, em estado gravíssimo, como no caso de Orlando Zapata Tamayo, que viria a falecer. Eis o que divulgaram as agências France Press, Efe e Reuters sobre esse momento, conforme publicado no Estado de S. Paulo : “Momentos antes de Fariñas desmaiar, um grupo de médicos do sistema de saúde pública de Cuba visitou o dissidente e pediu que ele concordasse em ir, de ambulância, até uma clínica para que fizesse um check-up profissional. O opositor, porém, agradeceu ‘o profissionalismo e a humanidade’ dos médicos, mas insistiu em fazer os exames em sua casa. Os médicos aceitaram as condições e coletaram amostras no local, mas saíram antes de Fariñas desmaiar”.
Orlando Zapata Tamayo também jamais havia sido seguidamente condenado por atividade política, embora esteja sendo apresentado agora como mártir da luta pela liberdade. Ele só começou a adotar um “perfil político” quando percebeu que, na situação particularíssima de Cuba, isso poderia ser vantajoso por causa do farto dinheiro distribuído pelos Estados Unidos aos que se declaram dissidentes no país. Antes havia cumprido pena por “violação de domicílio” (1993), “furto e agressão com arma branca” (2000) e “perturbação da ordem pública” (2002). Em 2003, chegou a ser solto, mas voltou à cadeia por reincidência. Por isso, não figurou na relação de “prisioneiros políticos” elaborada em 2003 pela antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, com a intenção de condenar Cuba por violação aos direitos humanos.
Aquela mesma boa alma curiosa poderia igualmente notar, na campanha em curso, que apesar da insistência na denúncia de que os “presos de consciência” cubanos foram encarcerados simplesmente por serem contra o governo, o noticiário correspondente é abundante em declarações de opositores que vivem em Cuba, como Manuel Cuesta Morúa, René Gómez Manzano, Elizárdo Sánchez, Osvaldo Payá Sardinãs e outros. Eles são contra o governo, dão entrevistas para a imprensa internacional recheadas de críticas, mas não estão presos! Há algo errado nessa denúncia, portanto. O próprio Fariñas, aliás, estava em casa antes de ser internado e lá recebia diariamente jornalistas estrangeiros.
Sobre o suposto caráter ditatorial do regime vigente em Cuba, é interessante ainda comparar o que diz o relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2008”, da Anistia Internacional (entidade nada amistosa com o governo cubano), sobre a situação naquele país, nos Estados Unidos e na Europa. O documento acusa o governo cubano de restringir as liberdades de expressão, de associação e de circulação, fala nos “presos de consciência” remanescentes do grupo dos 75 e registra incidentes em que teria havido “fustigamento e intimidação” de dissidentes. Mas não menciona um só caso de sequestro ou desaparecimento de opositores, nem tortura ou morte de prisioneiros em dependências carcerárias. Da mesma forma, não fala em repressão policial, nem em execução extrajudicial em Cuba.
Esse mesmo documento da Anistia Internacional, em contrapartida, denuncia os EUA por prática sistemática da tortura conhecida como waterboarding (simulação de asfixia), detenções e interrogatórios secretos e desaparecimento de suspeitos. Acusa ainda Washington de manter milhares de detidos, muitos “há mais de seis anos”, em Guantánamo, em Bagram e no Iraque, sem acusação nem julgamento. Sobre os governos europeus, o relatório da Anistia declara: “Em 2007 surgiram novas evidências de que diversos Estados-membros da União Europeia foram coniventes com a CIA no sequestro, na detenção secreta e na transferência ilegal de prisioneiros para países em que foram torturados ou sofreram maus tratos”.
Ora, a atual campanha contra o governo cubano se origina de forças políticas que admiram as democracias vigentes na União Europeia e nos Estados Unidos, considerando-as modelos a serem copiados por todo o mundo (inclusive Cuba). Deveriam, portanto, preocupar-se também com o estado dessa própria democracia e dos direitos humanos nesses países, em vez de gastarem todo o gás em sua fúria contra Cuba. Que tal uma campanhazinha para combater a pouca vergonha denunciada pela Anistia Internacional nos EUA e na União Europeia?
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