segunda-feira, 4 de outubro de 2010

LIBERALISMO: HECATOMBE SOCIAL


"A questão social é um caso de polícia!" - esta frase, atribuída a Washington Luís, presidente da República de 1926 até a sua deposição em 1930, é geralmente apontada como o sintoma de como as questões relativas ao trabalho (a "questão social") eram descuidadas pelo Estado, durante o período da chamada República Velha (1889-1930).

E, de fato, a questão social era um caso de polícia. As greves e outras manifestações operárias eram violentamente reprimidas pela polícia, provocando prisões, feridos e mortes; os sindicatos eram invadidos e fechados; as redações dos jornais operários eram empasteladas; militantes estrangeiros eram expulsos do país pela força da lei (as leis Adolfo Gordo de 1907 e 1921). Mesmo os não estrangeiros sofriam deportações para regiões longínquas do país, e, durante o estado de sítio que se prolongou de 1922 a 1926, centenas de operários foram confinados na colônia do Centro Agrícola Clevelândia, às margens do rio Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa. Lá, muitos pereceram.

A questão social enquanto caso de polícia tornou-se assim mais uma prova do caráter obscurantista desta República dita "Velha", já tão desprestigiada porquanto "oligárquica", dominada por latifundiários de mentalidade atrasada, que não abriam canais de participação política a ninguém, a despeito do liberalismo estampado na Constituição de 1891.

Aliás, a frase de Washington Luís foi também tomada como mais uma demonstração de que o liberalismo brasileiro destinava-se apenas ao consumo externo, "pra inglês ver", de que por trás do "país legal", de fachada liberal, ocultava-se um "país real", pontilhado de violências e arbitrariedades. Como dizer-se liberal, se "a questão social é um caso de polícia"? 0 liberalismo brasileiro, então, só podia ser mais unia aberração deste curioso país, já tão repleto de exotismos...

Mas, como alerta Luiz Werneck Vianna, liberalismo, a rigor, não é sinônimo de democracia. Nem tampouco significa 'progressista' - a não ser em certas épocas difíceis em que o uso de metáforas, nem sempre adequadas, é quase que obrigatório. E muito menos eqüivale a uma postura avessa à violência.

Pelo contrário: Locke (1632-1704), um dos clássicos do liberalismo, formula toda sua teoria política em torno da questão da violência. Para ele, trata-se de saber quem (e como) pode gerir e exercer a violência, ou, em outras palavras, quem tem o direito de castigar. A resposta é o Estado: "considero, portanto - diz Locke -, poder político o direito de fazer leis com pena de morte e, consequentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade (...)" (John Locke, Segundo Tratado Sobre o Governo).

Já se vê nesta afirmação que o fundamental para Locke é a defesa da propriedade. Esta, para o liberalismo, é a própria essência do indivíduo: "( ... ) cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo" (idem). Todo indivíduo tem a propriedade do seu corpo, de suas capacidades e, por isso mesmo, todos os homens, considerados individualmente, são iguais entre si, são todos proprietários. E como cada um tem plenos direitos sobre a sua propriedade, ele pode usá-la como bem entender, de acordo com a sua livre vontade: o indivíduo é, pois, dotado de vontade e de liberdade. O indivíduo é livre, por exemplo, para empregar o seu corpo no trabalho, cujos frutos tornam-se sua propriedade, privada, só dele.

Tal liberdade, porém, não é irrestrita e o seu limite é a propriedade mesma. Nenhum indivíduo tem a liberdade de atentar contra a sua vida, isto é, contra o seu próprio corpo, pois, do contrário, o homem teria a liberdade de deixar de ser homem, de ser proprietário, de ser livre - o que seria um contra-senso. Da mesma forma, nenhum indivíduo pode ter a liberdade de atentar contra a propriedade alheia, pois isto significaria limitar a liberdade do outro e, no limite, aniquilar-lhe a vida.

É por isso que se diz "a liberdade de um termina quando começa a liberdade de outro": esta frase, que parece exprimir uma verdade absoluta, é, na realidade, uma expressão do liberalismo e só pode ser entendida no quadro das formulações liberais. É por isso também que Locke é extremamente implacável para com os ladrões. O roubo, para ele, é um crime passível de pena de morte, pois roubar é, em última instância, destruir a essência do indivíduo (a propriedade), é assassinar. Assim. para resguardar os homens dessa pior forma de atentado que estes possam sofrer, nada mais justo que a pena capital e outras formas menores de retirar o criminoso do convívio de suas vítimas em potencial.

O problema é então: quem pode aplicar tal pena, de modo que o exercício do poder de castigar não degenere em um estado de guerra de todos contra todos? A resposta, como se disse acima, é o Estado. É a criação de leis positivas (rigorosamente determinadas e escritas), válidas para todos, e de algo que, estando acima dos homens e da sua comunidade, zele pelo cumprimento destas mesmas leis, monopolizando para si o poder de julgar, de exercer a violência e de aplicar penalidades. Em outras palavras, os indivíduos abdicam a liberdade de "fazer a justiça pelas suas próprias mãos" e entregam-na a um poder público - o Estado.

Mas como isto é feito com o único objetivo de defender, em cada indivíduo, a sua liberdade e propriedade, o Estado jamais pode intervir em assuntos privados, desde que estes não firam a liberdade e a propriedade de outros. Se, por exemplo, um industrial contrata um trabalhador, isto é um assunto privado entre as partes contratantes, e o contrato é a expressão do consenso entre ambas: aquele concordou em pagar um salário por um trabalho estipulado; este concordou em trabalhar sob determinadas condições. Mais do que isso, o contrato é a expressão da igualdade entre as partes (ambas são proprietárias - uma dos meios de produção, outra da força de trabalho) e da liberdade (cada uma é livre de assinar ou não o contrato). O contrato não supõe uma relação de força ou de desigualdade, não é um ato de dominação, não viola a propriedade e a liberdade de ninguém, e, por isso, é um assunto que só concerne aos contratantes enquanto indivíduos. É um assunto privado no qual o Estado jamais pode intervir.

Por isso, no mundo do liberalismo ortodoxo, é inconcebível a existência de uma legislação especial do trabalho, mesmo que seja apenas para regulamentar o contrato. Ao Estado compete tão-somente zelar pelo cumprimento deste contrato. evitando que este seja rompido sem o mútuo consentimento das partes contratantes. Mas, quando se verifica o rompimento das cláusulas contratadas? Por exemplo, numa greve: esta não só rompe unilateralmente o contrato assinado por livre e espontânea vontade, como também descaracteriza a igualdade nele suposta. Na greve, o patrão e o trabalhador não mais se enfrentam individualmente, em condições igualdade; o que se cria, ao contrário, é uma situação em que um indivíduo (o patrão) depara-se com um grupo (os grevistas), e, pior, numa relação de força e pressão. O Estado então deve intervir e exatamente enquanto policial.

Todas essas considerações, longe de pretenderem esgotar o tema do liberalismo, apenas indicam que não há contradição nenhuma entre o liberalismo, consagrado na Constituição de 1891, e a frase de Washington Luís, escandalosa pela sua rudeza. Também indicam que a ação da polícia, por mais repugnante que seja, está de acordo com a lei liberal. No liberalismo, a questão social é efetivamente um caso de policia!

Assim, ao menos no que se refere à questão do trabalho, o liberalismo brasileiro não pode ser considerado como uma mera "ficção jurídica", de fachada. Pelo contrário, como assinala Werneck Vianna, era um instrumento teórico e institucional perfeitamente adequado à dominação burguesa: garantia o domínio absoluto do patrão dentro da sua empresa (em cujos assuntos, privados, o Estado não podia jamais intervir) e assegurava a intervenção policial quando este domínio fosse perturbado pelas agitações operárias.

É esse tipo de doutrinologia espúria que está se reaproximando da política brasileira, com a confirmação do segundo turno nas eleições presidenciais. O neoliberalismo, defendido por unhas e dentes por partidos como o DEM e o PSDB, de José Serra, tende a transformar as poucas conquistas do proletariado brasileiro em pó, ampliando as desigualdades sociais a pretexto de "incentivar negócios privados". Quem tem negócio é patrão. Trabalhador, trabalha.

Defenda-se!

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