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A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DA SOCIOBIOLOGIA

Diante da estranha proliferação de crenças potencialmente nazistas, que pressupõem o indivíduo como um animal em que até a organização social é determinada geneticamente, dei-me ao trabalho de traduzir o texto abaixo.

É o editorial de um dos mais prestigiados jornais de ciência dos Estados Unidos, dando conta do que sociólogos e demais cientistas sociais já descobriram há tempos: humano é um complexo de múltiplas interações, não o resultado de determinações rigidamente fechadas que servem de forma precisa a interesses políticos.

No nazismo, por exemplo, a crença de que o indivíduo era moldado geneticamente serviu ao triste espetáculo que todos conhecem. Será que vão ressuscitar também os estudos de Joseph Mengele e Cesare Lombroso sobre as diferenças das "raças"? O que pretendem com isso?


Tradução livre do Too Much Weekly

Conservadores em geral tendem a esperar que a investigação do genoma humano ajude a provar que a natureza, não ordens sociais desiguais, determina quem acaba por se tornar doente e pobre. Mas os nossos genes têm-se recusado a cooperar.

Oliver James, psicólogo clínico notável pelas suas observações sobre como a desigualdade afeta nossos cérebros, divulgou algumas percepções fascinantes baseadas em novas investigações sobre até que ponto a desigualdade de fato reflete o que ocorre em nossos genes.

James escreveu muito ao longo dos últimos anos sobre o que denomina "ansiedade pela riqueza" ("affluenza")*, o "vírus" induzido pela desigualdade e que nos conduz a uma busca sempre maior por dinheiro, posses e fama, não importando o quanto já se possui.

A affluenza, destaca James, varia amplamente na sociedade. Quanto mais desigual for a distribuição de renda e riqueza numa sociedade, mais affluenza e mais elevada a incidência de doenças mentais que ela engendra.

Os apologistas de ordens sociais desiguais sempre contestaram qualquer ligação entre doenças mentais e os quadros econômico e social. Que pessoas de baixa renda sofram o dobro dos casos de depressão registrados entre as de renda maior significa apenas, segundo esses estudiosos, que aquelas vieram ao mundo com mais "deficiências pessoais" - inatas.

"A direita política acredita que os genes explicam amplamente porque os pobres são pobres, assim como terem uma probabilidade dupla de serem mentalmente doentes", observa James. "Para elas os pobres são uma espécie de lama genética que chafurda na base do charco genético".

A prova cabal deste chafurdamento, exultava a direita há uma década, viria quando "avanços rápidos na genética e na neurociência" - o Projeto Genoma humano e toda a investigação em torno dele - revelassem a verdadeira "história da natureza humana".

A investigação do genoma humano, como opinou há 10 anos o cientista político Charles Murray perante a organização de extrema-direita American Enterprise Institute, "está em vias de contradizer e abalar o território de certas posições políticas".

"Prevejo que os lemas da direita geralmente se demonstrarão mais próximos da realidade científica que os da esquerda", escreveu Murray, "ao mesmo tempo em que que muitas das reivindicações dos partidos de esquerda se revelarão incompatíveis com o modo como os seres humanos são programados (wired)".

Mais tarde, com maiores informações sobre o mapeamento genético do Homo sapiens, Murray voltou à baila: "Verificou-se que a população abaixo da linha de pobreza nos Estados Unidos tem uma constituição (makeup) genética relevante e significativamente diferente da constituição da população acima da linha de pobreza".

A despeito dessa exultância, Oliver James, numa nova análise, afirma que a finalização do mapeamento evidencia que a realidade científica não dá subsídios para tal conclusão. Pelo contrário: a extensa investigação do genoma desde o ano 2000 não revelou qualquer "constituição genética" que possa predispor algumas pessoas para o "êxito" e a riqueza e outras para a doença e a pobreza.

"Agora sabemos", observa James, "que os genes desempenham um pequeno papel na probabilidade de um irmão, uma classe social ou um grupo étnico desenvolver problemas de saúde mental em comparação, respectivamente, com um indivíduo, uma classe ou um grupo étnico saudáveis".

O Journal of Child Psychology and Psychiatry apresentou exatamente a mesma conclusão em um editorial do princípio de 2010. A ciência séria, declarava o editorial, agora concentra-se mais do que nunca "sobre o poder do meio social" e "todos, exceto os deterministas genéticos mais teimosos, terão que rever seus pontos de vista".

"Os fatores biológicos que atuam sobre o Homo sapiens não existem numa espécie de vácuo, hermeticamente selados em relação a fatores sociais e ambientais", acrescentou na semana passada o bioético Daniel Godlberg, da Carolina do Norte, num comentário sobre a nova análise de Oliver James. "Assim, mesmo a tentativa de separar as dimensões biológica e social não fazem o menor sentido".

Assim, o que faremos com o nosso novo entendimento da genética? Como podemos construir sobre o que agora sabemos a fim de ajudar a moldar sociedades mais saudáveis? James sugere uma sequência de três passos.

Primeiro, aconselha o psicólogo, "criar uma sociedade na qual o máximo de oportunidade para uma vida mentalmente saudável e realizada seja mais importante do que enriquecer uma minúscula minoria". Segundo, "colocar o atendimento das necessidades das crianças, especialmente as menores, à frente de todas as outras prioridades".

E em terceiro lugar, cultivar (nurture) as condições sócio-econômicas que maximizam a saúde mental. James explica: "Isso significa criar maior igualdade econômica, condições de trabalho muito mais seguras, maior flexibilidade de emprego para pais de crianças pequenas e uma jornada de trabalho de 35 horas".

Mas não temos, reconhece James, "a mínima possibilidade dessas coisas ocorrerem até que os políticos de todos os partidos entendam o que a ciência está a nos dizer".

Os cientistas podem precisar falar mais alto. E todos nós precisamos ouvir mais atentamente.


* Affluenza: Fusão entre as palavras affluence (riqueza) e influenza (gripe), significando, no texto, o desejo extremo de obter bens materiais ou o sentimento de insatisfação provocado pela busca insaciável e repetitiva de coisas.

Texto original em inglês aqui.

Comentários

Thiago Machado disse…
Bom trabalho de tradução! Obrigado.

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