Leitora Ana Claudia faz os seguintes questionamentos:
... "o PT é um partido de esquerda. Você acha que o que está ocorrendo no seu estado é um processo socialista ou não? Segunda pergunta: você não acha que colocar a culpa do fracasso do socialismo em inimigos externos é clichê demais? O mito do "inimigo externo" é um clássico das relações internacionais e é usado até hoje pelos EUA, por exemplo."
Ana, "esquerda" é uma definição muito ampla. Ela cobre anarquistas, ecologistas, socialdemocratas (forçando bastante a barra), democratas cristãos e por aí vai. Ou seja: não é por ser de esquerda que um partido - ou mesmo alguém - é socialista.
Mas vamos lá: minha opinião pessoal é que o PT é tão de esquerda quanto o Democratic Party norte-americano ou o Labour Party britânico. Não estou desmerecendo ambos, nem o PT. Um partido pode, e deve, assimilar o horizonte histórico da sua época quando a crise entre capital e trabalho permitir que se avance institucionalmente para ampliar os direitos dos trabalhadores.
Mas é evidente que isso não está isento de problemas ou contradições. Veja o caso do Labour Party, que apoiou a invasão norte-americana ao Iraque. Ou dos democratas que mantiveram a política dúbia dos EUA em relação a Cuba, Coréia do Norte, China e Venezuela. A experiência do PT no Acre mudou a forma de governar, equilibrou as contas públicas, ampliou o diálogo com o movimento sindical etc, mas também assimilou todo o aparato retrógrado, coronelista, provinciano do modo de pensar das classes dominantes. Tudo embalado na rubrica "desenvolvimentismo".
Um partido de esquerda pode cometer erros sistemáticos tanto quanto partidos de direita. Basta que as forças que o compõem sejam suficientemente compelidas pelos interesses dominantes já existentes na sociedade. Ou seja, basta que ele se torne aquilo que não é. Que substancialmente transforme-se, por qualquer acordo ou necessidade conjuntural, em um mecanismo de poder.
Na questão particular do Acre há uma contradição interessante. Tentarei explicá-la. O povo acreano ainda acredita que o desenvolvimento econômico vai libertá-lo de todos os males, miséria e violência disseminadas nas regiões mais desenvolvidas do mundo e trazidas para cá durante o breve desenvolvimento que tivemos. É um discurso claramente oriundo de uma região que enfrenta problemas sérios de isolamento, pobreza, doenças e precisa acreditar que o espírito empreendedor vai fazê-la "dar certo" algum dia. Vai fazê-la "ficar rica como São Paulo".
Não me entenda mal, não sou contra o desenvolvimento. Sou contra panacéias. A ordem social que atualmente induz o desenvolvimento é baseada na desigualdade para permitir a acumulação, por isso produz simultaneamente miséria e riqueza. Calcular a proporção entre ambas é fácil: basta viajar às mais desenvolvidas capitais brasileiras (européias e norte-americanas também valem) e conhecer seus bairros.
Na tentativa de resolver esta contradição o PT lançou mão de um discurso ecologista, um desenvolvimentismo ecologicamente correto. Mas esse paradigma, por ter dispensado a categoria "trabalho" em prol da categoria "meio ambiente" para alinhar-se com os grandes órgãos financiadores do capitalismo contemporâneo, começou a fazer água por todos os lados, resultando no que vimos claramente nas últimas eleições.
O resultado daquela primeira contradição com o discurso triunfalista, paternalista e ufanista do desenvolvimento sustentável pariu uma sociedade ainda mais superficial, cujos trejeitos e cacoetes desajeitadamente burgueses podem ser visualizados desde as igrejas evangélicas que ela frequenta até as mais altas patentes da política institucional.
Ao substituir a categoria "trabalho" pela categoria "meio ambiente" o PT alimentou a nossa burguesia caipira. Seus brilhantes intelectuais substituiram as lutas de classes, fundadas na contradição entre capital e trabalho, pela cooperação entre classes, na tradição de um heroísmo provinciano de viés ufanista.
As consequencias desse erro, e como ele vem sendo apropriado por multinacionais da indústria de cosméticos e de artefatos de madeira, é um outro debate que vem sendo feito no Centro de Ciências Sociais da UFAC. Mas a questão central, no contexto da sua pergunta, é que os ganhos desse processo para os trabalhadores acreanos são mínimos, para não dizer inexistentes.
Graças a esse detalhe não há como chamar o processo acreano de "socialismo", nem com o mais elaborado malabarismo intelectual. O grosso dos trabalhadores acreanos ainda está no mercado informal, as negociações sindicais beneficiam uma classe média que sempre teve algum conforto, não há greves nem movimentos de protesto contra a iniciativa privada, a política institucional ignora solenemente as lutas de classes e os donos do capital estão muito mais ricos do que estavam há 12 anos, quando Jorge Viana assumiu o governo.
O que mudou nesse entretempo para aqueles que produzem a riqueza material da sociedade? Conseguiram ou não aumentar o seu acesso, seus direitos elementares à riqueza que eles mesmos produzem? Pra mim, não. Se há algo claro na história acreana recente é que o princípio acumulacionista do capitalismo continua produzindo tanto ou mais estratificações sociais (e miséria, violência, enriquecimento etc) do que há uma década.
Evidentemente essa questão é bem mais complicada que a meia dúzia de palavras acima. Trata-se de um processo histórico, e pior, em andamento. Há forças e grupos em disputa que não foram mencionados, por razões de espaço, e também porque tentei frisar ao máximo a complexidade que se pode atingir quando a expressão "socialismo" entra no debate. Porque, assim fazendo, respondo à segunda pergunta.
É óbvio que restringir o "fim do socialismo" a causas externas (além do equívoco de se considerar que o socialismo teve "um fim", como se a história das sociedades seguisse de fato alguma linearidade) é de um reducionismo muito parecido com aquele identifica nazismo e comunismo, fascismo e socialismo. Nenhuma sociedade se depara exclusivamente com questões externas com as quais interage, pesadamente, dificultosamente. Entrementes, algumas concessões devem ser feitas ao difícil século XX, quando pela primeira vez na história a Humanidade esteve a um botão da auto-extinção precisamente pela disputa de paradigmas rivais em Economia Política.
Socialismo não está isento de erros. No entanto, só há uma forma de medir o seu poder de transformação: o protagonismo da classe dos trabalhadores na condução da vida social. Quanto mais distante a classe proletária estiver dos partidos, associações, sovietes ou demais instituições pelas quais se realiza o esforço socialista, maior será o potencial para desvios, burocratização e, finalmente, implosão. A classe trabalhadora, por sentir o peso do mundo do capital sobre as suas costas, é que realmente conhece a sua própria necessidade de libertação.
As idiossincrasias históricas que travam ou mesmo inviabilizam esse protagonismo, no entanto, estão ligadas às condições particulares em que se realiza o esforço socialista.
Há alguns complicadores. Em todo o mundo, pais e mães ousaram dar um grito de liberdade perante o mundo do capital tiveram que haver-se tenazmente com as Forças Armadas do seu próprio país. Da Comuna de Paris, massacrada pelos exércitos do invasor alemão, ao sequestro do presidente Hugo Chávez num conluio entre grandes empresários e oficiais de alta patente, todas as revoluções tiveram o poder de mobilizar as classes dominantes para despertar o único fenômeno capaz de silenciar de uma vez por todas as vozes dos miseráveis que tentam libertar-se do jugo capitalista: a morte.
Mas que morte é maior que o desejo de liberdade?
Um comentário:
Josafá, querido muito obrigada pelas explicacoes. Acho esse assunto muito pertinente, mas vc ajudou a tirar todas as duvidas e mais algumas, kkkkkk. Beijos!
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