Na política a direita não se contrapõe à esquerda, como pensa o senso comum. O isolamento do indivíduo como o único determinante da sua própria natureza é um argumento ideológico, utilizado de duas formas: na política, como muleta para governos que promovem a perda dos direitos básicos dos trabalhadores via desregulamentação, e na economia, como instrumento teórico para camuflar a exploração pelo enriquecimento via acumulação de trabalho alheio.
Nesta entrevista ao jornal francês L'Humanité, o sociólogo Domenico Losurdo explica como essa opção política se expandiu falsificando o argumento da "liberdade do indivíduo".
A tradução em português de Portugal é do site Resistir.info.
A relação com o liberalismo é ou deveria ser efectivamente a clivagem estruturante da esquerda francesa e europeia?
Domenico Losurdo - Em 1948, a Declaração dos Direitos do Homem estabelecida pela Organização das Nações Unidas reconhecia direitos económicos e sociais (direito à educação, direito à livre escolha do seu trabalho e à protecção contra o desemprego, etc...)
Isto a que assistimos actualmente, nomeadamente na Europa, é precisamente o desmantelamento das realizações concretas correspondentes a estes direitos (Segurança Social, sistema de aposentadoria, etc...)
Este desmantelamento é acompanhado pela própria negação, no plano teórico, do valor destes direitos. É este duplo fenómeno que se pode caracterizar como contra-revolução neoliberal. Para responder com eficácia, parece-me necessário colocarmo-nos numa perspectiva histórica.
Esta permite compreender que os direitos do homem jamais se desenvolveram em virtude de uma dinâmica interna do liberalismo, que teria sido impedido, por razões conjunturais, de instalar na esfera económica uma lógica de direita que teria em contrapartida conseguido impor na esfera política contra os diversos conservadorismos, nomeadamente religiosos.
Esta visão linear da história é absolutamente falsa. Na verdade, o liberalismo, para além da diversidade das suas sensibilidades, tem tido tendência a recuperar para seu crédito direitos que as burguesias simplesmente tiveram de reconhecer na guerra de classe, no século passado, no contexto da guerra fria.
Nos anos 70, Friedrich A. Hayek, então inspirador da política económica da administração Reagan, falava dos direitos económicos e sociais como uma invenção ruinosa da revolução bolchevique russa. Ele não raciocinava em termos de compatibilidade ou não destes direitos com os meios financeiros do Estado. Ele, ao contrário, atacava os direitos em causa nas suas raízes, sobre a sua própria legitimidade. Hoje, vê-se triunfar a posição de Hayek, mas num contexto onde não há mais o desafio do mundo socialista. Isto não significa que seja preciso rever em baixa as ambições sociais. Ao contrário.
O liberalismo defende a liberdade?
DL - Os pais fundadores desta corrente de ideias justificavam a escravidão. O filósofo inglês Locke estava mesmo implicado pessoalmente como accionista da sociedade que geria o tráfico de escravos.
Se tomarmos os dois países mais representativos da tradição liberal, a saber, a Inglaterra e os Estados Unidos, vemos que estes são igualmente os países mais implicados no plano histórico na tragédia da escravidão dos negros. Os Estados Unidos não aboliram a escravidão dos negros senão em 1865. E mesmo depois, os negros ali não desfrutaram da liberdade. Foi só em meados do século XX que eles adquiriram direitos políticos.
A ultrapassagem da discriminação racial, da discriminação contra as mulheres, ou da discriminação censitária não são portanto os frutos do liberalismo, são ao contrário as aquisições, ainda que precárias e incompletas, das grandes lutas populares do movimento socialista e comunista.
O liberalismo não pode reivindicar nenhuma contribuição própria para a democracia política?
DL - Pode-se reconhecer ao liberalismo, nomeadamente àquele de Montesquieu, o mérito de ter colocado a questão da limitação e da separação dos poderes. O marxismo histórico frequentemente escamoteou o problema, preferindo evocar directamente a desaparecimento total do Estado.
O encerramento nesta perspectiva utópica veio agravar as dificuldades para a construção de um Estado socialista democrático. Mas não é a partir de um liberalismo qualquer que se pode verdadeiramente criticar o marxismo sobre este ponto. Pois o liberalismo é na realidade muito ambíguo.
Por um lado, ele reivindica efectivamente a limitação dos poderes; mas por outro celebra o poder absoluto sobre os escravos e os povos coloniais. John Stuart Mill, considerado como um dos liberais mais progressistas, considerava no seu tempo que certas "raças menores" – é a expressão que ele emprega – são obrigadas a uma "obediência absoluta" aos mestres do Ocidente. Não é pois a proclamar-se liberal que a esquerda em crise pode recomprar uma consciência anti-totalitária, se é que ela a procura. Ao contrário, isso não faz senão aumentar a confusão.
Um verdadeiro debate deve ao contrário iniciar-se sobre a questão do Estado e da democracia. Considerando o peso crescente do dinheiro e da riqueza nas eleições nos Estados Unidos, Arthur Schlesinger Jr., um ilustre historiador americano, considerava que se assistia de facto à reintrodução da discriminação censitária.
Como evitar esta regressão e a perda dos direitos políticos já adquiridos? A questão decisiva é saber qual conteúdo se pretende dar à democracia: é apenas a consagração das relações arbitrárias na sociedade e nomeadamente na empresa, mas igualmente entre as nações? Ou antes trata-se do processo de reconhecimento político dos direitos conquistados e do seu desenvolvimento em e por lutas sociais?
Os tenores da esquerda que se reclamam do liberalismo de facto insistem frequentemente no que parece sobretudo um liberalismo dos costumes, que se pode com efeito defender em nome do progresso humano...
DL - A vontade de defender as liberdades individuais é evidentemente legítima. O que apresenta problema é o modo de encarar a questão. Tem-se a impressão de que a esquerda teria de escavar alhures e não no seu próprio corpus ideológico para pensar os direitos do indivíduo, sua emancipação.
Penso ao contrário que se trata de desenvolver ainda mais este corpus, aprofundá-lo. Quando em geral se fala de Marx e do marxismo, considera-se, mais ou menos explicitamente, que eles teriam insistido na igualdade, não na liberdade. Trata-se de um preconceito. O Manifesto do Partido Comunista, de que festejamos este ano o 160º aniversário, fala da luta para suprimir "o despotismo na fábrica". A luta das classes encarada por Marx não é suposta limitar-se a objectivos materiais. É uma luta pela liberdade.
Dissociar as questões societais das questões sociais, o plano político e cultural do plano económico, equivale mesmo a negar o pensamento burguês mais avançado. Antes de Marx, Hegel explicava num texto célebre de "A filosofia do direito" que um homem que se arrisca a morrer de fome encontra-se numa condição de ausência absoluta de direito, ou seja, na condição de um escravo. Quando a desigualdade material atinge um certo grau, ela se torna então uma condição de ausência de liberdade. Retorna-se à questão democrática.
Mas quando a esquerda coloca a questão democrática em termos de democracia social, ela muitas vezes é acusada de proteccionismo. Daí a acusá-la de nacionalismo não há senão um passo, por vezes dado alegremente no debate sobre a Europa...
DL - Uma coisa é a afirmação, a defesa da identidade ou da dignidade nacional, uma outra é o chauvinismo. Tem-se tendência a fazer confusão entre as duas. A distinção parece-me entretanto muito simples: de um lado temos uma atitude universalizável; do outro, uma posição exclusivista.
A afirmação da dignidade da nação francesa, americana ou italiana é perfeitamente compatível com a afirmação da dignidade de qualquer outra nação, de todos os povos. Em contrapartida, quando o presidente Bush afirma que os Estados Unidos são a "nação eleita por Deus" para governar o mundo, esta atitude não é universalizável. Basta que um outro país tenha a mesma pretensão para que haja afrontamento.
Hoje, o chauvinismo por excelência é o dos Estados Unidos, país que posa como herói do liberalismo. E a União Europeia, servil em relação aos Estados Unidos, reproduz a sua atitude de "nação eleita por Deus" nas suas relações com os países do Terceiro Mundo. Lénine havia explicado muito bem a ligação entre o imperialismo, o nacionalismo e o racismo.
Uma das suas definições do imperialismo é a seguinte: "o imperialismo é a pretensão de um pequeno grupo de nações que se dizem eleitas" de monopolizar para si só o direito de constituir um Estado nacional e soberano, o que e equivale a dizer de excluir deste direito os povos considerados como inferiores.
A luta pela igualdade das nações é sempre actual. E é uma luta progressista, em nome das liberdades e da democracia, que se conduz contra o sistema capitalista e sua ideologia liberal.
Nota minha: A entrevista foi publicada originalmente em 30 de junho de 2008.
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