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URBANIDADE NA AMAZÔNIA

Poucas coisas são tão desajeitadas quanto o viver urbano na Amazônia.

Euclides da Cunha, ao visitar Manaus no começo do século XX, resumiu muitíssimo bem esse paradoxo. Disse ele, em 1905:

- Cidade comercial e insuportável. O crescimento abrupto levantou-se de chofre fazendo que trouxesse, aqui, ali, salteadamente entre as roupagens civilizadoras, os restos das tangas esfiapadas dos tapuios. Cidade meio caipira, meio européia, onde o tejupar se achata ao lado de palácios e o cosmopolitismo exagerado põe ao lado do ianque espigado... o seringueiro achamboado, a impressão que ela nos incute é a de uma maloca transformada em Gand.

Com ligeiras alterações, a descrição cabe para a Rio Branco atual. Ao longo dos anos, a cidade tem passado por vários projetos de modernização que visam adequá-la, sempre em nome do progresso, pela melhoria das condições de vida da população, à condição de cópia de cidades metropolitanas. Com o Plano de Desenvolvimento Sustentável (PDS) do Partido dos Trabalhadores (PT) deu-se um passo além: em vez de copiar, busca-se agora ser um exemplo para as demais.

Há algum tempo li numa dessas revistas de viagem que "se Nova Iorque quer ser Londres, São Paulo quer ser Nova Iorque". Emendo: "Se Manaus quer ser São Paulo, Rio Branco também quer ser São Paulo".

O resultado desse interminável Ctrl C + Ctrl V é trágico.

Nos últimos 300 anos, onde quer que tenham se instalado (florestas tropicais, savanas africanas, desertos árabes etc), as cidades impuseram uma lógica disciplinar que dizimou ou submeteu todas as formas de associação humana, como povoados, vilas, tribos, clãs etc. Ainda hoje uma das formas pelas quais esta dizimação se realiza é associar estas formas anteriores de sociabilidade com atraso, miséria, subdesenvolvimento.

Em contrapartida, a lógica citadina é associada com progresso, prosperidade, desenvolvimento. A própria palavra urbano passou a significar também polido, educado, civilizado.

Vergado sob o extraordinário peso dessa narrativa, o homem amazônico não se reconhece como homem. É um não-ser, alguém que ainda precisa começar a existir, pois não é moderno. A modernidade é que lhe dá uma identidade. É pela modernidade que vem o emprego, o dinheiro, o prestígio, a possibilidade de sobreviver.

Isso explica tantos conflitos por micropoder, que se vê praticamente a todo o instante em todos os lugares (e suas reações trágicas, geralmente violentas). A necessidade constante e neurótica de afirmação na modernidade pressupõe estados de espírito simultaneamente alterados e hiperautoindulgentes.

O camponês acreano costuma acenar ao passar de barco pelas colocações vizinhas. Alguns também gritam: "Oba!". É uma saudação calculada na medida exata da distância com o interlocutor e acima do ruído da embarcação. Seu objetivo é informar a sua própria passagem e, ao mesmo tempo, verificar se está tudo bem com seus iguais.

Nas periferias de Rio Branco muitas famílias criam galinhas, patos e outros bichos, que vendem ou trocam por itens estratégicos da cesta básica. Cada quintal, chamado de terreiro, é uma miniatura do modo de vida na colônia em plena cidade.

Onde há homem, há cultura, e portanto, há história. Não é possível, nesta dimensão do universo, a existência de homens sem intervenção histórica. A questão é que algumas sociedades se apropriam de forma inesperada e surpreendente da história. Uma vez que o seu objetivo é a uniformização, a disciplina, é esse legado que os projetos de modernização buscam destruir.

É preciso repensar as formas de viver na Amazônia. Não se trata de ruralizar as cidades, de uma volta às aldeias ou seringais. Trata-se da cidade ser aldeias, seringais e colônias. Um projeto de sociedade que não provoque, na natureza, os espasmos de enchentes, deslizamentos e secas. Que não deixe os homens civilizados tão parecidos com as bestas mais selvagens.

Não precisamos ser modernos. Nem urbanos.

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