Um dos debates mais promissores da futura gestão Dilma é a discussão sobre o Projeto de Lei 122/2006, que propõe a criminalização da homofobia. A questão já rendeu várias pautas para jornalistas, especialmente em programas de auditório na TV, e vem sendo tratada pelo Congresso Nacional, acredite se quiser, como uma queda-de-braço entre grupos de defesa dos direitos homoafetivos e líderes de igrejas, notadamente cristãs.
É sugestivo que nas discussões televisivas não apareçam antropólogos, sociólogos, cientistas políticos ou biólogos. A voz da ciência cede lugar às performances de pastores evangélicos, que - felizmente - usam nessas aparições os mesmos argumentos que orientam as bancadas evangélicas nas diversas instâncias do Poder Legislativo.
Esses argumentos são importantes porque ajudam a esclarecer a questão. Seu debate permite conhecer não somente a solução para os crimes cometidos contra homossexuais, como ainda ampliar o nosso conhecimento do quanto o discurso religioso consegue mobilizar a sociedade brasileira.
O primeiro grande argumento apresentado nessas ocasiões diz respeito à possibilidade da lei, se aprovada, criar uma espécie de "mordaça gay" nos demais segmentos e grupos sociais. O seguinte raciocínio é: "Como a Constituição garante a liberdade de expressão, estabelecer como crime a opinião pessoal negativa sobre a homossexualidade não seria inconstitucional?"
Obviamente os grupos contrários à aprovação do PL 122/2006, geralmente religiosos (evangélicos pentecostais em particular), apostam que sim e fazem um poderoso lobby para tentar barrar o projeto, que encontra-se parado desde agosto de 2008 na Comissão de Direitos Humanos e Gestão Participativa. A idéia subjacente a esse argumento é que, assim como não é crime a expressão de idéia negativa sobre a condição heterossexual, não deveria ser criminalizada a mesma conduta em relação ao homossexual.
Discordo desse argumento, por vários motivos. O principal deles é que a condição heterossexual não é marginalizada ou mesmo considerada abertamente ofensiva, como ocorre com a homossexualidade. Os "valores sociais" dados a ambos são diferentes. Enquanto a conduta heterossexual possui toda uma herança arquetípica, inclusive religiosa, que consiste no homem provedor e na mulher virtuosa (com circunscrições bem delimitadas para ambos no gestuário, roupas, cortes de cabelo, trejeitos, comportamentos autorizados etc), a homossexual é motivo de desabonamento e assédio morais, agressões, juízos negativos de valor e assemelhados.
Portanto, a questão ultrapassa a mera contraposição entre o direito de "juízo crítico" a uma conduta sexual, o que estaria, em tese, amparado pelos direitos à livre expressão e a igualdade entre os indivíduos previstos no Artigo 5 (cláusula pétrea) da Constituição de 88. Agir assim não seria apenas desconsiderar as diferenças profundas entre uma e outra condição na prática social, mas na prática negar precisamente a livre expressão e a igualdade para homossexuais. Ou seja: o que demanda a existência de uma lei contra a homofobia é exatamente a existência de lugares valorativos para as diferentes condições sexuais.
Como uma democracia deve consistir no direito à expressão e à igualdade de todos os cidadãos, indistintamente de quaisquer características adicionais, consequentemente a discriminação por sexo é não só inconstitucional, é antidemocrática.
Pode-se contra-argumentar que já existem leis complementares no ambito penal para crimes de agressão, roubo, furto e até mesmo assédio moral que se aplicam a todos os públicos, independentemente da sua orientação sexual. Surge então uma questão similar à anterior: "Uma lei que punisse a homofobia não seria um adendo desnecessário à legislação atual, criando na prática uma casta especial de protegidos com mais direitos que os demais?"
Esta questão é claramente mais simples. Os crimes cometidos contra homossexuais e heterossexuais são obviamente os mesmos. As motivações, porém, são diferentes. O que uma lei complementar deve buscar inibir não é os crimes cometidos, mas a sua motivação subjacente: a diferença de orientação sexual. Como a legislação nacional não tipifica como crime a conduta discriminatória (que pode ou não redundar em crime), é necessária uma legislação específica para inibir a percepção da homossexualidade como conduta "errada", ou seja, passível de discriminação. Como a discriminação já é um ato de violência (homofobia), esta cria a situação favorável para que pessoas de conduta discriminatória mais acentuada cometam crimes cujas penas já são previstas em outros códigos jurídicos, notadamente no Código Penal Brasileiro.
A necessidade de uma lei contra a homofobia, nesse contexto, justifica-se pela necessidade social de estabelecer o indivíduo de condição homossexual como um portador dos mesmos direitos elementares que os demais. Esse direito, negado na prática cotidiana, lhe assiste não somente por força da Constituição de 88, mas pelo princípio democrático segundo o qual todos os cidadãos, indistintamente de quaisquer características que possam ter ou desenvolver, devem ser iguais em direitos e deveres.
Para a Sociologia, porém, a questão fundamental desse debate está um pouco além.
Há pouco tempo as mesmas questões foram levantadas quando da criação e aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Congresso. Temia-se uma "ditadura dos negros" sobre os demais grupos étnicos, por um lado, e dizia-se ainda que os negros pretendiam ter mais direitos que os outros. Em resposta, os movimentos de defesa dos direitos dos negros trouxeram ao debate o enorme passivo social criado pelo resultado da abolição da escravatura, em 1888, sem qualquer cobertura social, e a incomensurável contribuição social, política e econômica, dentre outros segmentos, desse povo para a constituição do Brasil.
Seguiu-se então a análise do fato concreto, isto é, daquilo que o sociólogo Florestan Fernandes definiu como a "inserção dos negros nas sociedades de classe". Foi aí que se descobriu que o "lugar social" dado aos negros era o da marginalização catapultado não pelo preconceito étnico, mas de classe social. Constatado que o preconceito agia e age sobre esse grupo como forma de discriminá-lo, reduzindo-o ou desabonando-o, o Congresso aprovou o Estatuto da Igualdade Racial e o governo federal passou a elaborar políticas de cobertura social para negros, usando assim a ascensão social como estratégia de combate ao preconceito.
Somando esses dois exemplos (o dos homossexuais e o dos negros) a toda a epopéia histórica da luta feminista pelo direito ao divórcio, ao voto e ao aborto, acrescentando-se ainda os estatutos do Idoso e da Criança e Adolescente, não deveríamos observar mais atentamente a origem dessa segmentação crescente da proteção social no Brasil?
Trata-se, evidentemente, de tarefa sociológica árdua. Mas há algumas pistas.
A melhor delas, na minha opinião, está relacionada com a qualidade da nossa democracia. A lição mais óbvia que se pode tirar de tantos códigos simultâneos é que cada vez mais grupos ou segmentos sociais precisam de reconhecimento do seu direito à democracia, o que, se não é contraditório, é dialético: não vivemos em um Estado de Direito, regidos por uma Constituição?
Não estou contestando a existência dos códigos, mas a motivação subjacente: qual é a origem do fenômeno social (porque trata-se, evidentemente, de um fenômeno social) que torna necessária, até indispensável, a existência de leis para afirmar o que a Constituição já afirma, ou seja, que todos são cidadãos cobertos pelos mesmos direitos e deveres em um regime democrático?
Por que é necessário que se criminalize a conduta que alija um grupo de pessoas dos seus direitos mais básicos para que, por força de lei, a igualdade constitucional seja respeitada?
Esse fenômeno, longe de sinalizar democracia, deve deixar-nos alertas. Nossa sociedade cultiva algum dispositivo cujo princípio funcional é a "eleição" de um comportamento válido e a consequente discriminação das demais. Um tipo de sexualidade, um tipo de etnia, um tipo de idade etc. Essa produção sistemática de lugares simbólicos é evidentemente antidemocrática, e por isso mesmo típica de sociedades profundamente autoritárias, que precisam manter algum controle irrestrito sobre os cidadãos por meio de condutas fascistas ou teocêntricas e assim obter o máximo de legitimidade possível para o seu próprio discurso, discriminando, violentando e até mesmo punindo severamente os discursos e expressões diferentes.
Numa sociedade teocêntrica isso se constitui em um problema quase insolúvel. Numa sociedade laica, a tendência é que cada vez mais grupos tendam a procurar cobertura do Estado para poder exercer os direitos concedidos pela democracia representativa.
Há que se concordar, logo, que o lobby de líderes religiosos contra a concessão desses direitos é bastante elementar quando se quer elucidar a origem do fenômeno.
E não, não sou contra pastores, padres, rabinos ou líderes de qualquer outra confissão religiosa expressarem seus conceitos publicamente. O que me assusta é que esses conceitos saiam da circunscrição da autoridade desses líderes, ou seja, suas igrejas, templos e sinagogas.
Pode-se contra-argumentar, de novo, que pastores e religiosos em geral também são cidadãos e que nesta condição deveriam ter o direito de expressar-se publicamente sobre o tema. Eles têm, claro. O que não podem é argumentar religiosamente sobre uma questão civil, isto é, política. Trata-se então da qualidade dos argumentos: o pastor que argumenta que o PL 122/2006 vai instituir uma "mordaça gay" na sociedade demonstra ignorar que o seu próprio argumento pressupõe o direito de discriminar o comportamento homossexual.
A origem dessa motivação é obviamente religiosa: é sabido que as religiões de tronco árabe como Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, proíbem claramente a orientação homossexual.
Têm todo o direito de fazê-lo, até porque esse exercício é que nos revela cristalinamente a origem do autoritarismo que vem produzindo uma democracia cada vez mais antidemocrática e excludente no Brasil. Mas esse direito de expressão, fundado numa doutrina milenar, deve estar circunscrito aos respectivos templos, onde é aceito como doutrina, questão de fé.
Mas a democracia brasileira, ao contrário do que se possa achar, não é uma igreja.
"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." Theodor W. Adorno
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
sábado, 27 de novembro de 2010
BEYOND CITIZEN KANE
Título em português: Muito Além do Cidadão Kane
Origens e conexões da Rede Globo de Televisão com o Regime Militar e uma análise da sua nefasta influência na sociedade brasileira, ocultando a realidade e manipulando opiniões.
Mais sobre o documentário aqui.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
O AFETO AUTORITÁRIO
Por Renato Janine Ribeiro
Tenho defendido as novelas. Contra a opinião de muitos colegas da Universidade, sustento que elas têm papel positivo na transmissão de certos ideais, em especial o da igualdade da mulher em relação ao homem e o da condenação do preconceito de raça.
É claro que a TV é menos profunda ou pioneira que os grupos feministas ou de consciência indígena ou negra – mas só ela pode levar uma idéia, um nome de livro, um comportamento a 50 ou 60 milhões de pessoas.
Mas, justamente porque defendo o que é positivo nas novelas, devo criticar o afeto autoritário que nelas se vê. Penso no despotismo do patrão sobre os empregados, e da patroa sobre a doméstica negra. Um personagem como Pedro (José Mayer) em Laços de família não respeita as pessoas – e no entanto é, globalmente falando, mais simpático que antipático. A TV ainda tolera condutas que socialmente se tornaram inaceitáveis.
Uma novela precisa ter personagens de várias classes sociais. Se não tiver pobres, classe média e ricos, não atingirá todos os públicos. E a comunicação entre essas classes se dá sobretudo pelo amor. Isso faz parte das regras do gênero e não vou contestá-las aqui.
O problema, porém, é que no contato entre os ricos e os pobres desponta um autoritarismo que acabamos aceitando, os espectadores, graças a um enredo que faz das personagens despóticas figuras agradáveis, humanas, quase positivas.
Por que essa simpatia, ou tolerância, com os mini-déspotas do dia a dia? Nossa sociedade nunca liquidou seu legado autoritário. Quando se aboliu a escravidão, não houve um projeto de cidadania para os negros. Ao contrário, tudo servia de pretexto para reprimi-los – por exemplo, a capoeira, os cultos afro-brasileiros, que eram caso de polícia.
Nosso know how de relações sociais ainda tem um quê da escravatura. Aceitamos muitas vezes que o elemento descontraído, simpático, afetuoso venha junto com uma centelha de autoritarismo. Lembremos como Lima Duarte se especializou em fazer clones de Sinhozinho Malta - o fazendeiro de Roque Santeiro (1985-86), que simbolizava todo o entulho da ditadura militar sobrevivendo no regime civil.
Mesmo quando a TV valoriza a mulher perante o homem, seu limite de atuação é a sociedade de consumo. Nossa televisão é muito mais consumista que as européias. Quem tem vale mais do que aquele que não tem. E por isso o patrão muitas vezes trata mal o empregado.
Isso é tão comum que às vezes nem se percebe. Sugestão: prestem atenção no modo como as pessoas são servidas à mesa, nas novelas. Verifiquem se agradecem à empregada, se dizem por favor. É mais provável que lhe dirijam alguma palavra atravessada – e que isso acabe passando, não digo como bom, mas como natural ou comum.
O Brasil vai melhorar do autoritarismo quando esse tipo de conduta não for mais aceito, quando não suscitar mais sorriso, sequer amarelo, mas causar repulsa ou pelo menos estranheza. Quando não nos reconhecermos mais, ou não reconhecermos mais nosso país, no recorte que trata os mais pobres como desprovidos de direitos, e até mesmo do direito elementar de ouvir, sempre, por favor e obrigado.
Isso é pouco? Não acho. Há vários modos de ajustar contas com um passado detestável. Um deles é mexer nos pequenos gestos, percebendo que nossos valores não são coisa muito abstrata, mas se exprimem em nosso modo de guiar o carro ou de tratar a pessoa do lado. O mesmo vale para a TV – e, quando ela não agir bem, devemos cobrar isso dela. Melhorar o país dá trabalho. Isso inclui reclamar pelo que achamos justo.
Clique aqui para ler o livro "O Afeto Autoritário: Televisão, Ética e Democracia", publicado em 2004 pela Ed. Ateliê.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
CUBA: MUDANÇAS A CAMINHO
Da Carta Maior
Ao mesmo tempo do anúncio da realização do congresso, feito pelo segundo secretário da organização e presidente da República, o general Raúl Castro, também foi divulgado e posto em circulação, com uma edição de milhares de exemplares, uma publicação de 32 páginas intitulada Proyecto de lineamientos de la política económica y social, um documento que, por meio de um texto introdutório e 291 propostas, começa a definir um novo modelo de política econômica, produtiva, comercial e social do país, que se espera, consiga superar a crise atual.
Esse esforço é anunciado sob o princípio de que “o sistema de planificação socialista continuará sendo a via principal para a direção da economia nacional” e com a perspectiva de que a ilha rume para a direção de uma eficiência produtiva, promova a eliminação das mais diversas formas de paternalismo geradas e estimuladas pelo próprio Estado cubano e obtenha a necessária credibilidade por parte de antigos e novos investidores estrangeiros.
O propósito da massiva distribuição do "Proyecto de lineamientos" é que ele se converta em um texto debatido pelas diversas instâncias partidárias e pela população em geral, em busca de acordos, divergências e propostas de mudanças em suas propostas concretas, táticas e estratégicas. No entanto, a formulação categórica de muitos de seus pontos, a especialização necessária (em matéria econômica, financeira e comercial) para a compreensão de muitos de seus parágrafos e seu percurso pelos mais diferentes aspectos da realidade econômica cubana (desde a balança internacional de pagamentos até a produção artesanal e a recuperação de pneus) advertem que sua aplicação global é uma política em vias de fato, cuja materialização está se produzindo como parte do chamado “aperfeiçoamento do modelo econômico cubano” promovido pelo governo diante das dificuldades, incongruências e incapacidades do modelo até aqui posto em prática que, em muitos aspectos, respondeu às exigências da profunda a crise que o país atravessou na década de 1990, e que promoveu, entre outros males, a existência de uma dupla circulação monetária.
São muitos os aspectos que chamam a atenção no documento distribuído ao público, mas, sem dúvida, entre os mais notáveis destaca-se a descentralização da economia por meio da autonomia empresarial e a adoção de mecanismos econômicos e financeiros em um processo no qual se costumava aplicar decisões políticas e administrativas, muitas vezes antieconômicas, como a realidade do país demonstrou. Por isso, em uma linguagem muito precisa, o projeto partidário adverte que a existência de quase todas as empresas dependerá de sua capacidade de gerar lucros. Caso não consigam esse objetivo, essas empresas serão liquidadas. Além disso, entidades que receberam recursos do Estado serão reduzidas ao mínimo. O texto afirma, inclusive, que nos projetos solidários com outros países (parte essencial da política internacional cubana) será levado em conta o elemento econômico, um fator quase sempre ignorado nesta esfera.
Na mesma direção aparecem abundantes apelos à supressão de subsídios (que podem levar até à desaparição da caderneta de abastecimento ou racionamento, que fornece uma pequena quantidade de produtos indispensáveis a baixos preços para a alimentação de um alto percentual de famílias cubanas), à eliminação de postos de trabalho nas empresas estatais e organismos do Estado (processo já em marcha que envolve a demissão de 500 mil trabalhadores em seis meses) e ao fomento de formas não estatais de produção, serviço e posse da terra, com previsão de aumento da força laboral em cooperativas e por conta própria, tendência que é acompanhada pela implementação de uma nova política fiscal que contempla grandes impostos para os maiores lucros.
O processo de inversão econômica que iniciou em Cuba é, em todos os seus aspectos, profundo e radical, sem que isso implique grandes modificações no sistema político unipartidário e na estrutura de governo. Mas a ressonância social provocada pelas mudanças já anunciadas e por outras que ainda virão, será sem dúvida um desafio que deverá ser assumido por esse mesmo modelo político, até aqui baseado na máxima estatização, no controle centralizado, na total dependência do cidadão das estruturas produtivas, distributivas e econômicas do Estado.
Do ponto de vista da população, as mudanças mais polêmicas têm a ver, precisamente, com a nova política laboral e com a supressão de subsídios – que chega até os setores da educação e da saúde. A possibilidade de que 1% dos desempregados dos próximos meses rumem para o trabalho por conta própria, ao mesmo tempo em que os que já estavam nesta situação legalizem sua situação, parece ser uma das soluções mais complexas, levando em conta a crítica situação econômica do país (falta de insumos, materiais, etc.), a política tributária que contempla altos pagamentos ao Estado e a carestia, que voltou a aumentar recentemente, de elementos básicos para algumas produções e serviços, como a eletricidade e o combustível.
É evidente que as necessárias mudanças “estruturais e de conceitos” do modelo cubano, anunciadas há três anos pelo então presidente interino Raúl Castro, começam a tomar forma e espaço na vida social e econômica cubana. É preciso ver agora como sua implementação afetará a vida de milhões de cubanos, chamados a viver em um país onde a competitividade econômica e o trabalho substituirão o paternalismo estatal, onde a eficiência pretende ocupar o lugar do subsídio e onde se geram, inevitavelmente, desigualdades econômicas e sociais após décadas de igualitarismo, oficialmente criado e promovido.
Leia mais sobre a realidade cubana clicando aqui.
Ao mesmo tempo do anúncio da realização do congresso, feito pelo segundo secretário da organização e presidente da República, o general Raúl Castro, também foi divulgado e posto em circulação, com uma edição de milhares de exemplares, uma publicação de 32 páginas intitulada Proyecto de lineamientos de la política económica y social, um documento que, por meio de um texto introdutório e 291 propostas, começa a definir um novo modelo de política econômica, produtiva, comercial e social do país, que se espera, consiga superar a crise atual.
Esse esforço é anunciado sob o princípio de que “o sistema de planificação socialista continuará sendo a via principal para a direção da economia nacional” e com a perspectiva de que a ilha rume para a direção de uma eficiência produtiva, promova a eliminação das mais diversas formas de paternalismo geradas e estimuladas pelo próprio Estado cubano e obtenha a necessária credibilidade por parte de antigos e novos investidores estrangeiros.
O propósito da massiva distribuição do "Proyecto de lineamientos" é que ele se converta em um texto debatido pelas diversas instâncias partidárias e pela população em geral, em busca de acordos, divergências e propostas de mudanças em suas propostas concretas, táticas e estratégicas. No entanto, a formulação categórica de muitos de seus pontos, a especialização necessária (em matéria econômica, financeira e comercial) para a compreensão de muitos de seus parágrafos e seu percurso pelos mais diferentes aspectos da realidade econômica cubana (desde a balança internacional de pagamentos até a produção artesanal e a recuperação de pneus) advertem que sua aplicação global é uma política em vias de fato, cuja materialização está se produzindo como parte do chamado “aperfeiçoamento do modelo econômico cubano” promovido pelo governo diante das dificuldades, incongruências e incapacidades do modelo até aqui posto em prática que, em muitos aspectos, respondeu às exigências da profunda a crise que o país atravessou na década de 1990, e que promoveu, entre outros males, a existência de uma dupla circulação monetária.
São muitos os aspectos que chamam a atenção no documento distribuído ao público, mas, sem dúvida, entre os mais notáveis destaca-se a descentralização da economia por meio da autonomia empresarial e a adoção de mecanismos econômicos e financeiros em um processo no qual se costumava aplicar decisões políticas e administrativas, muitas vezes antieconômicas, como a realidade do país demonstrou. Por isso, em uma linguagem muito precisa, o projeto partidário adverte que a existência de quase todas as empresas dependerá de sua capacidade de gerar lucros. Caso não consigam esse objetivo, essas empresas serão liquidadas. Além disso, entidades que receberam recursos do Estado serão reduzidas ao mínimo. O texto afirma, inclusive, que nos projetos solidários com outros países (parte essencial da política internacional cubana) será levado em conta o elemento econômico, um fator quase sempre ignorado nesta esfera.
Na mesma direção aparecem abundantes apelos à supressão de subsídios (que podem levar até à desaparição da caderneta de abastecimento ou racionamento, que fornece uma pequena quantidade de produtos indispensáveis a baixos preços para a alimentação de um alto percentual de famílias cubanas), à eliminação de postos de trabalho nas empresas estatais e organismos do Estado (processo já em marcha que envolve a demissão de 500 mil trabalhadores em seis meses) e ao fomento de formas não estatais de produção, serviço e posse da terra, com previsão de aumento da força laboral em cooperativas e por conta própria, tendência que é acompanhada pela implementação de uma nova política fiscal que contempla grandes impostos para os maiores lucros.
O processo de inversão econômica que iniciou em Cuba é, em todos os seus aspectos, profundo e radical, sem que isso implique grandes modificações no sistema político unipartidário e na estrutura de governo. Mas a ressonância social provocada pelas mudanças já anunciadas e por outras que ainda virão, será sem dúvida um desafio que deverá ser assumido por esse mesmo modelo político, até aqui baseado na máxima estatização, no controle centralizado, na total dependência do cidadão das estruturas produtivas, distributivas e econômicas do Estado.
Do ponto de vista da população, as mudanças mais polêmicas têm a ver, precisamente, com a nova política laboral e com a supressão de subsídios – que chega até os setores da educação e da saúde. A possibilidade de que 1% dos desempregados dos próximos meses rumem para o trabalho por conta própria, ao mesmo tempo em que os que já estavam nesta situação legalizem sua situação, parece ser uma das soluções mais complexas, levando em conta a crítica situação econômica do país (falta de insumos, materiais, etc.), a política tributária que contempla altos pagamentos ao Estado e a carestia, que voltou a aumentar recentemente, de elementos básicos para algumas produções e serviços, como a eletricidade e o combustível.
É evidente que as necessárias mudanças “estruturais e de conceitos” do modelo cubano, anunciadas há três anos pelo então presidente interino Raúl Castro, começam a tomar forma e espaço na vida social e econômica cubana. É preciso ver agora como sua implementação afetará a vida de milhões de cubanos, chamados a viver em um país onde a competitividade econômica e o trabalho substituirão o paternalismo estatal, onde a eficiência pretende ocupar o lugar do subsídio e onde se geram, inevitavelmente, desigualdades econômicas e sociais após décadas de igualitarismo, oficialmente criado e promovido.
Leia mais sobre a realidade cubana clicando aqui.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
10 ESTRATÉGIAS DE MANIPULAÇÃO MIDIÁTICA
Por Agência Adital
O linguista Noam Chomsky(*) elaborou a lista das "10 Estratégias de Manipulação" através da mídia.
1. A estratégia da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir que o público se interesse pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado; sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja com outros animais (citação do texto "Armas silenciosas para guerras tranquilas").
2. Criar problemas e depois oferecer soluções. Esse método também é denominado "problema-ração-solução". Cria-se um problema, uma "situação" previsa para causar certa reação no público a fim de que este seja o mandante das medidas que desejam sejam aceitas. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o demandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para forçar a aceitação, como um mal menor, do retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços púbicos.
3. A estratégia da gradualidade. Para fazer com que uma medida inaceitável passe a ser aceita basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos consecutivos. Dessa maneira, condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990. Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.
4. A estratégia de diferir. Outra maneira de forçar a aceitação de uma decisão impopular é a de apresentá-la como "dolorosa e desnecessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrificio imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Logo, porque o público, a massa tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isso dá mais tempo ao público para acostumar-se à ideia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.
5. Dirigir-se ao público como se fossem menores de idade. A maior parte da publicidade dirigida ao grande público utiliza discursos, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade mental, como se o espectador fosse uma pessoa menor de idade ou portador de distúrbios mentais. Quanto mais tentem enganar o espectador, mais tendem a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Ae alguém se dirige a uma pessoa como se ela tivesse 12 anos ou menos, em razão da sugestionabilidade, então, provavelmente, ela terá uma resposta ou ração também desprovida de um sentido crítico (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas")".
6. Utilizar o aspecto emocional mais do que a reflexão. Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional e, finalmente, ao sentido crítico dos indivíduos. Por outro lado, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de aceeso ao inconsciente para implantar ou enxertar ideias, desejos, medos e temores, compulsões ou induzir comportamentos...
7. Manter o público na ignorância e na mediocridade. Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais menos favorecidas deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que planeja entre as classes menos favorecidas e as classes mais favorecidas seja e permaneça impossível de alcançar (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas").
8. Estimular o público a ser complacente com a mediocridade. Levar o público a crer que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto.
9. Reforçar a autoculpabilidade. Fazer as pessoas acreditarem que são culpadas por sua própria desgraça, devido à pouca inteligência, por falta de capacidade ou de esforços. Assim, em vez de rebelar-se contra o sistema econômico, o indivíduo se autodesvalida e se culpa, o que gera um estado depressivo, cujo um dos efeitos é a inibição de sua ação. Sem ação, não há transformação.
10. Conhecer os indivíduos melhor do que eles mesmos se conhecem. No transcurso dosúltimos 50 anos, os avançosacelerados da ciência gerou uma brecha crescente entre os conhecimentos do público e os possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem disfrutado de um conhecimento e avançado do ser humano, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. O sistema conseguiu conhecer melhor o indivíduo comum do que ele a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior do que o dos indivíduos sobre si mesmos.
* Linguista, filósofo e ativista político estadunidense. Professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
O linguista Noam Chomsky(*) elaborou a lista das "10 Estratégias de Manipulação" através da mídia.
1. A estratégia da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir que o público se interesse pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado; sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja com outros animais (citação do texto "Armas silenciosas para guerras tranquilas").
2. Criar problemas e depois oferecer soluções. Esse método também é denominado "problema-ração-solução". Cria-se um problema, uma "situação" previsa para causar certa reação no público a fim de que este seja o mandante das medidas que desejam sejam aceitas. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o demandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para forçar a aceitação, como um mal menor, do retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços púbicos.
3. A estratégia da gradualidade. Para fazer com que uma medida inaceitável passe a ser aceita basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos consecutivos. Dessa maneira, condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990. Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.
4. A estratégia de diferir. Outra maneira de forçar a aceitação de uma decisão impopular é a de apresentá-la como "dolorosa e desnecessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrificio imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Logo, porque o público, a massa tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isso dá mais tempo ao público para acostumar-se à ideia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.
5. Dirigir-se ao público como se fossem menores de idade. A maior parte da publicidade dirigida ao grande público utiliza discursos, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade mental, como se o espectador fosse uma pessoa menor de idade ou portador de distúrbios mentais. Quanto mais tentem enganar o espectador, mais tendem a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Ae alguém se dirige a uma pessoa como se ela tivesse 12 anos ou menos, em razão da sugestionabilidade, então, provavelmente, ela terá uma resposta ou ração também desprovida de um sentido crítico (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas")".
6. Utilizar o aspecto emocional mais do que a reflexão. Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional e, finalmente, ao sentido crítico dos indivíduos. Por outro lado, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de aceeso ao inconsciente para implantar ou enxertar ideias, desejos, medos e temores, compulsões ou induzir comportamentos...
7. Manter o público na ignorância e na mediocridade. Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais menos favorecidas deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que planeja entre as classes menos favorecidas e as classes mais favorecidas seja e permaneça impossível de alcançar (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas").
8. Estimular o público a ser complacente com a mediocridade. Levar o público a crer que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto.
9. Reforçar a autoculpabilidade. Fazer as pessoas acreditarem que são culpadas por sua própria desgraça, devido à pouca inteligência, por falta de capacidade ou de esforços. Assim, em vez de rebelar-se contra o sistema econômico, o indivíduo se autodesvalida e se culpa, o que gera um estado depressivo, cujo um dos efeitos é a inibição de sua ação. Sem ação, não há transformação.
10. Conhecer os indivíduos melhor do que eles mesmos se conhecem. No transcurso dosúltimos 50 anos, os avançosacelerados da ciência gerou uma brecha crescente entre os conhecimentos do público e os possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem disfrutado de um conhecimento e avançado do ser humano, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. O sistema conseguiu conhecer melhor o indivíduo comum do que ele a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior do que o dos indivíduos sobre si mesmos.
* Linguista, filósofo e ativista político estadunidense. Professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
LIBERAIS E A FRAGILIDADE DO CAPITALISMO
Da Espaço Acadêmico
Com a crise do mercado financeiro, surpreendentemente, economistas e jornalistas liberais passaram a defender a interferência do Estado na economia capitalista. Contraditoriamente ao seu discurso clássico, marcado pela apologia do livre mercado como único regulador da economia, os liberais defendem a ajuda financeira do Estado aos bancos e empresas em estado falimentar. Teriam os liberais revisto suas teorias, analisado seus equívocos e modificado suas posições? Trata-se de uma crise do capitalismo ou do liberalismo?
Até bem pouco tempo, sequer a palavra “capitalismo” era mencionada no discurso político dominante no mundo. Parecia que estávamos vivendo em uma sociedade em que a desigualdade, a pobreza, a exclusão social e a destruição ambiental, quando consideradas, eram geralmente analisadas como sendo decorrentes da ação de indivíduos, sem que uma lógica estrutural conduzisse os seres humanos a agir de determinada forma. Inclusive, em tempos de crise, muitos intelectuais continuam moralizando a economia, procurando os culpados: os assim considerados “maus capitalistas”, “maus banqueiros” e “maus investidores”.
Mesmo com uma vasta disponibilidade de indícios empíricos e de acúmulo teórico de análise crítica das forças destrutivas do capitalismo, o discurso hegemônico continuava confundindo as causas com soluções. Por exemplo, diante das constatações de que o livre mercado era responsável pela generalização da crise capitalista em nível mundial, as soluções apontadas sugeriam a ampliação do livre mercado, a privatização e a interferência cada vez menor do Estado na economia.
Com o aprofundamento da crise e a perspectiva de uma depressão econômica em nível internacional, agora os liberais utilizam uma tática ideológica antiga: a naturalização da economia. Na Idade Média, por exemplo, os senhores feudais, reis, nobres e demais privilegiados podiam contar com a crença divina para justificar a situação social gerada pelo modo de produção hegemônico. Atualmente, os liberais, confrontados com a negação empírica das suas teorias, tentam difundir um inexorável determinismo natural combinado com doses de cetiscismo para explicar seu fracasso teórico. O discurso dominante tende a considerar que compreender a economia mundial, na complexidade como ela se desenvolveu contemporaneamente, seria uma tarefa impossível. Ou seja, a humanidade teria avançado muito em termos de ciências naturais, de entendimento da astronomia, da física, da química e da biologia, mas não teria condições de compreender os fenômenos econômicos em nível internacional.
A tentativa de difundir uma noção de incompreensibilidade da economia mundial, assim como a tentativa de naturalizar os fenômenos econômicos, demonstra a perplexidade dos liberais com os atuais acontecimentos. O comportamento não é novo: ao invés de assumir que a “mão invisível do mercado” não funciona, contraditoriamente, se nega o próprio discurso, afirmando a necessidade de ação emergencial do Estado. Isto é, a negação hipócrita procura minimizar o fato da atual retórica estar revelando o fracasso prático da sua teoria.
Curiosamente, entretanto, a atual crise econômica internacional não é a primeira da história e podemos verificar enormes paralelos com as crises anteriores, tanto no processo gerador da crise como na tentativa de sua explicação. A primeira crise econômica mundial iniciou no dia 09 de maio de 1873 em Viena, atingiu Nova Yorque em seguida e, posteriormente, Hamburgo, ampliando-se para os principais mercados capitalistas daquela época. Se seguiram 5 anos de profunda depressão econômica. A segunda crise econômica mundial, a mais conhecida, iniciou no dia 24 de outubro de 1929 e encerrou somente com o final da segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Estados Unidos e seu domínio sobre o mercado mundial. Assim como em outros tempos, a maior economia mundial passou a ser a maior potência militar, impondo seus interesses, sua ideologia e sua linguagem de forma hegemônica sobre os demais países.
O atual domínio estadounidense sobre o mundo se justifica principalmente pelo seu poder militar (especialmente através das armas nucleares) e a instituição do dólar como moeda-padrão para a economia mundial. O longo período de hegemonia dos EUA é marcado por guerras e destruição. O keynesianismo e a construção do Estado de bem-estar social contribuíram para estabelecer ciclos de crescimento econômico num nível nunca antes visto na história da humanidade. Isso serviu para evitar o surgimento de um contra-poder, iminente com a existência de um bloco não-capitalista (soviético e chinês), resultante de revoluções sociais no mesmo período. Mesmo assim, a economia mundial ameaçava entrar em crise nos anos 1980.
Com o desmoronamento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim (1989-1990), cerca de 2 bilhões de pessoas, que há mais de 50 anos estavam fora do alcance do capitalismo, dispondo de ¼ dos recursos mundiais, passaram a integrar o mercado capitalista, permitindo um novo ciclo de expansão, caracterizado como globalização econômica. Esse ciclo de acumulação está chegando ao seu final, deixando, mais uma vez, explícitas duas características fundamentais do capitalismo como modo de produção: a instabilidade e a insustentabilidade.
A economia capitalista é marcada por crises contínuas, umas menores e outras de caráter mundial. Em tese, portanto, podemos afirmar que não existe capitalismo sem crise econômica. As crises cíclicas de superprodução são intrínsecas a esse modo de produção, caracterizado pela separação entre capital e trabalho. O crescente investimento em capital constante (prédios máquinas, tecnologia, etc.), desproporcional ao investimento em capital variável (trabalho vivo), conduz a uma tendencial queda da taxa de lucros, pois somente o trabalho gera o valor e a mais valia (fruto da exploração do tempo de trabalho). Diante disso, os liberais procuram uma saída de sobrevivência ideológica, pois não querem assumir que Marx tinha razão.
Os capitalistas, confrontados com essa fatalidade, há muito tempo conhecida, tendem a investir em outros setores da economia quando determinados investimentos passam a ser considerados menos lucrativos. Assim, muitos investidores deixaram de investir na produção, passando a alocar dinheiro no mercado imobiliário, em bolsas de valores e em bancos. Contudo, “dinheiro não gera dinheiro”. Para que o dinheiro possa valorizar é necessário que ele seja investido na produção, de forma que seja possível se apropriar do excedente de valor gerado pelo trabalho. Por isso, as consequências negativas sobre o capital produtivo são enormes, pois para suportar a carga do pagamento de juros e satisfazer a expectativa dos acionistas, as indústrias, por exemplo, são obrigadas a aumentar a mais-valia (a exploração do trabalho), através de maiores jornadas de trabalho e menores salários. O efeito final, entretanto, somente reforça o problema da crise de superprodução: os menores salários e o desemprego diminuem o poder de compra, desaquecendo a economia como um todo e estimulando os acionistas a investir em outros setores. A crise gira em círculo e o espiral depressivo somente tende a aumentar.
A expectativa de valorizar dinheiro através do mercado financeiro e imobiliário é comparável a um jogo de cassino, onde apenas alguns se apropriam de vantagens a curto prazo, resultantes das perdas de outros. Com a ampliação do mercado financeiro e a mundialização do capital, foi generalizada em nível internacional uma espécie de cassino mundial, embora mantendo o maior fluxo de capital entre os países capitalistas mais ricos. Para que o mercado mundial de capitais pudesse crescer em tamanha proporção, decisões políticas foram necessárias para permitir equiparações e garantias mínimas aos investidores. A expectativa era estimular o crescimento da economia através do fluxo de investimentos que, segundo a crença dos liberais, seria regulado pela “mão invisível do mercado”.
Atualmente estamos diante de mais um fracasso histórico do liberalismo. Nunca o mercado havia sido tão liberalizado e em escala internacional. As expectativas dos liberais foram frustradas porque suas teorias partem de uma ilusão central: a idéia de que o mercado seria uma força autoreguladora e que, em função da concorrência, os recursos econômicos seriam alocados da melhor maneira possível. Essa idealização do mercado como mecanismo regulador segue uma lógica de pensamento que corrobora a circulação e o aquecimento da especulação nas bolsas de valores.
Na realidade, entretanto, o mercado funciona com base nas relações socias entre seres humanos que trocam produtos. O mercado é regulado pela oferta e pela procura de mercadorias, uma relação meramente quantitativa, que cumpre uma função de mediação. Mas, assim como a mercadoria pode operar como fetiche, o processo de troca de mercadorias produz e necessita de ilusões para continuar funcionando. Na lógica do mercado, os vendedores pressupõem que compradores pagam, em forma de dinheiro (uma mercadoria comum que serve para trocar mercadorias), e os compradores pagam porque internalizaram a idéia da troca. Com base na mesma idéia, credores e devedores negociam, acionistas e investidores aplicam dinheiro (mesmo quando este continua nos bancos, sendo apenas uma expectativa, uma virtualidade, pois trata-se de cifras, de transações bancárias sem o uso de moeda-papel, de documentos que geram expectativa de pagamento).
Quando a virtualidade do mercado idealizado foi confrontada com uma crescente impossibilidade real de pagamento (por parte do assim chamado capitalismo real, dependente da produção), as expectativas dos “apostadores” se reduziram a riscos. O problema maior, para além das expectativas de ganho frustradas (como eram virtuais não poderiam ser caracterizadas como perdas, pois se baseavam meramente em apostas) dos assim chamados investidores, é a incidência negativa do crédito sobre a produção capitalista, gerando endividamento, falências e uma depressão econômica real. Contudo, a origem do problema continua na produção capitalista, tendencialmente geradora de crises de superprodução. A crise financeira é sua decorência e apenas agrava a crise do capitalismo “real”, surgindo em escala global quando a maioria dos economistas liberais a menosprezava como distante, localizada e passageira, ignorando seu potencial destrutivo.
As soluções apresentadas para sair da crise confirmam o caráter ideológico do liberalismo. A atitude de negação do próprio discurso em favor do livre mercado e a proposta de “ajuda econômica” por parte do Estado demonstram claramente o equívoco da concepção do mercado como alocador de recursos: o mercado é um instrumento de poder que opera no sentido da concentração de recursos econômicos, tendo como maiores consequências negativas o desperdício (destruição do meio ambiente) e a exclusão social (radicalização da desigualdade).
A força política da idéia de mercado se manifesta na aceitação da premissa proposta: a necessidade de ajudar o capitalismo a sair da crise. Em outras palavras, os prejuízos são socializados (na forma de subsídios, ajuda financeira, isenção de impostos) e os benefícios privatizados (os jogadores que perderam no cassino, utilizando dinheiro de outros, recebem uma nova chance de jogar, novamente com o dinheiro alheio). O Estado se endivida para ajudar os responsáveis pela crise com dinheiro público e, com isso, continua reduzindo investimentos em programas sociais e em projetos de infra-estrutura. E, enquanto isso, a concentração de renda e de capital continua.
É claro que, diante das evidências do fracasso e da fragilidade do capitalismo, o Estado poderia estatizar os bancos endividados, estabelecer regras para evitar crises futuras e controlar o fluxo de capitais. Mas, pelo contrário, a solução apresentada pelos liberais consiste em solicitar a ajuda do Estado para ajudar o sistema a sair da crise e depois deixar o mercado como regulador até que uma próxima crise se instaure. Essa é a função do liberalismo, como teoria legitimadora do modo de produção capitalista, conduzindo à aceitação das suas propostas por parte da maioria da sociedade, que arca com o ônus da crise gerada em função da concentração do capital. A evidência da fragilidade do capitalismo e do fracasso teórico do liberalismo, entretanto, não conduzem, automaticamente, à sua superação, pois os interesses que os fundamentam são mais importantes e se situam acima dos argumentos. Mesmo assumindo a contradição no seu discurso, os liberais não extraem dela todas as conseqüências, porque o interesse maior permanece na continuidade da produção capitalista, a razão da existência do liberalismo como teoria.
O “rei está nu”, mas a crença ilusória no Deus que o instituiu continua lhe servindo de vestimenta.
Com a crise do mercado financeiro, surpreendentemente, economistas e jornalistas liberais passaram a defender a interferência do Estado na economia capitalista. Contraditoriamente ao seu discurso clássico, marcado pela apologia do livre mercado como único regulador da economia, os liberais defendem a ajuda financeira do Estado aos bancos e empresas em estado falimentar. Teriam os liberais revisto suas teorias, analisado seus equívocos e modificado suas posições? Trata-se de uma crise do capitalismo ou do liberalismo?
Até bem pouco tempo, sequer a palavra “capitalismo” era mencionada no discurso político dominante no mundo. Parecia que estávamos vivendo em uma sociedade em que a desigualdade, a pobreza, a exclusão social e a destruição ambiental, quando consideradas, eram geralmente analisadas como sendo decorrentes da ação de indivíduos, sem que uma lógica estrutural conduzisse os seres humanos a agir de determinada forma. Inclusive, em tempos de crise, muitos intelectuais continuam moralizando a economia, procurando os culpados: os assim considerados “maus capitalistas”, “maus banqueiros” e “maus investidores”.
Mesmo com uma vasta disponibilidade de indícios empíricos e de acúmulo teórico de análise crítica das forças destrutivas do capitalismo, o discurso hegemônico continuava confundindo as causas com soluções. Por exemplo, diante das constatações de que o livre mercado era responsável pela generalização da crise capitalista em nível mundial, as soluções apontadas sugeriam a ampliação do livre mercado, a privatização e a interferência cada vez menor do Estado na economia.
Com o aprofundamento da crise e a perspectiva de uma depressão econômica em nível internacional, agora os liberais utilizam uma tática ideológica antiga: a naturalização da economia. Na Idade Média, por exemplo, os senhores feudais, reis, nobres e demais privilegiados podiam contar com a crença divina para justificar a situação social gerada pelo modo de produção hegemônico. Atualmente, os liberais, confrontados com a negação empírica das suas teorias, tentam difundir um inexorável determinismo natural combinado com doses de cetiscismo para explicar seu fracasso teórico. O discurso dominante tende a considerar que compreender a economia mundial, na complexidade como ela se desenvolveu contemporaneamente, seria uma tarefa impossível. Ou seja, a humanidade teria avançado muito em termos de ciências naturais, de entendimento da astronomia, da física, da química e da biologia, mas não teria condições de compreender os fenômenos econômicos em nível internacional.
A tentativa de difundir uma noção de incompreensibilidade da economia mundial, assim como a tentativa de naturalizar os fenômenos econômicos, demonstra a perplexidade dos liberais com os atuais acontecimentos. O comportamento não é novo: ao invés de assumir que a “mão invisível do mercado” não funciona, contraditoriamente, se nega o próprio discurso, afirmando a necessidade de ação emergencial do Estado. Isto é, a negação hipócrita procura minimizar o fato da atual retórica estar revelando o fracasso prático da sua teoria.
Curiosamente, entretanto, a atual crise econômica internacional não é a primeira da história e podemos verificar enormes paralelos com as crises anteriores, tanto no processo gerador da crise como na tentativa de sua explicação. A primeira crise econômica mundial iniciou no dia 09 de maio de 1873 em Viena, atingiu Nova Yorque em seguida e, posteriormente, Hamburgo, ampliando-se para os principais mercados capitalistas daquela época. Se seguiram 5 anos de profunda depressão econômica. A segunda crise econômica mundial, a mais conhecida, iniciou no dia 24 de outubro de 1929 e encerrou somente com o final da segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Estados Unidos e seu domínio sobre o mercado mundial. Assim como em outros tempos, a maior economia mundial passou a ser a maior potência militar, impondo seus interesses, sua ideologia e sua linguagem de forma hegemônica sobre os demais países.
O atual domínio estadounidense sobre o mundo se justifica principalmente pelo seu poder militar (especialmente através das armas nucleares) e a instituição do dólar como moeda-padrão para a economia mundial. O longo período de hegemonia dos EUA é marcado por guerras e destruição. O keynesianismo e a construção do Estado de bem-estar social contribuíram para estabelecer ciclos de crescimento econômico num nível nunca antes visto na história da humanidade. Isso serviu para evitar o surgimento de um contra-poder, iminente com a existência de um bloco não-capitalista (soviético e chinês), resultante de revoluções sociais no mesmo período. Mesmo assim, a economia mundial ameaçava entrar em crise nos anos 1980.
Com o desmoronamento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim (1989-1990), cerca de 2 bilhões de pessoas, que há mais de 50 anos estavam fora do alcance do capitalismo, dispondo de ¼ dos recursos mundiais, passaram a integrar o mercado capitalista, permitindo um novo ciclo de expansão, caracterizado como globalização econômica. Esse ciclo de acumulação está chegando ao seu final, deixando, mais uma vez, explícitas duas características fundamentais do capitalismo como modo de produção: a instabilidade e a insustentabilidade.
A economia capitalista é marcada por crises contínuas, umas menores e outras de caráter mundial. Em tese, portanto, podemos afirmar que não existe capitalismo sem crise econômica. As crises cíclicas de superprodução são intrínsecas a esse modo de produção, caracterizado pela separação entre capital e trabalho. O crescente investimento em capital constante (prédios máquinas, tecnologia, etc.), desproporcional ao investimento em capital variável (trabalho vivo), conduz a uma tendencial queda da taxa de lucros, pois somente o trabalho gera o valor e a mais valia (fruto da exploração do tempo de trabalho). Diante disso, os liberais procuram uma saída de sobrevivência ideológica, pois não querem assumir que Marx tinha razão.
Os capitalistas, confrontados com essa fatalidade, há muito tempo conhecida, tendem a investir em outros setores da economia quando determinados investimentos passam a ser considerados menos lucrativos. Assim, muitos investidores deixaram de investir na produção, passando a alocar dinheiro no mercado imobiliário, em bolsas de valores e em bancos. Contudo, “dinheiro não gera dinheiro”. Para que o dinheiro possa valorizar é necessário que ele seja investido na produção, de forma que seja possível se apropriar do excedente de valor gerado pelo trabalho. Por isso, as consequências negativas sobre o capital produtivo são enormes, pois para suportar a carga do pagamento de juros e satisfazer a expectativa dos acionistas, as indústrias, por exemplo, são obrigadas a aumentar a mais-valia (a exploração do trabalho), através de maiores jornadas de trabalho e menores salários. O efeito final, entretanto, somente reforça o problema da crise de superprodução: os menores salários e o desemprego diminuem o poder de compra, desaquecendo a economia como um todo e estimulando os acionistas a investir em outros setores. A crise gira em círculo e o espiral depressivo somente tende a aumentar.
A expectativa de valorizar dinheiro através do mercado financeiro e imobiliário é comparável a um jogo de cassino, onde apenas alguns se apropriam de vantagens a curto prazo, resultantes das perdas de outros. Com a ampliação do mercado financeiro e a mundialização do capital, foi generalizada em nível internacional uma espécie de cassino mundial, embora mantendo o maior fluxo de capital entre os países capitalistas mais ricos. Para que o mercado mundial de capitais pudesse crescer em tamanha proporção, decisões políticas foram necessárias para permitir equiparações e garantias mínimas aos investidores. A expectativa era estimular o crescimento da economia através do fluxo de investimentos que, segundo a crença dos liberais, seria regulado pela “mão invisível do mercado”.
Atualmente estamos diante de mais um fracasso histórico do liberalismo. Nunca o mercado havia sido tão liberalizado e em escala internacional. As expectativas dos liberais foram frustradas porque suas teorias partem de uma ilusão central: a idéia de que o mercado seria uma força autoreguladora e que, em função da concorrência, os recursos econômicos seriam alocados da melhor maneira possível. Essa idealização do mercado como mecanismo regulador segue uma lógica de pensamento que corrobora a circulação e o aquecimento da especulação nas bolsas de valores.
Na realidade, entretanto, o mercado funciona com base nas relações socias entre seres humanos que trocam produtos. O mercado é regulado pela oferta e pela procura de mercadorias, uma relação meramente quantitativa, que cumpre uma função de mediação. Mas, assim como a mercadoria pode operar como fetiche, o processo de troca de mercadorias produz e necessita de ilusões para continuar funcionando. Na lógica do mercado, os vendedores pressupõem que compradores pagam, em forma de dinheiro (uma mercadoria comum que serve para trocar mercadorias), e os compradores pagam porque internalizaram a idéia da troca. Com base na mesma idéia, credores e devedores negociam, acionistas e investidores aplicam dinheiro (mesmo quando este continua nos bancos, sendo apenas uma expectativa, uma virtualidade, pois trata-se de cifras, de transações bancárias sem o uso de moeda-papel, de documentos que geram expectativa de pagamento).
Quando a virtualidade do mercado idealizado foi confrontada com uma crescente impossibilidade real de pagamento (por parte do assim chamado capitalismo real, dependente da produção), as expectativas dos “apostadores” se reduziram a riscos. O problema maior, para além das expectativas de ganho frustradas (como eram virtuais não poderiam ser caracterizadas como perdas, pois se baseavam meramente em apostas) dos assim chamados investidores, é a incidência negativa do crédito sobre a produção capitalista, gerando endividamento, falências e uma depressão econômica real. Contudo, a origem do problema continua na produção capitalista, tendencialmente geradora de crises de superprodução. A crise financeira é sua decorência e apenas agrava a crise do capitalismo “real”, surgindo em escala global quando a maioria dos economistas liberais a menosprezava como distante, localizada e passageira, ignorando seu potencial destrutivo.
As soluções apresentadas para sair da crise confirmam o caráter ideológico do liberalismo. A atitude de negação do próprio discurso em favor do livre mercado e a proposta de “ajuda econômica” por parte do Estado demonstram claramente o equívoco da concepção do mercado como alocador de recursos: o mercado é um instrumento de poder que opera no sentido da concentração de recursos econômicos, tendo como maiores consequências negativas o desperdício (destruição do meio ambiente) e a exclusão social (radicalização da desigualdade).
A força política da idéia de mercado se manifesta na aceitação da premissa proposta: a necessidade de ajudar o capitalismo a sair da crise. Em outras palavras, os prejuízos são socializados (na forma de subsídios, ajuda financeira, isenção de impostos) e os benefícios privatizados (os jogadores que perderam no cassino, utilizando dinheiro de outros, recebem uma nova chance de jogar, novamente com o dinheiro alheio). O Estado se endivida para ajudar os responsáveis pela crise com dinheiro público e, com isso, continua reduzindo investimentos em programas sociais e em projetos de infra-estrutura. E, enquanto isso, a concentração de renda e de capital continua.
É claro que, diante das evidências do fracasso e da fragilidade do capitalismo, o Estado poderia estatizar os bancos endividados, estabelecer regras para evitar crises futuras e controlar o fluxo de capitais. Mas, pelo contrário, a solução apresentada pelos liberais consiste em solicitar a ajuda do Estado para ajudar o sistema a sair da crise e depois deixar o mercado como regulador até que uma próxima crise se instaure. Essa é a função do liberalismo, como teoria legitimadora do modo de produção capitalista, conduzindo à aceitação das suas propostas por parte da maioria da sociedade, que arca com o ônus da crise gerada em função da concentração do capital. A evidência da fragilidade do capitalismo e do fracasso teórico do liberalismo, entretanto, não conduzem, automaticamente, à sua superação, pois os interesses que os fundamentam são mais importantes e se situam acima dos argumentos. Mesmo assumindo a contradição no seu discurso, os liberais não extraem dela todas as conseqüências, porque o interesse maior permanece na continuidade da produção capitalista, a razão da existência do liberalismo como teoria.
O “rei está nu”, mas a crença ilusória no Deus que o instituiu continua lhe servindo de vestimenta.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
PAPEL ACEITA TUDO
Uma graça a repercussão nos jornais da pesquisa Contas Regionais do IBGE nesse fim de semana.
O crescimento de 6,9% do Produto Interno Bruto (PIB) acreano em 2008 foi comemorado como um bem coletivo sem que ninguém, absolutamente ninguém perguntasse: "Cadê os resultados dessa abundância toda?"
Onde estão as indústrias? Os empregos? A redução das desigualdades? A qualidade de vida?
Para onde foi essa grana?
Não contesto o ritmo de crescimento da economia acreana, algo que o Censo 2010, que vai direto à fonte, deve confirmar e ampliar. Vale lembrar que "Contas Regionais" é obtida pelo cruzamento de dados de várias instituições, entre elas a Receita Federal, e outras pesquisas do IBGE feitas por amostragem.
O que duvido muito é que o crescimento do PIB no Acre, no Brasil ou onde quer que seja signifique melhoria da qualidade de vida, que parece ser o objetivo perseguido pelo governo e pelos jornais. Estes últimos pregam fervorosamente que a empregabilidade teria como efeito secundário uma desejável redução da violência, esquecendo que trata-se de mitologia tão antiga quanto absurda.
Que tipo de amnésia coletiva impede de observar que os maiores índices de violência estão justamente nas cidades mais ricas? Qual o melhor setor da sociedade para saber disso, senão os jornalistas?
O que reduz a violência não é crescimento econômico, é desconcentração de renda, algo longe de ocorrer no Acre. Vide o Índice de Gini, que mede a disparidade de salários entre as classes mais ricas e mais pobres. "Contas Regionais" infelizmente não traz essa estatística, mas a "Pesquisa de Orçamentos Familiares" (POF), na qual ela se baseia, afirma que esse índice é um dos maiores do País: o Acre ocupa a vice-liderança de disparidade de renda do ranking nacional.
"Contas Regionais", por sua vez, explica que a renda per capita do acreano é R$ 8.896,16. Isso é quanto a produção de riquezas daria para cada um se fosse dividida em partes iguais entre aqueles que a produziram. E antes que me classifiquem elogiosamente como bolchevique, atenção: não estamos falando de bens de propriedade, mas da produção de riquezas no intervalo de um ano (cerca de 742 reais para cada indivíduo ao mês, incluindo bebês, aposentados etc)!
Por que não se vê essas coisas nos jornais?
Por que não nos informam, por exemplo, que quanto mais estratificada for a economia, maior a disparidade entre as classes sociais, logo, maior a exclusão, maior a violência interpessoal (sem contar danos ambientais, psíquicos) etc? Não há dados sobre isso?
Por que não mostrar que a hierarquização econômica, que sempre exitiu no Acre (esse Estado nasceu assim, aliás, para quem não lembra, nasceu para isso) é que produz a violência? Que pessoas, tratadas como coisas, tendem a relativizar as noções comezinhas da ética do seu próprio grupo social? Não há exemplos a respeito, estudiosos a quem entrevistar?
A própria pesquisa dá subsídios para análises mais atentas. No campo, enquanto as atividades agropecuárias conduzidas por grandes produtores ou pequenas propriedades com dinheiro do Estado cresceram 14,7%, a indústria extrativa no mesmo período teve retração de 10,5%. Que fenômeno é esse? Não seria o caso de se perguntar qual o destino desses produtos antes de comemorar a gloriosa colocação do Acre no-ranking-de-crescimento-do-pib-nacional?
A diferença básica entre o agronegócio e a indústria extrativa é que a primeira produz e vende matérias-primas, as famosas commodities, com nenhuma ou pouquíssima agregação de valor, emprego ou circulação de renda. É uma economia concentradora e praticamente parasitária, que só beneficia o proprietário e meia dúzia de apaniguados. Junte-se a isso os créditos generosos do governo, o modo de produção insalubre da maioria das fazendas amazônicas - que a crônica jornalística, pelo menos a antiga, conhece bem - e temos a explicação parcial dessa "pujança".
Já a indústria extrativa é aquele setor pelo qual se originou esse pedaço de chão e foi responsável por grande parte dos conflitos no campo, especialmente nos anos 70. Caracteriza-se pela inclusão da economia familiar, pelo modo de produção arcaico, pela concorrência com a borracha sintética e todos aqueles motivos que a levaram à falência em meados dos anos 80, produzindo as periferias de Rio Branco e adjacências.
Contrariando todo o discurso de "refundação da cadeia produtiva extrativista para fornecer às multinacionais", alardeado pela Frente Popular do Acre (FPA), um formidável baque atingiu o setor no mesmo espaço geográfico em que viceja poderosamente o agronegócio (o IBGE inclui aí o setor madeireiro). Isso não é notícia?
Vivemos um período de transformações salutares na economia e no modo de vida acreano. A concentração de renda, já imensa, tende a crescer e com ela ampliar a violência urbana, o tráfico de drogas como alternativa de renda, a prostituição infanto-juvenil etc. Cada vez mais o desenvolvimento sustentável prometido pela FPA coincide com a sustentabilidade do desenvolvimento, isto é, em manter os números da economia em contínuo crescimento. Ou seja, como dizia o sábio Salomão no livro de Eclesiastes: "Não há nada novo debaixo do Sol".
Alguém duvida?
Uma certa editora-chefe, diante de pesquisas como "Contas Regionais", instruía os repórteres a enfatizar os números "positivos" e minimizar ou mesmo omitir os "negativos". Dada a função lobbysta da imprensa acreana é uma atitude até comum, embora antiética. Mas pode-se pensar: qual a extensão dos danos dessa mistificação?
Em benefício das aparências, como dizem, papel aceita tudo. O problema é a realidade.
O crescimento de 6,9% do Produto Interno Bruto (PIB) acreano em 2008 foi comemorado como um bem coletivo sem que ninguém, absolutamente ninguém perguntasse: "Cadê os resultados dessa abundância toda?"
Onde estão as indústrias? Os empregos? A redução das desigualdades? A qualidade de vida?
Para onde foi essa grana?
Não contesto o ritmo de crescimento da economia acreana, algo que o Censo 2010, que vai direto à fonte, deve confirmar e ampliar. Vale lembrar que "Contas Regionais" é obtida pelo cruzamento de dados de várias instituições, entre elas a Receita Federal, e outras pesquisas do IBGE feitas por amostragem.
O que duvido muito é que o crescimento do PIB no Acre, no Brasil ou onde quer que seja signifique melhoria da qualidade de vida, que parece ser o objetivo perseguido pelo governo e pelos jornais. Estes últimos pregam fervorosamente que a empregabilidade teria como efeito secundário uma desejável redução da violência, esquecendo que trata-se de mitologia tão antiga quanto absurda.
Que tipo de amnésia coletiva impede de observar que os maiores índices de violência estão justamente nas cidades mais ricas? Qual o melhor setor da sociedade para saber disso, senão os jornalistas?
O que reduz a violência não é crescimento econômico, é desconcentração de renda, algo longe de ocorrer no Acre. Vide o Índice de Gini, que mede a disparidade de salários entre as classes mais ricas e mais pobres. "Contas Regionais" infelizmente não traz essa estatística, mas a "Pesquisa de Orçamentos Familiares" (POF), na qual ela se baseia, afirma que esse índice é um dos maiores do País: o Acre ocupa a vice-liderança de disparidade de renda do ranking nacional.
"Contas Regionais", por sua vez, explica que a renda per capita do acreano é R$ 8.896,16. Isso é quanto a produção de riquezas daria para cada um se fosse dividida em partes iguais entre aqueles que a produziram. E antes que me classifiquem elogiosamente como bolchevique, atenção: não estamos falando de bens de propriedade, mas da produção de riquezas no intervalo de um ano (cerca de 742 reais para cada indivíduo ao mês, incluindo bebês, aposentados etc)!
Por que não se vê essas coisas nos jornais?
Por que não nos informam, por exemplo, que quanto mais estratificada for a economia, maior a disparidade entre as classes sociais, logo, maior a exclusão, maior a violência interpessoal (sem contar danos ambientais, psíquicos) etc? Não há dados sobre isso?
Por que não mostrar que a hierarquização econômica, que sempre exitiu no Acre (esse Estado nasceu assim, aliás, para quem não lembra, nasceu para isso) é que produz a violência? Que pessoas, tratadas como coisas, tendem a relativizar as noções comezinhas da ética do seu próprio grupo social? Não há exemplos a respeito, estudiosos a quem entrevistar?
A própria pesquisa dá subsídios para análises mais atentas. No campo, enquanto as atividades agropecuárias conduzidas por grandes produtores ou pequenas propriedades com dinheiro do Estado cresceram 14,7%, a indústria extrativa no mesmo período teve retração de 10,5%. Que fenômeno é esse? Não seria o caso de se perguntar qual o destino desses produtos antes de comemorar a gloriosa colocação do Acre no-ranking-de-crescimento-do-pib-nacional?
A diferença básica entre o agronegócio e a indústria extrativa é que a primeira produz e vende matérias-primas, as famosas commodities, com nenhuma ou pouquíssima agregação de valor, emprego ou circulação de renda. É uma economia concentradora e praticamente parasitária, que só beneficia o proprietário e meia dúzia de apaniguados. Junte-se a isso os créditos generosos do governo, o modo de produção insalubre da maioria das fazendas amazônicas - que a crônica jornalística, pelo menos a antiga, conhece bem - e temos a explicação parcial dessa "pujança".
Já a indústria extrativa é aquele setor pelo qual se originou esse pedaço de chão e foi responsável por grande parte dos conflitos no campo, especialmente nos anos 70. Caracteriza-se pela inclusão da economia familiar, pelo modo de produção arcaico, pela concorrência com a borracha sintética e todos aqueles motivos que a levaram à falência em meados dos anos 80, produzindo as periferias de Rio Branco e adjacências.
Contrariando todo o discurso de "refundação da cadeia produtiva extrativista para fornecer às multinacionais", alardeado pela Frente Popular do Acre (FPA), um formidável baque atingiu o setor no mesmo espaço geográfico em que viceja poderosamente o agronegócio (o IBGE inclui aí o setor madeireiro). Isso não é notícia?
Vivemos um período de transformações salutares na economia e no modo de vida acreano. A concentração de renda, já imensa, tende a crescer e com ela ampliar a violência urbana, o tráfico de drogas como alternativa de renda, a prostituição infanto-juvenil etc. Cada vez mais o desenvolvimento sustentável prometido pela FPA coincide com a sustentabilidade do desenvolvimento, isto é, em manter os números da economia em contínuo crescimento. Ou seja, como dizia o sábio Salomão no livro de Eclesiastes: "Não há nada novo debaixo do Sol".
Alguém duvida?
Uma certa editora-chefe, diante de pesquisas como "Contas Regionais", instruía os repórteres a enfatizar os números "positivos" e minimizar ou mesmo omitir os "negativos". Dada a função lobbysta da imprensa acreana é uma atitude até comum, embora antiética. Mas pode-se pensar: qual a extensão dos danos dessa mistificação?
Em benefício das aparências, como dizem, papel aceita tudo. O problema é a realidade.
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
STANDARD OPERATING PROCEDURE
O vídeo da semana é o premiado documentário de Errol Morris (Operação Padrão, em português) que revela detalhes brutais do tratamento dispensado pelos soldados do Exército norte-americanos aos prisioneiros na prisão de Abu Ghraib.
Para saber mais sobre o filme clique aqui.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
A CHINA DO FUTURO
O artigo abaixo foi enviado por e-mail pela jornalista anarquista Angélica Paiva, uma das poucas profissionais de imprensa que ainda ousam fazer jornalismo crítico no Acre (nas condições provincianas locais, fazer jornalismo "com opinião", ou seja, com "lado", é quase uma blasfêmia. Além de perigoso, é uma estratégia usual para se obter vantagens ou cargos).
Por Luciano Pires, via e-mail
Alguns conhecidos voltaram da China impressionados. Um determinado produto que o Brasil fabrica um milhão de unidades, uma só fábrica chinesa produz quarenta milhões... A qualidade já é equivalente. E a velocidade de reação é impressionante. Os chineses colocam qualquer produto no mercado em questão de semanas... Com preços que são uma fração dos praticados aqui.
Uma das fábricas está de mudança para o interior, pois os salários da região onde está instalada estão altos demais: 100 dólares. Um operário brasileiro equivalente ganha 300 dólares no mínimo. Que acrescidos de impostos e benefícios, representam quase 600 dólares. Comparados com os 100 dólares dos chineses, que recebem praticamente zero benefícios...
Hora extra? Na China? Esqueça. O pessoal por lá é tão agradecido por ter um emprego, que trabalha horas extras sabendo que nada vai receber...
Essa é a armadilha chinesa. Que não é uma estratégia comercial, mas de poder. Os chineses estão tirando proveito da atitude dos marqueteiros ocidentais, que preferem terceirizar a produção e ficar com o que “agrega valor”: a marca. Dificilmente você adquire nas grandes redes dos Estados Unidos um produto feito nos Estados Unidos. É tudo “made in China”, com rótulo estadunidense. Empresas ganham rios de dinheiro comprando dos chineses por centavos e vendendo por centenas... Mesmo ao custo do fechamento de suas fábricas.
É o que chamo de “estratégia preçonhenta”.
Enquanto os ocidentais terceirizam as táticas e ganham no curto prazo, a China assimila as táticas para dominar no longo prazo. As grandes potências mercadológicas que fiquem com as marcas, o design... Os chineses ficarão com a produção, desmantelando aos poucos os parques industriais ocidentais. Em breve, por exemplo, não haverá mais fábricas de tênis pelo mundo. Só na China. Que então aumentará seus preços, produzindo um “choque da manufatura”, como foi o do petróleo. E o mundo perceberá que reerguer suas fábricas terá custo proibitivo. Perceberá que tornou-se refém do dragão que ele mesmo alimentou. Dragão que aumentará ainda mais os preços, pois quem manda é ele, que tem fábricas, inventários e empregos... Uma inversão de jogo que terá o impacto de uma bomba atômica. Chinesa.
Nesse dia, os executivos “preçonhentos” tristemente olharão para os esqueletos de suas antigas fábricas, para os técnicos aposentados jogando bocha na esquina, para as sucatas de seus parques fabris desmontados. E lembrarão com saudades do tempo em que ganharam dinheiro comprando baratinho dos chineses e vendendo caro a seus conterrâneos...
E então, entristecidos, abrirão suas marmitas e almoçarão suas marcas.
REFLITA E COMEÇE A COMPRAR - JÁ - OS PRODUTOS DE FABRICAÇÃO NACIONAL, FOMENTANDO O EMPREGO EM NOSSO PAÍS, PELA SOBREVIVÊNCIA DO SEU AMIGO, DO SEU VIZINHO E ATÉ MESMO DA SUA PRÓPRIA... E DE SEUS DESCENDENTES.
Nota pessoal: Fuçando a net descobri que o autor, Luciano Pires, é diretor de Comunicação Corporativa da DANA, multinacional do ramo de peças de automóveis com sede mundial em Maumee, Ohio, nos Estados Unidos. O artigo original foi publicado no site do autor em 09.02.2006, com o título original "Os Preçonhentos" e sem o último parágrafo desta versão (aparentemente um acréscimo obtido nos descaminhos da internet).
Em seu website a DANA esclarece que "emprega 25.000 colaboradores em 26 países e obteve vendas de US$ 5,2 bilhões em 2009. Na América do Sul, registrou vendas de aproximadamente US$ 1 bilhão e tem operações na Argentina, Brasil, Colômbia, Uruguai e Venezuela. No total, são 26 operações que empregam 4.500 pessoas." Ou seja, caras-pálidas: o artigo obviamente também tem "lado". Okay?
Por Luciano Pires, via e-mail
Alguns conhecidos voltaram da China impressionados. Um determinado produto que o Brasil fabrica um milhão de unidades, uma só fábrica chinesa produz quarenta milhões... A qualidade já é equivalente. E a velocidade de reação é impressionante. Os chineses colocam qualquer produto no mercado em questão de semanas... Com preços que são uma fração dos praticados aqui.
Uma das fábricas está de mudança para o interior, pois os salários da região onde está instalada estão altos demais: 100 dólares. Um operário brasileiro equivalente ganha 300 dólares no mínimo. Que acrescidos de impostos e benefícios, representam quase 600 dólares. Comparados com os 100 dólares dos chineses, que recebem praticamente zero benefícios...
Hora extra? Na China? Esqueça. O pessoal por lá é tão agradecido por ter um emprego, que trabalha horas extras sabendo que nada vai receber...
Essa é a armadilha chinesa. Que não é uma estratégia comercial, mas de poder. Os chineses estão tirando proveito da atitude dos marqueteiros ocidentais, que preferem terceirizar a produção e ficar com o que “agrega valor”: a marca. Dificilmente você adquire nas grandes redes dos Estados Unidos um produto feito nos Estados Unidos. É tudo “made in China”, com rótulo estadunidense. Empresas ganham rios de dinheiro comprando dos chineses por centavos e vendendo por centenas... Mesmo ao custo do fechamento de suas fábricas.
É o que chamo de “estratégia preçonhenta”.
Enquanto os ocidentais terceirizam as táticas e ganham no curto prazo, a China assimila as táticas para dominar no longo prazo. As grandes potências mercadológicas que fiquem com as marcas, o design... Os chineses ficarão com a produção, desmantelando aos poucos os parques industriais ocidentais. Em breve, por exemplo, não haverá mais fábricas de tênis pelo mundo. Só na China. Que então aumentará seus preços, produzindo um “choque da manufatura”, como foi o do petróleo. E o mundo perceberá que reerguer suas fábricas terá custo proibitivo. Perceberá que tornou-se refém do dragão que ele mesmo alimentou. Dragão que aumentará ainda mais os preços, pois quem manda é ele, que tem fábricas, inventários e empregos... Uma inversão de jogo que terá o impacto de uma bomba atômica. Chinesa.
Nesse dia, os executivos “preçonhentos” tristemente olharão para os esqueletos de suas antigas fábricas, para os técnicos aposentados jogando bocha na esquina, para as sucatas de seus parques fabris desmontados. E lembrarão com saudades do tempo em que ganharam dinheiro comprando baratinho dos chineses e vendendo caro a seus conterrâneos...
E então, entristecidos, abrirão suas marmitas e almoçarão suas marcas.
REFLITA E COMEÇE A COMPRAR - JÁ - OS PRODUTOS DE FABRICAÇÃO NACIONAL, FOMENTANDO O EMPREGO EM NOSSO PAÍS, PELA SOBREVIVÊNCIA DO SEU AMIGO, DO SEU VIZINHO E ATÉ MESMO DA SUA PRÓPRIA... E DE SEUS DESCENDENTES.
Nota pessoal: Fuçando a net descobri que o autor, Luciano Pires, é diretor de Comunicação Corporativa da DANA, multinacional do ramo de peças de automóveis com sede mundial em Maumee, Ohio, nos Estados Unidos. O artigo original foi publicado no site do autor em 09.02.2006, com o título original "Os Preçonhentos" e sem o último parágrafo desta versão (aparentemente um acréscimo obtido nos descaminhos da internet).
Em seu website a DANA esclarece que "emprega 25.000 colaboradores em 26 países e obteve vendas de US$ 5,2 bilhões em 2009. Na América do Sul, registrou vendas de aproximadamente US$ 1 bilhão e tem operações na Argentina, Brasil, Colômbia, Uruguai e Venezuela. No total, são 26 operações que empregam 4.500 pessoas." Ou seja, caras-pálidas: o artigo obviamente também tem "lado". Okay?
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
A FAVELIZAÇÃO DAS CIDADES
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
Manuel Bandeira
Por Ari de Oliveira Zenha, na Carta Maior
O capitalismo tem transformado sistematicamente as cidades em mega cidades e mais ainda, em hipercidades, com população superior a 20/30 milhões de habitantes.
Os assentamentos urbanos têm evoluído urbanisticamente trazendo consigo grandes núcleos urbanos que vão, na medida em que crescem, transformando estes – núcleos urbanos – numa fusão e apropriação em seu entorno das regiões rurais. Já é comum andarmos quilômetros e quilômetros dentro deste complexo de imbricamento, não sabendo aonde termina a região urbana e começa a rural, é o que os urbanistas chamam de hibridação rural/urbana.
Na cidade de São Paulo as favelas, em 1970, eram de 1,2% de sua população, passando em 1993 para 19,8%, crescimento vertiginoso e explosivo de uma média anual de 16,4% ao ano na década de 1990.
O aumento generalizado da favelização é gritante no mundo, e mais intenso nos países em desenvolvimento e nos países do Terceiro Mundo onde o crescimento urbano vem ocorrendo de forma alarmante, descontrolada e miserabilista. Os favelados compõem 6,0 % da população urbana nos países desenvolvidos e chega a 78,2% nos países menos desenvolvidos.
Num levantamento realizado em 2003 pela UN-Habitat coloca o Brasil com 36,6% de sua população urbana vivendo em favelas e cortiços, representando quase 52 milhões de pessoas. A maior favela do mundo encontra-se na cidade do México, com quatro milhões de habitantes. Na cidade do Rio de Janeiro 23 favelas encontram-se dentro desta e 77 são periféricas.
Na cidade de São Paulo a pesquisadora Suzana Taschner diz o seguinte: “(...) o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a partir de 1989, tentou regularizar e melhorar a ‘imensa cidade ilegal’ dos pobres. Embora as reformas do PT tenham produzido alguns resultados admiráveis, infelizmente, com as melhorias o submercado imobiliário se consolida na favela. Terrenos e casas tornam-se bens de consumo e o preço dispara”. Os resultados do empreendimento do PT foram os surgimentos da “favela dentro da favela”, onde surgem os cortiços, onde se alugam quartos aos mais pobres dentre os pobres, como diz Mike Davis.
Nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, devido à falta de espaço urbano (terra), aparece a procura crescente por aluguel de cômodos. Segundo Suzana Taschner com a verticalização das favelas mais antigas surgem prédios de quatro a seis andares, em geral para serem alugados.
Ao mercantilizar a terra urbana dos favelados, o sistema capitalista mundializado, de forma imperativa e implacável os considera como lixo humano, pois para o capitalismo a existência do ser humano não passa de mais uma mercadoria a ser comercializada no grande mercado globalizado.
Diante disso o primeiro e mais famoso empreendimento de condomínios fechados (arquitetura do medo) construído no Brasil chamado Alphaville é uma verdadeira cidade na periferia, “cercada e americanizada na grande São Paulo”. Segundo Mike Davis, citando a brasileira Teresa Caldeira, diz o seguinte: (...) “a segurança é um dos principais elementos da publicidade e obsessão de todos os envolvidos”.
Outro exemplo está na cidade do Rio de Janeiro onde um condomínio fechado (vertical) encravado no bairro nobre da Barra da Tijuca é todo cercado por muros altos e cercas eletrificadas, ocupa bem dizer todo um quarteirão e seus proprietários vivem em uma verdadeira concha apartada do mundo real. Este condomínio tem campo de golfe, pista de Cooper, piscinas, restaurante, lojas de conveniência, heliporto, sauna, academia de ginástica, cercas eletrificadas, segurança 24 horas, garagem para quatro carros, na sua grande maioria importado e blindado. Nos fins de semana o heliporto chega a ficar congestionado, pois helicópteros descem e sobem levando seus moradores para suas mansões cinematográficas em Angra dos Reis (RJ). Tudo é vigiado 24 horas por câmeras e seguranças. Só para ilustrar, quando se vai utilizar a parte de piscinas, restaurante, academias, etc., o trabalhador que controla a entrada nesses recintos, está vestido com roupas que fazem lembrar os serviçais da nobreza inglesa.
As trabalhadoras que servem aos usuários das piscinas vestidas todas de branco dos pés à cabeça, estão impecáveis para os requisitos e deleite de luxo e limpeza de seus moradores burgueses e da alta classe media.
O servilismo dos trabalhadores deste condomínio é constrangedor, pois eles se colocam em uma posição de inferioridade, de submissão e de serventia aos desejos e caprichos de seus moradores, chegando com isso, às raias do absurdo a que um ser humano pode se sujeitar. Em várias mesas a língua falada é o inglês. Os salões de festa são todos com ar condicionado, ou seja, enquanto seus moradores fazem suas festas (durante o dia) a uma temperatura de 20 a 23 graus, do lado de fora a temperatura está próxima aos 40 graus. Mas, por ironia a vista que se tem ao se alcançar os fundos deste condomínio é contrastante, ao longe, nas encostas, nos morros, está a maior favela do Rio de Janeiro e do Brasil, a favela da Rocinha, como querendo dizer: olhem, estamos aqui!
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
Manuel Bandeira
Por Ari de Oliveira Zenha, na Carta Maior
O capitalismo tem transformado sistematicamente as cidades em mega cidades e mais ainda, em hipercidades, com população superior a 20/30 milhões de habitantes.
Os assentamentos urbanos têm evoluído urbanisticamente trazendo consigo grandes núcleos urbanos que vão, na medida em que crescem, transformando estes – núcleos urbanos – numa fusão e apropriação em seu entorno das regiões rurais. Já é comum andarmos quilômetros e quilômetros dentro deste complexo de imbricamento, não sabendo aonde termina a região urbana e começa a rural, é o que os urbanistas chamam de hibridação rural/urbana.
Na cidade de São Paulo as favelas, em 1970, eram de 1,2% de sua população, passando em 1993 para 19,8%, crescimento vertiginoso e explosivo de uma média anual de 16,4% ao ano na década de 1990.
O aumento generalizado da favelização é gritante no mundo, e mais intenso nos países em desenvolvimento e nos países do Terceiro Mundo onde o crescimento urbano vem ocorrendo de forma alarmante, descontrolada e miserabilista. Os favelados compõem 6,0 % da população urbana nos países desenvolvidos e chega a 78,2% nos países menos desenvolvidos.
Num levantamento realizado em 2003 pela UN-Habitat coloca o Brasil com 36,6% de sua população urbana vivendo em favelas e cortiços, representando quase 52 milhões de pessoas. A maior favela do mundo encontra-se na cidade do México, com quatro milhões de habitantes. Na cidade do Rio de Janeiro 23 favelas encontram-se dentro desta e 77 são periféricas.
Na cidade de São Paulo a pesquisadora Suzana Taschner diz o seguinte: “(...) o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a partir de 1989, tentou regularizar e melhorar a ‘imensa cidade ilegal’ dos pobres. Embora as reformas do PT tenham produzido alguns resultados admiráveis, infelizmente, com as melhorias o submercado imobiliário se consolida na favela. Terrenos e casas tornam-se bens de consumo e o preço dispara”. Os resultados do empreendimento do PT foram os surgimentos da “favela dentro da favela”, onde surgem os cortiços, onde se alugam quartos aos mais pobres dentre os pobres, como diz Mike Davis.
Nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, devido à falta de espaço urbano (terra), aparece a procura crescente por aluguel de cômodos. Segundo Suzana Taschner com a verticalização das favelas mais antigas surgem prédios de quatro a seis andares, em geral para serem alugados.
Ao mercantilizar a terra urbana dos favelados, o sistema capitalista mundializado, de forma imperativa e implacável os considera como lixo humano, pois para o capitalismo a existência do ser humano não passa de mais uma mercadoria a ser comercializada no grande mercado globalizado.
Diante disso o primeiro e mais famoso empreendimento de condomínios fechados (arquitetura do medo) construído no Brasil chamado Alphaville é uma verdadeira cidade na periferia, “cercada e americanizada na grande São Paulo”. Segundo Mike Davis, citando a brasileira Teresa Caldeira, diz o seguinte: (...) “a segurança é um dos principais elementos da publicidade e obsessão de todos os envolvidos”.
Outro exemplo está na cidade do Rio de Janeiro onde um condomínio fechado (vertical) encravado no bairro nobre da Barra da Tijuca é todo cercado por muros altos e cercas eletrificadas, ocupa bem dizer todo um quarteirão e seus proprietários vivem em uma verdadeira concha apartada do mundo real. Este condomínio tem campo de golfe, pista de Cooper, piscinas, restaurante, lojas de conveniência, heliporto, sauna, academia de ginástica, cercas eletrificadas, segurança 24 horas, garagem para quatro carros, na sua grande maioria importado e blindado. Nos fins de semana o heliporto chega a ficar congestionado, pois helicópteros descem e sobem levando seus moradores para suas mansões cinematográficas em Angra dos Reis (RJ). Tudo é vigiado 24 horas por câmeras e seguranças. Só para ilustrar, quando se vai utilizar a parte de piscinas, restaurante, academias, etc., o trabalhador que controla a entrada nesses recintos, está vestido com roupas que fazem lembrar os serviçais da nobreza inglesa.
As trabalhadoras que servem aos usuários das piscinas vestidas todas de branco dos pés à cabeça, estão impecáveis para os requisitos e deleite de luxo e limpeza de seus moradores burgueses e da alta classe media.
O servilismo dos trabalhadores deste condomínio é constrangedor, pois eles se colocam em uma posição de inferioridade, de submissão e de serventia aos desejos e caprichos de seus moradores, chegando com isso, às raias do absurdo a que um ser humano pode se sujeitar. Em várias mesas a língua falada é o inglês. Os salões de festa são todos com ar condicionado, ou seja, enquanto seus moradores fazem suas festas (durante o dia) a uma temperatura de 20 a 23 graus, do lado de fora a temperatura está próxima aos 40 graus. Mas, por ironia a vista que se tem ao se alcançar os fundos deste condomínio é contrastante, ao longe, nas encostas, nos morros, está a maior favela do Rio de Janeiro e do Brasil, a favela da Rocinha, como querendo dizer: olhem, estamos aqui!
terça-feira, 16 de novembro de 2010
A ESTÉTICA DA EXCLUSÃO
Os ataques a quatro jovens na capital paulista, as declarações de fúria incontida do ex-coronel Hildebrando Pascoal à imprensa e as mais recentes tentativas relativistas de justificar o injustificável no caso Mayara Petruso têm como ponto comum a mais profunda incapacidade de lidar com a integralidade e a pluralidade humanas.
Seria pragmático, ainda que tedioso, se essa questão pudesse ser esgotada como gostam os apresentadores de programas de jornalismo policial: em discursos etéreos sobre o quanto devemos nos respeitar, nos amar, nos compreender etc, especialmente quando se aproximam os festejos natalinos.
Mais efetivo, no entanto, é refletir sobre o nascedouro real de tais concepções: o estabelecimento da exclusão como valor cultural, como norma moral propriamente dita.
Que esquemas psíquicos de exclusão produzem comportamentos preconceituosos ou autoritários é uma constatação antiga das ciências da mente, especialmente da Psicanálise. A questão é o cerne disso. Na Idade Média a Igreja ensinava e os nobres acreditavam que a Terra era o centro do Universo. Na atual era burguesa o centro do universo é o Ego, o indivíduo. A substituição, necessária para marcar a passagem de um modo de produção para outro, esconde o que ambos guardam em comum: o segredo da dominação social.
Se na era medieval a Terra era o centro do Universo, segue-se que a Igreja, como porta-voz do Criador, tinha autoridade para impor a conversão de toda a Terra. Da mesma forma, se o centro do Universo é a vontade arbitrária do indivíduo, deduz-se que os valores privados é que constroem a vida social de tal forma que tudo o que possa contrariá-los ou limitá-los devem ser denunciados, expurgados e expostos em praça pública - notável reedição da triste sina de Galileu Galilei.
É próprio da hipertrofia do Ego considerar diferenças como inferiores (ou superiores, num pólo oposto, produzindo o fenômeno conhecido como servilismo). Da disseminação social do egoísmo vem o estabelecimento da violência como solução dos conflitos. O problema, então, não é o conflito, natural e necessário. O problema é a violência.
Por que a violência? Porque a hipervalorização da própria cosmovisão moral encarrega-se de substituir a compreensão do outro como um ser humano integral. O fato desse efeito ocorrer de formas e níveis diferentes na sociedade - desde o mero chiste até espancamentos, passando por artigos xenófobos na "grande imprensa" - indica apenas que as pessoas possuem outras referências ou influências, dada a sua condição de seres sociais.
No entanto, o resultado desse processo não deixa de ser uma estética da exclusão presente em praticamente todas as manifestações da vida social, mas que somente em casos mais notáveis assusta e faz pensar - o que, por si só, já é preocupante.
No caso da agressão em São Paulo, salta aos olhos a violência contra seres humanos devido a uma suposta condição sexual. No caso de Hildebrando Pascoal, o alerta surge diante da defesa explícita do assassinato como forma de vingança pessoal. Nas tentativas de justificar Mayara Petruso chama a atenção a incapacidade brutal de conceber nordestinos como seres humanos que, longe de trocar votos por pratos de comida, escolheram um projeto de Estado que lhes oferece inclusão gradual na dinâmica social da nossa época, isto é, no capitalismo.
Este último caso é bem mais grave porque além de ignorar a capacidade de reflexão de todo um grupo de pessoas na escolha do que é melhor para elas mesmas, tenta impor sub-repticiamente a sua concepção particular de indivíduo "consciente": aquele que, apesar de ter necessidades, aspirações e medos como todo ser humano, tem mais dinheiro. Essa tentativa evidencia, sozinha, o efeito mais nocivo do inflacionamento do ego nas sociedades burguesas: a tentativa de cirscunscrever, para toda a vida social, os valores que pertencem a uma única classe: a dos ricos.
Obviamente o resultado dessa tentativa não pode ser outro, senão mais violência. Ética negada não é ética, é ideologia e como tal serve à dominação, ao direcionamento das vontades.
Segundo Freud, o tenso equilíbrio entre Ego, Id e Superego só é rompido em situações de extraordinário dilaceramento humano. A vitória do Ego sobre o Superego, por exemplo, só se dá em situações de suicídio. Socialmente, a ordem que inscreve o Ego como o centro do Universo em benefício dos valores estratégicos de uma classe, tende a eliminar a pluralidade humana em benefício de uma ordem social fundada paradoxalmente no poder do mais forte.
Ao eliminar a pluralidade, a estética da exclusão elimina todas as possibilidades de diálogo, tolerância e aprendizado por convivência, criando uma ditadura moral em nome dos "bons costumes". A única visão verdadeira é aquela que tem no indivíduo, isolado, o seu dogma.
O problema não é então a violência desvairada da nossa época, especialmente nos países submetidos a experiências de flexibilização de leis trabalhistas e redução da cobertura de serviços públicos do Estado. O problema da nossa época, o que está por trás dos índices alarmantes de estupros em família, de assassinatos em série, de perda dos esquemas de sentido na vida, é a supervalorização do ego nas sociedades burguesas.
Nosso problema é o exclusivismo salvífico do individualismo. É a localização do centro do Universo.
Seria pragmático, ainda que tedioso, se essa questão pudesse ser esgotada como gostam os apresentadores de programas de jornalismo policial: em discursos etéreos sobre o quanto devemos nos respeitar, nos amar, nos compreender etc, especialmente quando se aproximam os festejos natalinos.
Mais efetivo, no entanto, é refletir sobre o nascedouro real de tais concepções: o estabelecimento da exclusão como valor cultural, como norma moral propriamente dita.
Que esquemas psíquicos de exclusão produzem comportamentos preconceituosos ou autoritários é uma constatação antiga das ciências da mente, especialmente da Psicanálise. A questão é o cerne disso. Na Idade Média a Igreja ensinava e os nobres acreditavam que a Terra era o centro do Universo. Na atual era burguesa o centro do universo é o Ego, o indivíduo. A substituição, necessária para marcar a passagem de um modo de produção para outro, esconde o que ambos guardam em comum: o segredo da dominação social.
Se na era medieval a Terra era o centro do Universo, segue-se que a Igreja, como porta-voz do Criador, tinha autoridade para impor a conversão de toda a Terra. Da mesma forma, se o centro do Universo é a vontade arbitrária do indivíduo, deduz-se que os valores privados é que constroem a vida social de tal forma que tudo o que possa contrariá-los ou limitá-los devem ser denunciados, expurgados e expostos em praça pública - notável reedição da triste sina de Galileu Galilei.
É próprio da hipertrofia do Ego considerar diferenças como inferiores (ou superiores, num pólo oposto, produzindo o fenômeno conhecido como servilismo). Da disseminação social do egoísmo vem o estabelecimento da violência como solução dos conflitos. O problema, então, não é o conflito, natural e necessário. O problema é a violência.
Por que a violência? Porque a hipervalorização da própria cosmovisão moral encarrega-se de substituir a compreensão do outro como um ser humano integral. O fato desse efeito ocorrer de formas e níveis diferentes na sociedade - desde o mero chiste até espancamentos, passando por artigos xenófobos na "grande imprensa" - indica apenas que as pessoas possuem outras referências ou influências, dada a sua condição de seres sociais.
No entanto, o resultado desse processo não deixa de ser uma estética da exclusão presente em praticamente todas as manifestações da vida social, mas que somente em casos mais notáveis assusta e faz pensar - o que, por si só, já é preocupante.
No caso da agressão em São Paulo, salta aos olhos a violência contra seres humanos devido a uma suposta condição sexual. No caso de Hildebrando Pascoal, o alerta surge diante da defesa explícita do assassinato como forma de vingança pessoal. Nas tentativas de justificar Mayara Petruso chama a atenção a incapacidade brutal de conceber nordestinos como seres humanos que, longe de trocar votos por pratos de comida, escolheram um projeto de Estado que lhes oferece inclusão gradual na dinâmica social da nossa época, isto é, no capitalismo.
Este último caso é bem mais grave porque além de ignorar a capacidade de reflexão de todo um grupo de pessoas na escolha do que é melhor para elas mesmas, tenta impor sub-repticiamente a sua concepção particular de indivíduo "consciente": aquele que, apesar de ter necessidades, aspirações e medos como todo ser humano, tem mais dinheiro. Essa tentativa evidencia, sozinha, o efeito mais nocivo do inflacionamento do ego nas sociedades burguesas: a tentativa de cirscunscrever, para toda a vida social, os valores que pertencem a uma única classe: a dos ricos.
Obviamente o resultado dessa tentativa não pode ser outro, senão mais violência. Ética negada não é ética, é ideologia e como tal serve à dominação, ao direcionamento das vontades.
Segundo Freud, o tenso equilíbrio entre Ego, Id e Superego só é rompido em situações de extraordinário dilaceramento humano. A vitória do Ego sobre o Superego, por exemplo, só se dá em situações de suicídio. Socialmente, a ordem que inscreve o Ego como o centro do Universo em benefício dos valores estratégicos de uma classe, tende a eliminar a pluralidade humana em benefício de uma ordem social fundada paradoxalmente no poder do mais forte.
Ao eliminar a pluralidade, a estética da exclusão elimina todas as possibilidades de diálogo, tolerância e aprendizado por convivência, criando uma ditadura moral em nome dos "bons costumes". A única visão verdadeira é aquela que tem no indivíduo, isolado, o seu dogma.
O problema não é então a violência desvairada da nossa época, especialmente nos países submetidos a experiências de flexibilização de leis trabalhistas e redução da cobertura de serviços públicos do Estado. O problema da nossa época, o que está por trás dos índices alarmantes de estupros em família, de assassinatos em série, de perda dos esquemas de sentido na vida, é a supervalorização do ego nas sociedades burguesas.
Nosso problema é o exclusivismo salvífico do individualismo. É a localização do centro do Universo.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
O EXEMPLO CHILENO
Em um micro-ônibus da Transantiago havia um aviso fixado por algum usuário que dizia: “Se pago a passagem, não como”. Essa é uma verdade do tamanho do sol em um pequeno país cujo PIB cresce a cerca de 6%, ao custo da mais dura desigualdade social, concentração econômica e exploração sem limite nem regulação alguma de seres humanos e natureza. Segundo dados oficiais, o Chile é hoje mais pobre que em 2006. Naquele ano, a pobreza alcançava 13,7% da população nacional, enquanto hoje esse índice é de 15,1%. E esses números, na verdade, são ainda maiores. O artigo é de Andrés Figueroa Cornejo.
Continua na agência Carta Maior.
Continua na agência Carta Maior.
sábado, 13 de novembro de 2010
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
OBAMA, O COMUNISTA
Ou a insustentável idiotia do ser, lá e cá
Faz parte da pregação ideológica de direita a identificação entre socialismo e desenvolvimento de medidas de proteção social, muitas delas relacionadas à afirmação de direitos básicos garantidos na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Que a afirmação de direitos, como alimentação, habitação e saúde, dentre outros, seja uma necessidade para a reprodução do modo de produção capitalista, é uma uma informação totalmente irrelevante. Igualmente dispensável é notar que tais direitos, garantidos por meio dos modernos sistemas de tributação, comércio, indústria etc, fortalecem o mercado interno e acabam por criar uma demanda formidável que garante o consumo em tempos de crise.
Ou seja, as medidas acusadas de implantarem - insidiosamente - o socialismo são apenas concessões de direitos básicos, garantidos na legislação básica, que visam a cidadania política dentro do capitalismo por meio da criação de uma demanda interna para o mercado, como vem provando, aliás, as políticas econômica e social do governo Lula.
Não é por outro motivo que as críticas dos partidos socialistas aos programas de transferência de renda, como de resto a todas as políticas de assistência social do governo, são precisamente aos seus efeitos evidentemente antissocialistas. O hiato é: se a afirmação dos mais básicos direitos de cidadania se dá visando o mercado e por dentro dele, logo as possibilidades de perceber o modo de produção capitalista como um sistema excludente e socialmente desagregador tornam-se nulas, ou, pelo menos, mais difíceis.
Em outras palavras, o desenvolvimento de políticas de assistência social que visam o mercado atua fundamentalmente contra as linhas-mestras daquela percepção do capitalismo como um modo de produção (de riquezas, para ser academicamente correto) a ser superado.
A crítica que coloca, portanto, medidas de afirmação do capitalismo como medidas de implantação do socialismo, para além da óbvia ignorância sobre um e outro, evidencia um papel ideológico na realidade concreta. Esse papel é claramente a desestabilização de governos ou Estados que têm na afirmação desses direitos a prioridade das suas políticas.
Não é de se estranhar que esse movimento não tenha nascido no Brasil. Nos Estados Unidos, um dos motivos da derrota do Partido Democrata nas últimas eleições legislativas foi justamente a campanha poderosa, plantada nos grandes meios de comunicação pelo Partido Republicano, que identificou o presidente Barack Obama como "socialista".
Este argumento chegou ao nosso país também pela imprensa, acostumada a "repercutir" (leia-se, repetir) os "temas de relevância" da vida política ianque. Entre os pecados de Obama no país da privataria galopante está, por exemplo, a criação de um sistema público de saúde e o fortalecimento de leis ambientais.
No Brasil deu-se o mesmo com as duas gestões do governo Lula. Políticas de fortalecimento do mercado interno são "confundidas" com a transição para o socialismo (o que, conceitualmente, graças à ausência de movimentos sociais organizados e de consciência de classe, mostra a total ignorância sobre o que significa tal coisa).
A questão que deve saltar aos olhos dos cientistas sociais e políticos durante o governo Dilma, para além da questão em torno do papel político-ideológico desse argumento, é o seu funcionamento social. É a "extensão do estrago", para usar um termo da roça. O cerne do debate não deve ser a confusão entre "implantação" do socialismo com estímulo interno ao capitalismo, mas a coalizão de forças que tentará minar a concessão de direitos básicos aos trabalhadores brasileiros.
Isso sim deve ser motivo da mais elaborada crítica. Desde o pós-guerra, pelo menos, sabe-se que determinados processos da vida social devem ser garantidos pelas nações. Acordos, congressos, cúpulas e tratados de alcance internacional foram elaborados visando a sofisticação de tais dispositivos, que na prática são pouco eficazes graças precisamente à doutrina ideológica do Consenso de Washington que prevê a primazia dos mercados a despeito da malchamada "questão social".
Não é por acaso que países que seguiram os receituários neoliberais e adotaram tal modelo viram uma explosão de violência e desagregação social. Indivíduos, tratados como mercadorias, tendem obviamente a relativizar a ética (que é social), os valores coletivos, em nome do próprio bem-estar pessoal.
Logo, se não quisermos ser uma geração de psicopatas, temos o imperativo ético de lutar contra tais tendências nefastas. E suas manifestações pseudocríticas.
Leia também: um balde de chá frio nos Estados Unidos
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
IMPRENSA: REGULAÇÃO x LIBERDADE
Por Venício Lima, no Observatório da Imprensa
Em entrevista concedida ao Jornal da Band, no último dia 2/11, a presidente eleita Dilma Rousseff tentou esclarecer, pela undécima vez, uma diferença que a grande mídia e seus aliados têm ignorado e, arriscaria a dizer, deliberadamente confundido: marco regulatório da mídia não tem nada a ver com qualquer restrição à liberdade da imprensa.
Diante da inescapável pauta sobre as "ameaças à democracia e à liberdade de expressão e de imprensa" que o país estaria enfrentando, o apresentador, Fábio Pannunzio, pergunta:
Apresentador – Esse é um assunto que, apesar de a senhora ter falado mil vezes disso, ainda não ficou claro o suficiente para que as pessoas possam entender. Então, vou insistir na pergunta. A senhora disse no seu discurso de anteontem [31/10] que prefere o barulho de uma imprensa livre ao silêncio das ditaduras, não é? A senhora estava se referindo a isso que se atribuí ao PT, que há uma tentativa de controlar a liberdade de imprensa no Brasil? (...)
Presidente eleita – Veja bem, você tem de distinguir duas coisas: marco regulatório de um controle do conteúdo na mídia. O controle social da mídia, se for de conteúdo, ele é um absurdo! É, de fato, um acinte à liberdade de imprensa, com esse acinte eu não compactuo. Jamais compactuarei.
Apresentador – A senhora vetaria se chegasse à sua mesa?
Presidente eleita – Se chegar na minha mesa qualquer tentativa de coibir a imprensa, no que se refere a divulgação de ideias, posições, propostas, opiniões, enfim, tudo que for conteúdo, eu acho que é isso que eu falei mesmo, o barulho da imprensa , seja que crítica for, ele é construtivo. Mesmo quando você discorda dele. Agora, isso não é um milhão de vezes, é infinitas vezes melhor que o silêncio das ditaduras. Isso é uma coisa.
Outra coisa diferente é a questão do marco regulatório. Porque o marco regulatório é outra questão. Vou tentar explicar, com alguns exemplos.
Apresentador – Para que a gente consiga entender, exatamente, a questão.
Presidente eleita – Com exemplos. Por exemplo: a participação do capital estrangeiro. Você tem todo o país regulamenta a participação do capital estrangeiro nas suas diferentes mídias. Outra questão, que é importantíssima, é o fato de que o mundo está mudando em uma velocidade enorme. Então, você vai ter de regular, de alguma forma, a interação entre as mídias, porque, hoje, quem faz isso não pode fazer aquilo, que não pode fazer aquele outro. O problema do cabo, o problema do sinal aberto, como é que junta tudo isso com internet; mesmo assim eu acho que a gente tem de ter muito cuidado.
Você tem de fazer um marco regulatório que permita que haja adaptações ao longo do tempo. Por quê? Porque, eu não sei se você lembra, em 80, nos anos 80, 90, a telefonia fixa era uma potência. Cada vez mais, com a base da internet, você tem a possibilidade, em cima da internet, de ter TV, telefonia, celular, enfim. O mundo está mudando, então até isso você vai ter de considerar. Você não pode ter, também, um marco regulatório que desconheça a existência da banda larga. E se você vai poder, ou não vai poder, fazer televisão, em que condições você vai fazer televisão. Isso o Brasil vai ter de regular minimamente, até porque tem casos que, se você não fizer isso, você deixa que haja uma concorrência meio desproporcional entre diferentes organismos.
Apresentador – Ok, muito obrigado pela resposta.
[Curiosamente essa parte da entrevista não consta do vídeo disponibilizado no site do Jornal da Band; a transcrição está disponível aqui.]
Confusão deliberada
Um marco regulatório se refere à regulação do mercado de mídia e à garantia de direitos humanos fundamentais. A regulação é necessária para impedir a propriedade cruzada e a concentração do controle nas mãos de umas poucas famílias e oligarquias políticas; garantir competição, pluralidade e diversidade. Para impedir a continuidade do "coronelismo eletrônico"; garantir o direito de resposta, inclusive o direito difuso, e o direito de antena. Em particular, marco regulatório se refere à radiodifusão (como se sabe, mas é sempre bom relembrar, uma concessão pública) e às novas tecnologias (internet, banda larga, telefonia móvel etc.).
Como diz a célebre frase do juiz Byron White da Suprema Corte dos Estados Unidos, "é o direito dos telespectadores e ouvintes, não o direito dos controladores da radiodifusão, que é soberano".
É disso que se trata.
Pergunto ao eventual leitor(a) se ele acredita que em democracias como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, Portugal, Espanha – para citar apenas alguns –, a liberdade da imprensa vive sob permanente ameaça? A comparação faz sentido no atual contexto brasileiro porque esses são países onde existe, há décadas, marco regulatório para o campo das comunicações, vale dizer, regulação da mídia.
A legislação ignorada
No Brasil, tanto a lei quanto a Constituição são cristalinas sobre a necessidade de fiscalização e regulação das concessões de radiodifusão. Ademais, os avanços tecnológicos das últimas décadas, que têm como marco a revolução digital e provocaram a chamada "convergência de mídias" pela diluição das fronteiras entre as telecomunicações e a radiodifusão, tornaram inevitável a regulação do setor.
Mais uma vez: é disso que se trata.
O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962) prevê no seu artigo 10:
Art. 10. Compete privativamente à União:
II – fiscalizar os Serviços de telecomunicações por ela concedidos, autorizados ou permitidos.
Além disso, o código admite a punição para o caso de abusos de concessionários. Está escrito na lei:
Art. 52. A liberdade de radiodifusão não exclui a punição dos que praticarem abusos no seu exercício.
Art. 53. Constitui abuso, no exercício de liberdade da radiodifusão, o emprêgo dêsse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive: (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
Alguns exemplos de abusos citados na Lei:
e) promover campanha discriminatória de classe, côr, raça ou religião; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
(...)
g) comprometer as relações internacionais do País; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
Por outro lado, o Decreto n. 52.795 de 1963, que regulamenta os serviços de radiodifusão, antecipa normas e princípios que seriam, mais tarde, incorporados à Constituição de 1988. Está lá:
Art. 28 – As concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão, além de outros que o Governo julgue convenientes aos interesses nacionais, estão sujeitas aos seguintes preceitos e obrigações: (Redação dada pelo Decreto nº 88067, de 26.1.1983)
11- subordinar os programas de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão;
12 – na organização da programação:
a) manter um elevado sentido moral e cívico, não permitindo a transmissão de espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrárias à moral familiar e aos bons costumes;
b) não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico;
c) destinar um mínimo de 5% (cinco por cento) do horário de sua programação diária à transmissão de serviço noticioso;
d) limitar ao máximo de 25% (vinte e cinco por cento) do horário da sua programação diária o tempo destinado à publicidade comercial;
e) reservar 5 (cinco) horas semanais para a transmissão de programas educacionais.
Por fim, a Constituição de 1988, prevê, especificamente, leis federais para a regulação de diferentes aspectos das comunicações, assim como a instalação de um Conselho para auxiliar o Congresso Nacional em qualquer assunto relativo ao capítulo "Da Comunicação Social".
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 3º – Compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
(...)
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Art. 222. (...)
§ 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
(...)
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
(...)
Art. 224. Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.
Direito à comunicação
Como disse a presidente eleita, há que se distinguir "marco regulatório de um controle do conteúdo na mídia". Quem os confunde está, de fato, querendo evitar a regulação do mercado e a perda de privilégios históricos.
Insisto: regular a mídia é ampliar a liberdade de expressão, a liberdade da imprensa, a pluralidade e a diversidade. Regular a mídia é garantir mais – e não menos – democracia. É caminhar no sentido do pleno reconhecimento do direito à comunicação como um direito fundamental da cidadania.
É disso que se trata.
Em entrevista concedida ao Jornal da Band, no último dia 2/11, a presidente eleita Dilma Rousseff tentou esclarecer, pela undécima vez, uma diferença que a grande mídia e seus aliados têm ignorado e, arriscaria a dizer, deliberadamente confundido: marco regulatório da mídia não tem nada a ver com qualquer restrição à liberdade da imprensa.
Diante da inescapável pauta sobre as "ameaças à democracia e à liberdade de expressão e de imprensa" que o país estaria enfrentando, o apresentador, Fábio Pannunzio, pergunta:
Apresentador – Esse é um assunto que, apesar de a senhora ter falado mil vezes disso, ainda não ficou claro o suficiente para que as pessoas possam entender. Então, vou insistir na pergunta. A senhora disse no seu discurso de anteontem [31/10] que prefere o barulho de uma imprensa livre ao silêncio das ditaduras, não é? A senhora estava se referindo a isso que se atribuí ao PT, que há uma tentativa de controlar a liberdade de imprensa no Brasil? (...)
Presidente eleita – Veja bem, você tem de distinguir duas coisas: marco regulatório de um controle do conteúdo na mídia. O controle social da mídia, se for de conteúdo, ele é um absurdo! É, de fato, um acinte à liberdade de imprensa, com esse acinte eu não compactuo. Jamais compactuarei.
Apresentador – A senhora vetaria se chegasse à sua mesa?
Presidente eleita – Se chegar na minha mesa qualquer tentativa de coibir a imprensa, no que se refere a divulgação de ideias, posições, propostas, opiniões, enfim, tudo que for conteúdo, eu acho que é isso que eu falei mesmo, o barulho da imprensa , seja que crítica for, ele é construtivo. Mesmo quando você discorda dele. Agora, isso não é um milhão de vezes, é infinitas vezes melhor que o silêncio das ditaduras. Isso é uma coisa.
Outra coisa diferente é a questão do marco regulatório. Porque o marco regulatório é outra questão. Vou tentar explicar, com alguns exemplos.
Apresentador – Para que a gente consiga entender, exatamente, a questão.
Presidente eleita – Com exemplos. Por exemplo: a participação do capital estrangeiro. Você tem todo o país regulamenta a participação do capital estrangeiro nas suas diferentes mídias. Outra questão, que é importantíssima, é o fato de que o mundo está mudando em uma velocidade enorme. Então, você vai ter de regular, de alguma forma, a interação entre as mídias, porque, hoje, quem faz isso não pode fazer aquilo, que não pode fazer aquele outro. O problema do cabo, o problema do sinal aberto, como é que junta tudo isso com internet; mesmo assim eu acho que a gente tem de ter muito cuidado.
Você tem de fazer um marco regulatório que permita que haja adaptações ao longo do tempo. Por quê? Porque, eu não sei se você lembra, em 80, nos anos 80, 90, a telefonia fixa era uma potência. Cada vez mais, com a base da internet, você tem a possibilidade, em cima da internet, de ter TV, telefonia, celular, enfim. O mundo está mudando, então até isso você vai ter de considerar. Você não pode ter, também, um marco regulatório que desconheça a existência da banda larga. E se você vai poder, ou não vai poder, fazer televisão, em que condições você vai fazer televisão. Isso o Brasil vai ter de regular minimamente, até porque tem casos que, se você não fizer isso, você deixa que haja uma concorrência meio desproporcional entre diferentes organismos.
Apresentador – Ok, muito obrigado pela resposta.
[Curiosamente essa parte da entrevista não consta do vídeo disponibilizado no site do Jornal da Band; a transcrição está disponível aqui.]
Confusão deliberada
Um marco regulatório se refere à regulação do mercado de mídia e à garantia de direitos humanos fundamentais. A regulação é necessária para impedir a propriedade cruzada e a concentração do controle nas mãos de umas poucas famílias e oligarquias políticas; garantir competição, pluralidade e diversidade. Para impedir a continuidade do "coronelismo eletrônico"; garantir o direito de resposta, inclusive o direito difuso, e o direito de antena. Em particular, marco regulatório se refere à radiodifusão (como se sabe, mas é sempre bom relembrar, uma concessão pública) e às novas tecnologias (internet, banda larga, telefonia móvel etc.).
Como diz a célebre frase do juiz Byron White da Suprema Corte dos Estados Unidos, "é o direito dos telespectadores e ouvintes, não o direito dos controladores da radiodifusão, que é soberano".
É disso que se trata.
Pergunto ao eventual leitor(a) se ele acredita que em democracias como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, Portugal, Espanha – para citar apenas alguns –, a liberdade da imprensa vive sob permanente ameaça? A comparação faz sentido no atual contexto brasileiro porque esses são países onde existe, há décadas, marco regulatório para o campo das comunicações, vale dizer, regulação da mídia.
A legislação ignorada
No Brasil, tanto a lei quanto a Constituição são cristalinas sobre a necessidade de fiscalização e regulação das concessões de radiodifusão. Ademais, os avanços tecnológicos das últimas décadas, que têm como marco a revolução digital e provocaram a chamada "convergência de mídias" pela diluição das fronteiras entre as telecomunicações e a radiodifusão, tornaram inevitável a regulação do setor.
Mais uma vez: é disso que se trata.
O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962) prevê no seu artigo 10:
Art. 10. Compete privativamente à União:
II – fiscalizar os Serviços de telecomunicações por ela concedidos, autorizados ou permitidos.
Além disso, o código admite a punição para o caso de abusos de concessionários. Está escrito na lei:
Art. 52. A liberdade de radiodifusão não exclui a punição dos que praticarem abusos no seu exercício.
Art. 53. Constitui abuso, no exercício de liberdade da radiodifusão, o emprêgo dêsse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive: (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
Alguns exemplos de abusos citados na Lei:
e) promover campanha discriminatória de classe, côr, raça ou religião; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
(...)
g) comprometer as relações internacionais do País; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
Por outro lado, o Decreto n. 52.795 de 1963, que regulamenta os serviços de radiodifusão, antecipa normas e princípios que seriam, mais tarde, incorporados à Constituição de 1988. Está lá:
Art. 28 – As concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão, além de outros que o Governo julgue convenientes aos interesses nacionais, estão sujeitas aos seguintes preceitos e obrigações: (Redação dada pelo Decreto nº 88067, de 26.1.1983)
11- subordinar os programas de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão;
12 – na organização da programação:
a) manter um elevado sentido moral e cívico, não permitindo a transmissão de espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrárias à moral familiar e aos bons costumes;
b) não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico;
c) destinar um mínimo de 5% (cinco por cento) do horário de sua programação diária à transmissão de serviço noticioso;
d) limitar ao máximo de 25% (vinte e cinco por cento) do horário da sua programação diária o tempo destinado à publicidade comercial;
e) reservar 5 (cinco) horas semanais para a transmissão de programas educacionais.
Por fim, a Constituição de 1988, prevê, especificamente, leis federais para a regulação de diferentes aspectos das comunicações, assim como a instalação de um Conselho para auxiliar o Congresso Nacional em qualquer assunto relativo ao capítulo "Da Comunicação Social".
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 3º – Compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
(...)
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Art. 222. (...)
§ 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
(...)
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
(...)
Art. 224. Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.
Direito à comunicação
Como disse a presidente eleita, há que se distinguir "marco regulatório de um controle do conteúdo na mídia". Quem os confunde está, de fato, querendo evitar a regulação do mercado e a perda de privilégios históricos.
Insisto: regular a mídia é ampliar a liberdade de expressão, a liberdade da imprensa, a pluralidade e a diversidade. Regular a mídia é garantir mais – e não menos – democracia. É caminhar no sentido do pleno reconhecimento do direito à comunicação como um direito fundamental da cidadania.
É disso que se trata.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DA SOCIOBIOLOGIA
Diante da estranha proliferação de crenças potencialmente nazistas, que pressupõem o indivíduo como um animal em que até a organização social é determinada geneticamente, dei-me ao trabalho de traduzir o texto abaixo.
É o editorial de um dos mais prestigiados jornais de ciência dos Estados Unidos, dando conta do que sociólogos e demais cientistas sociais já descobriram há tempos: humano é um complexo de múltiplas interações, não o resultado de determinações rigidamente fechadas que servem de forma precisa a interesses políticos.
No nazismo, por exemplo, a crença de que o indivíduo era moldado geneticamente serviu ao triste espetáculo que todos conhecem. Será que vão ressuscitar também os estudos de Joseph Mengele e Cesare Lombroso sobre as diferenças das "raças"? O que pretendem com isso?
Tradução livre do Too Much Weekly
Conservadores em geral tendem a esperar que a investigação do genoma humano ajude a provar que a natureza, não ordens sociais desiguais, determina quem acaba por se tornar doente e pobre. Mas os nossos genes têm-se recusado a cooperar.
Oliver James, psicólogo clínico notável pelas suas observações sobre como a desigualdade afeta nossos cérebros, divulgou algumas percepções fascinantes baseadas em novas investigações sobre até que ponto a desigualdade de fato reflete o que ocorre em nossos genes.
James escreveu muito ao longo dos últimos anos sobre o que denomina "ansiedade pela riqueza" ("affluenza")*, o "vírus" induzido pela desigualdade e que nos conduz a uma busca sempre maior por dinheiro, posses e fama, não importando o quanto já se possui.
A affluenza, destaca James, varia amplamente na sociedade. Quanto mais desigual for a distribuição de renda e riqueza numa sociedade, mais affluenza e mais elevada a incidência de doenças mentais que ela engendra.
Os apologistas de ordens sociais desiguais sempre contestaram qualquer ligação entre doenças mentais e os quadros econômico e social. Que pessoas de baixa renda sofram o dobro dos casos de depressão registrados entre as de renda maior significa apenas, segundo esses estudiosos, que aquelas vieram ao mundo com mais "deficiências pessoais" - inatas.
"A direita política acredita que os genes explicam amplamente porque os pobres são pobres, assim como terem uma probabilidade dupla de serem mentalmente doentes", observa James. "Para elas os pobres são uma espécie de lama genética que chafurda na base do charco genético".
A prova cabal deste chafurdamento, exultava a direita há uma década, viria quando "avanços rápidos na genética e na neurociência" - o Projeto Genoma humano e toda a investigação em torno dele - revelassem a verdadeira "história da natureza humana".
A investigação do genoma humano, como opinou há 10 anos o cientista político Charles Murray perante a organização de extrema-direita American Enterprise Institute, "está em vias de contradizer e abalar o território de certas posições políticas".
"Prevejo que os lemas da direita geralmente se demonstrarão mais próximos da realidade científica que os da esquerda", escreveu Murray, "ao mesmo tempo em que que muitas das reivindicações dos partidos de esquerda se revelarão incompatíveis com o modo como os seres humanos são programados (wired)".
Mais tarde, com maiores informações sobre o mapeamento genético do Homo sapiens, Murray voltou à baila: "Verificou-se que a população abaixo da linha de pobreza nos Estados Unidos tem uma constituição (makeup) genética relevante e significativamente diferente da constituição da população acima da linha de pobreza".
A despeito dessa exultância, Oliver James, numa nova análise, afirma que a finalização do mapeamento evidencia que a realidade científica não dá subsídios para tal conclusão. Pelo contrário: a extensa investigação do genoma desde o ano 2000 não revelou qualquer "constituição genética" que possa predispor algumas pessoas para o "êxito" e a riqueza e outras para a doença e a pobreza.
"Agora sabemos", observa James, "que os genes desempenham um pequeno papel na probabilidade de um irmão, uma classe social ou um grupo étnico desenvolver problemas de saúde mental em comparação, respectivamente, com um indivíduo, uma classe ou um grupo étnico saudáveis".
O Journal of Child Psychology and Psychiatry apresentou exatamente a mesma conclusão em um editorial do princípio de 2010. A ciência séria, declarava o editorial, agora concentra-se mais do que nunca "sobre o poder do meio social" e "todos, exceto os deterministas genéticos mais teimosos, terão que rever seus pontos de vista".
"Os fatores biológicos que atuam sobre o Homo sapiens não existem numa espécie de vácuo, hermeticamente selados em relação a fatores sociais e ambientais", acrescentou na semana passada o bioético Daniel Godlberg, da Carolina do Norte, num comentário sobre a nova análise de Oliver James. "Assim, mesmo a tentativa de separar as dimensões biológica e social não fazem o menor sentido".
Assim, o que faremos com o nosso novo entendimento da genética? Como podemos construir sobre o que agora sabemos a fim de ajudar a moldar sociedades mais saudáveis? James sugere uma sequência de três passos.
Primeiro, aconselha o psicólogo, "criar uma sociedade na qual o máximo de oportunidade para uma vida mentalmente saudável e realizada seja mais importante do que enriquecer uma minúscula minoria". Segundo, "colocar o atendimento das necessidades das crianças, especialmente as menores, à frente de todas as outras prioridades".
E em terceiro lugar, cultivar (nurture) as condições sócio-econômicas que maximizam a saúde mental. James explica: "Isso significa criar maior igualdade econômica, condições de trabalho muito mais seguras, maior flexibilidade de emprego para pais de crianças pequenas e uma jornada de trabalho de 35 horas".
Mas não temos, reconhece James, "a mínima possibilidade dessas coisas ocorrerem até que os políticos de todos os partidos entendam o que a ciência está a nos dizer".
Os cientistas podem precisar falar mais alto. E todos nós precisamos ouvir mais atentamente.
* Affluenza: Fusão entre as palavras affluence (riqueza) e influenza (gripe), significando, no texto, o desejo extremo de obter bens materiais ou o sentimento de insatisfação provocado pela busca insaciável e repetitiva de coisas.
Texto original em inglês aqui.
É o editorial de um dos mais prestigiados jornais de ciência dos Estados Unidos, dando conta do que sociólogos e demais cientistas sociais já descobriram há tempos: humano é um complexo de múltiplas interações, não o resultado de determinações rigidamente fechadas que servem de forma precisa a interesses políticos.
No nazismo, por exemplo, a crença de que o indivíduo era moldado geneticamente serviu ao triste espetáculo que todos conhecem. Será que vão ressuscitar também os estudos de Joseph Mengele e Cesare Lombroso sobre as diferenças das "raças"? O que pretendem com isso?
Tradução livre do Too Much Weekly
Conservadores em geral tendem a esperar que a investigação do genoma humano ajude a provar que a natureza, não ordens sociais desiguais, determina quem acaba por se tornar doente e pobre. Mas os nossos genes têm-se recusado a cooperar.
Oliver James, psicólogo clínico notável pelas suas observações sobre como a desigualdade afeta nossos cérebros, divulgou algumas percepções fascinantes baseadas em novas investigações sobre até que ponto a desigualdade de fato reflete o que ocorre em nossos genes.
James escreveu muito ao longo dos últimos anos sobre o que denomina "ansiedade pela riqueza" ("affluenza")*, o "vírus" induzido pela desigualdade e que nos conduz a uma busca sempre maior por dinheiro, posses e fama, não importando o quanto já se possui.
A affluenza, destaca James, varia amplamente na sociedade. Quanto mais desigual for a distribuição de renda e riqueza numa sociedade, mais affluenza e mais elevada a incidência de doenças mentais que ela engendra.
Os apologistas de ordens sociais desiguais sempre contestaram qualquer ligação entre doenças mentais e os quadros econômico e social. Que pessoas de baixa renda sofram o dobro dos casos de depressão registrados entre as de renda maior significa apenas, segundo esses estudiosos, que aquelas vieram ao mundo com mais "deficiências pessoais" - inatas.
"A direita política acredita que os genes explicam amplamente porque os pobres são pobres, assim como terem uma probabilidade dupla de serem mentalmente doentes", observa James. "Para elas os pobres são uma espécie de lama genética que chafurda na base do charco genético".
A prova cabal deste chafurdamento, exultava a direita há uma década, viria quando "avanços rápidos na genética e na neurociência" - o Projeto Genoma humano e toda a investigação em torno dele - revelassem a verdadeira "história da natureza humana".
A investigação do genoma humano, como opinou há 10 anos o cientista político Charles Murray perante a organização de extrema-direita American Enterprise Institute, "está em vias de contradizer e abalar o território de certas posições políticas".
"Prevejo que os lemas da direita geralmente se demonstrarão mais próximos da realidade científica que os da esquerda", escreveu Murray, "ao mesmo tempo em que que muitas das reivindicações dos partidos de esquerda se revelarão incompatíveis com o modo como os seres humanos são programados (wired)".
Mais tarde, com maiores informações sobre o mapeamento genético do Homo sapiens, Murray voltou à baila: "Verificou-se que a população abaixo da linha de pobreza nos Estados Unidos tem uma constituição (makeup) genética relevante e significativamente diferente da constituição da população acima da linha de pobreza".
A despeito dessa exultância, Oliver James, numa nova análise, afirma que a finalização do mapeamento evidencia que a realidade científica não dá subsídios para tal conclusão. Pelo contrário: a extensa investigação do genoma desde o ano 2000 não revelou qualquer "constituição genética" que possa predispor algumas pessoas para o "êxito" e a riqueza e outras para a doença e a pobreza.
"Agora sabemos", observa James, "que os genes desempenham um pequeno papel na probabilidade de um irmão, uma classe social ou um grupo étnico desenvolver problemas de saúde mental em comparação, respectivamente, com um indivíduo, uma classe ou um grupo étnico saudáveis".
O Journal of Child Psychology and Psychiatry apresentou exatamente a mesma conclusão em um editorial do princípio de 2010. A ciência séria, declarava o editorial, agora concentra-se mais do que nunca "sobre o poder do meio social" e "todos, exceto os deterministas genéticos mais teimosos, terão que rever seus pontos de vista".
"Os fatores biológicos que atuam sobre o Homo sapiens não existem numa espécie de vácuo, hermeticamente selados em relação a fatores sociais e ambientais", acrescentou na semana passada o bioético Daniel Godlberg, da Carolina do Norte, num comentário sobre a nova análise de Oliver James. "Assim, mesmo a tentativa de separar as dimensões biológica e social não fazem o menor sentido".
Assim, o que faremos com o nosso novo entendimento da genética? Como podemos construir sobre o que agora sabemos a fim de ajudar a moldar sociedades mais saudáveis? James sugere uma sequência de três passos.
Primeiro, aconselha o psicólogo, "criar uma sociedade na qual o máximo de oportunidade para uma vida mentalmente saudável e realizada seja mais importante do que enriquecer uma minúscula minoria". Segundo, "colocar o atendimento das necessidades das crianças, especialmente as menores, à frente de todas as outras prioridades".
E em terceiro lugar, cultivar (nurture) as condições sócio-econômicas que maximizam a saúde mental. James explica: "Isso significa criar maior igualdade econômica, condições de trabalho muito mais seguras, maior flexibilidade de emprego para pais de crianças pequenas e uma jornada de trabalho de 35 horas".
Mas não temos, reconhece James, "a mínima possibilidade dessas coisas ocorrerem até que os políticos de todos os partidos entendam o que a ciência está a nos dizer".
Os cientistas podem precisar falar mais alto. E todos nós precisamos ouvir mais atentamente.
* Affluenza: Fusão entre as palavras affluence (riqueza) e influenza (gripe), significando, no texto, o desejo extremo de obter bens materiais ou o sentimento de insatisfação provocado pela busca insaciável e repetitiva de coisas.
Texto original em inglês aqui.
sábado, 6 de novembro de 2010
CAPITALISMO EM CRISE
Palestrante: Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Doutor em Economia e professor do Instituto de Economia da Unicamp. Autor dos livros Políticas do trabalho e de garantia de renda – O capitalismo em mudança (São Paulo: Editora São Paulo); E-trabalho (São Paulo: Publisher Brasil, 2002) e Desenvolvimento, trabalho e solidariedade (São Paulo: Cortez, 2002).
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
NARCISO
Os resultados da campanha eleitoral que tentou dividir o Brasil entre "esclarecidos" e "massa", entre "votos da razão" e "voto da emoção" continuam produzindo os seus efeitos nefastos.
Depois dos benditos mapas gêmeos, analisados em alguns blogs com tanta razão científica quanto a que a SS dispensava aos estudos de Joseph Mengele sobre a superioridade da raça ariana, eis que surge, como um novo capítulo do Livro das Artes Xenofóbicas Brasileiras, o episódio envolvendo a ex-estagiária de Direito, Mayara Petruso, que chamou nordestinos de vagabundos e sugeriu o assassinato "solidário" como medida de controle migratório.
Após ser processada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Mayara tornou-se o motivo da saída das sombras de uma organização até então pouco conhecida, o movimento São Paulo para os Paulistas. Além de defender Mayara, que teria cometido apenas um "exagero emocional", ela tratou de promover um movimento objetivando simplesmente a purificação do Estado de São Paulo. Outro grupo, o Juventude Paulistana, promete ir além e realizar protestos em locais públicos.
A questão subjacente a todas estas altercações, para além da óbvia condição pré-nazista dos seus integrantes, é o perigo da idéia de purificação aplicada à vida pública. Basta compreender que foi o argumento da purificação o segredo do sucesso de todas as formas de fascismo conhecidas: a purificação da Alemanha, por Hitler; da Itália, por Mussolini; de Portugal, por Salazar; do Brasil, pelos militares apoiados pelos EUA via Operação Condor etc.
A persistência desse raciocínio ao longo da história só não é mais surpreendente que a sua série de equívocos argumentativos. As organizações que propõem o exclusivismo paulista certamente não ignoram a enorme contribuição da mão de obra nordestina para a constituição mesma do Estado de São Paulo e de todo o País, assim como a imensa quantidade de nordestinos que vivem há gerações naquela região. No entanto, necessitam crer que a pujança econômica daquela região ocorreu sozinha, por milagre, como que por obra de algum deus ex machina.
Pois é esta visão glorificada de si mesmo, pejada de uma incrível superficialidade e egolatria, o pressuposto de todos os projetos fascistas. Todos, indistintamente, bebem na mesma fonte: a sua própria incapacidade de visão crítica, estrutural, sobre a realidade dada: a transformação da aparência em realidade e a defesa desta em algum tipo de salvaguarda da civilização.
Pra mim, esta superficialização da ética é o resultado direto de uma forçada simplificação dos complexos processos que regem a vida social. Não por acaso, o conservadorismo, em suas diversas manifestações e individuais, é que leva esta bandeira. Não por acaso, ainda, todos os candidatos a fascistas são também conservadores.
Isto ocorre porque, tal qual no fascismo, xenófobo como no caso desses episódios de SP ou sob outras inspirações, o que vale para a vida social na ótica conservadora é a ação isolada de indivíduos. Suas crenças são puramente individuais, seus valores não têm conexão nem contexto sociais, nem mesmo com a classe que o produz. Ou seja, tal qual os movimentos xenófobos paulistas necessitam abstrair a presença, o trabalho e a influência cultural, histórica e política dos nordestinos, inclusive de forma acumulada ao longo de algumas centenas de anos, para o conservador ou fascista o que vale é o indivíduo como agente transformador do mundo.
Marx já escrevia que, sob efeito do modo de produção industrial a sociedade tende a transformar-se numa "multidão privada".
Mas o processo de isolamento do indivíduo como o agente formulador ou empreendedor da realidade tende a muito mais. Se o indivíduo age no mundo livremente, sem compreender de forma ampla as suas conexões com a realidade, e as várias conexões da realidade consigo mesma (realidades locais, nacionais e mundiais, por exemplo), o resultado pode ser e tem sido invariavalmente catastrófico.
Só isso já é suficiente para evidenciar que o indivíduo não é uma mônada cuja vontade deve ser livre para agir visando seus próprios interesses. Nós, humanos, somos seres éticos, mas os valores da nossa época - do individualismo, do empreendedorismo para o mercado, da ação positiva e transformadora, da dominação sobre a natureza - tendem a transformar, cada vez mais, questões éticas em questões meramente morais (individuais).
Eis aí o verdadeiro perigo.
Se questões como sobrevivência, direitos, necessidades etc são conquistadas individualmente, segue-se então que não há mais qualquer imperativo ético para a política. Logo, os indivíduos é que são responsáveis pela sua própria miséria, são responsáveis pela violência que eles mesmos sofrem - já que não tiveram competência de produzir algo que os afastasse de tais coisas.
Evidentemente, este é o retrato de uma sociedade fratricida.
Fratricida e hipócrita: essa tendência à implosão do tecido social não se reconhece como tal. Acha-se, a exemplo dos jovens paulistas que querem SP só para paulistas, que são "valores da civilização", que devem ser defendidos porque "deram certo". A exemplo dos senhores feudais durante o Feudalismo, ou da cúria católica durante a Santa Inquisição, avaliam a realidade com as lentes dos seus próprios interesses ou pretensões. Por isso defendem que tudo deve ficar como está porque tem dado certo "apesar de alguns exageros".
Moral da história: o conservadorismo é a representação mais clara e triste de Narciso.
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