Por Israel Souza, via e-mail
Título original: Hegemonia em declínio e subversivismo no Governo da FPA
Do mesmo autor: Eleições 2010: um olhar a partir "dos de baixo"
As urnas nos deram “um recadinho”, disse Jorge Viana recentemente, num comentário sobre o resultado das últimas eleições. A nosso ver, porém, as urnas mostraram algo mais sério: o declínio da hegemonia do Governo da Frente Popular do Acre (FPA).
Como se sabe, a FPA chega ao poder estatal quando, por força do acirramento dos conflitos sociais, os representantes políticos das oligarquias já não podiam assegurar a manutenção de seus interesses. Os “conturbados” governos de Edmundo Pinto (1991-1992), Romildo Magalhães (1992-1994) e Orleir Camely (1995-1998) davam claros sinais disso.
À testa das forças progressistas que foram gestadas durante os “anos de chumbo”, eleição após eleição, o PT foi crescendo e se consolidando como um grande partido. Bem articulado no âmbito da “sociedade civil” (grêmios estudantis, associação de moradores, sindicatos, ONGs, CEBs etc.), chegou, enfim, ao governo estadual liderando a FPA. Dessa forma, ele pôde aliar a influência que exercia sobre a “sociedade civil” com o poder estatal recém-conquistado. Contudo, contrariando a esperança daqueles anos, ele opta por fazer o que as antigas forças políticas, sozinhas, não podiam fazer. Garantiu a manutenção dos interesses das oligarquias - e de capitais estrangeiros - em condições favoráveis.
Fundamental foi a influência sobre a “sociedade civil”. Dela, o governo estimulou e cooptou vários setores. Os recalcitrantes foram isolados ou submetidos a um contínuo e ostensivo patrulhamento. Durante alguns anos, as forças governistas foram relativamente bem-sucedidas nesta empresa. É bem verdade que nunca suplantaram as resistências, nem poderiam, mas também nunca passaram susto ou aperto. Nesse sentido, o atual quadro político traz algumas novidades.
Em dias recentes, vimos o paralelismo de protestos e reivindicações na saúde, na segurança e na educação, áreas vitais das políticas de governo e que envolvem amplos segmentos do funcionalismo público. Tais mobilizações se somam a outras, como a dos movimentos do interior do estado. Estes envolvem a luta dos índios (não-apadrinhados do governo) pela demarcação de suas terras e por saúde; a luta de seringueiros e campesinos pelo apoio à produção e pela suspensão dos famigerados projetos de manejo.
Por certo, essas manifestações não são de hoje. Todavia, elas estão se tornando cada vez mais comuns e intensas. Ousamos afirmar que estamos em face de ensaios de outra “cultura política” em nosso estado. Mobilizações e protestos não apenas sem o PT, mas contra o PT. Ou, mais precisamente, contra os interesses e projetos que hoje ele encarna no governo.
É prematuro dizer se isso vai vingar e em que direção vai seguir. Afinal, trata-se de um rico e diverso conjunto de movimentos cuja “radicalidade” ou “moderação” varia caso a caso. Movimentos fragmentados, pouco articulados e sem coloração ideológica precisa. Daí a opção por chamá-lo “subversivismo”, expressão colhida em Gramsci e usada a nosso modo. Importa destacar, no entanto, que ele emerge na cena histórica com certa força, expressando e se alimentando do declínio da hegemonia da FPA. Coisas de antropofagia política. A força de uns se alimenta da fraqueza de outros.
O surgimento de canais de comunicação alternativos (sobretudo, blogs) faz parte e dá sustentação e visibilidade a esse subversivismo. Embora simples, são meios com significativa influência na sociedade. Chegam mesmo a pautar os meios de comunicação convencionais, apesar do autoritarismo governamental e do servilismo da imprensa.
A força de que hoje gozam esses meios é outra expressão daquele declínio. As pessoas que deles se servem são, em geral, formadoras de opinião. Procuram neles as notícias que a imprensa convencional não divulga. Buscam espaços para emitir opiniões e fazer denúncias.
“Uma mentira dita muitas vezes se transforma em verdade”? Sim. Mas somente onde e quando a realidade não grita, a plenos pulmões, coisa em contrário. Por isso o descrédito dos meios de comunicação convencionais no estado e, conseguintemente, a justificação cada vez mais limitada que podem dar ao governo. A quem ainda convencem as pesquisas que o governo divulga de si mesmo? Bem sabem da realidade aqueles que usam transporte coletivo, que recorrem à saúde pública, que precisam de segurança etc.
Isso não seria supervalorizar o cenário atual? Não. O que estamos fazendo é apontar para o que subjaz a ele. Um exemplo para ilustrar.
Dê o governo um aumento salarial aos militares. Não precisa ser os 117% de reposição que eles reclamam. Que seja algo modesto, desde que eles o entendam como uma vitória substantiva. Feito isso, e os militares voltam às ruas, para vigiar os movimentos com que se aliançaram e para garantir a manutenção da ordem.
O mesmo vale para os demais segmentos do funcionalismo público. Ganham aumento, e já voltam à rotina e ao corporativismo de sempre. A atuação do sindicato da educação é exemplar a esse respeito. Faz greves, como de direito, e prejudica o ano letivo. Ganha algum e volta às aulas. Mas é incapaz de apoiar efetivamente a luta dos alunos pela diminuição do preço da passagem de ônibus, preferindo agir de acordo com os ditames do governo.
Dentre outras coisas, é isso que faz com que os movimentos do interior tenham uma luta potencialmente mais emancipatória que a destes grupos. Todavia, é mister ressaltar que, em luta, tais grupos desnudam e afrontam o despotismo estatal. Em suas manifestações, da dos militares à dos estudantes, é possível ver, ao lado das reivindicações pontuais e específicas, críticas mais gerais. Estas dizem respeito à corrupção, ao autoritarismo, à privatização e à devastação da floresta, para citar apenas algumas.
A visão que manifestam sobre essas coisas não cessará com a paralisação dos protestos. E, se a estes se seguir um silêncio, isso não se traduzirá em apoio ao governo. No caso dos militares, por mais que o governo assuma uma postura humilde e generosa, a oposição continuará por força da liderança do deputado estadual que representa a categoria, ainda que em outra escala e sob outras formas. Permanecendo as coisas como estão, não há motivos para duvidar que os militares sigam sua liderança no apoio às forças oposicionistas.
A difícil relação com a Assembleia e com o Judiciário pode significar mais problemas ainda. Grosso modo, na Assembleia, o governo conta hoje com uma bancada que não inspira confiança, bancada ruim de tribuna. O presidente do Tribunal de Justiça (desembargador Adair Longuini) disse recentemente que o Executivo não contaria com o Judiciário “ajoelhado nas escadarias do Palácio do Governo”. Nada de mais, é verdade. Mas também nada de menos.
Mais que qualquer um de seus companheiros e antecessores, Tião Viana está enredado em dificuldades. Tanto em relação às estruturas estatais quanto em relação à “sociedade civil”. No intuito de reverter o resultado desfavorável das últimas eleições e garantir uma vitória na capital ano que vem, ele faz um governo do tipo pragmático: o resultado é o que importa. E a coerção é a ferramenta mais à mão nesse momento. Tragicamente para ele, o uso de tal recurso tem por efeito deixar a dominação ainda mais explícita e intolerável, o que pode inflamar ainda mais o subversivismo.
Outro fator pesa negativamente na balança: a incógnita em torno do nome de quem concorrerá à prefeitura na capital ano que vem. Tendo crescido à sombra de três figuras, a FPA não viu surgir nenhuma liderança expressiva em seu seio nos últimos anos. Ademais, o debilitamento delas (das três figuras) nas últimas eleições mostra que já vai longe o tempo em que conseguiam eleger candidatos inexpressivos até para o Senado.
Por tudo isso, sustentamos que o resultado das últimas eleições expressou uma insatisfação difusa na sociedade - presente inclusive entre certos setores dominantes descontentes com a política ambiental do governo - e que hoje alimenta o subversivismo aqui apontado. Alguns o atribuem à oposição, desconsiderando que a antiga direita não tem espírito para tanto. Em verdade, é o cansaço que cede lugar à indignação combativa.
Destarte, tal subversivismo representa o declínio da legitimidade política da FPA, ainda que um declínio relativo, isto é, reversível. E talvez represente o crepúsculo de um domínio que já conta mais de uma década. Como dito em texto anterior (Eleições 2010: um olhar a partir “dos de baixo”), o perigo é a antiga direita - que tanto ou mais que o subversivismo tem crescido com o apequenamento da legitimidade da FPA - chegar ao poder estatal como salvação para os problemas que, sabemos, não serão resolvidos “por cima”.
A falar a verdade, não cremos que Jorge Viana ache mesmo que o resultado das últimas eleições seja apenas um “recadinho das urnas”. Acreditamos que, como sempre, apenas quis aparecer de moço bom e humilde. Se ele realmente crê nisso, tanto melhor para as forças que lutam por mudanças. A poesia diz o mais.
Aurora
Ferido pelos homens,
O tempo - antes tão sábio e paciente,
Tão impávido a seguir seu rumo e ritmo -
Anda instável e demente.
Ultimamente, escurece em hora qualquer.
O calendário caducou,
Seguido pelos relógios de pulso,
De parede e biológico.
Parece aproximar-se o crepúsculo.
Em tempos assim, aos que, ansiosos,
Aguardamos a aurora, não convém
Apenas encantar-se com o
Balé das chamas.
Ou simplesmente ter o fogo ao pé de si,
De modo a aquecer-se em seu calor fraternal.
Importa deitar lenha à fogueira.
Vigiemos. E venha o que vier.
"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." Theodor W. Adorno
segunda-feira, 30 de maio de 2011
sexta-feira, 27 de maio de 2011
ESFINGE
O texto a seguir é o primeiro capítulo de um dos melhores livros de filosofia que já li, Dialética do concreto, do tcheco Karel Kosik. Obra primorosa, publicada em 1963 e reeditada desde então, parece que foi escrita ontem...
A dialética trata da “coisa em si”.
Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa, com isto não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana.
A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado no mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.
No trato prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas – o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.
Todavia, a “existência real” e as formas fenomênicas da realidade – que se reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada práxis histórica, como conjunto de representações ou categorias do “pensamento comum” (que apenas por “hábito bárbaro” são consideradas conceitos) – são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com seu núcleo interno e essencial e o seu conceito correspondente. Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade.
Por este motivo Marx pôde escrever que aqueles que efetivamente determinam as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n’água, no mundo das formas fenomênicas desligadas da sua conexão interna e absolutamente incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório, nada vêem de misterioso; e seu julgamento não se escandaliza nem um pouco diante da inversão do racional e irracional. A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue. Nesta práxis se forma tanto o determinado ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e com que tem de se avir na vida cotidiana.
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A ele pertencem:
- O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais;
- O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade);
- O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento;
- O mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens.
O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário. A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.
O mundo fenomênico tem a sua estrutura, uma ordem própria, uma legalidade própria que pode ser revelada e descrita. Mas a estrutura deste mundo fenomênico ainda não capta a relação entre o mundo fenomênico e a essência. Se a essência não se manifestasse absolutamente no mundo fenomênico, o mundo da realidade se distinguiria radical e essencialmente do mundo do fenômeno: em tal caso, o mundo da realidade seria para o homem o “outro mundo” (platonismo, cristianismo), e o único mundo ao alcance do homem seria o mundo dos fenômenos. O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto: os fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente.
Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde.Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível. No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. Por conseguinte, a diferença que separa fenômeno e essência equivale à diferença entre irreal e real, ou entre duas ordens diversas de realidade? A essência é mais real do que o fenômeno?
A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso, a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados e, em tal isolamento, sejam considerados com ao única ou “autêntica” realidade.
O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta imediatamente, primeiro e com maior freqüência.
Mas porque a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Porque são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Porque a “coisa em si” se oculta, foge à percepção imediata? De que gênero de ocultação se trata?
Tal ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido com estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O homem faz um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um modo qualquer, presssupõe a existência da verdade, porque possui uma segura consciência da existência da “coisa em si”. Por que, então, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que então, para captá-la ele tem que fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção imediata não se captar “a coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá talvez do fato de que a estrutura da coisa pertence a outra ordem de realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui outra realidade existente por trás dos fenômenos?
Como a essência – ao contrário dos fenômenos – não se manifesta imediatamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem que existir a ciência e a filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.[1]
O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As várias tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a coisa em si, o ser da coisa, não se manifesta direta e imediatamente. Neste sentido, a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente.
O conceito da coisa é a compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.[2]
O conhecimento se realiza como separação entre fenômeno e essência, do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. Neste processo, o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é elemento constitutivo do conhecimento filosófico – com efeito, sem decomposição não há conhecimento – demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação se baseia na decomposição do todo.
O próprio fato de que o pensamento se move naturalmente numa direção oposta à natureza da realidade, que isola e “mata”, e de que neste movimento natural se assenta a tendência à abstração, não constitui uma particularidade imanente do pensamento mas emana de sua função prática. Todo agir é “unilateral”,[3] já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a execução de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.
O impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos, embora para a consciência ingênua esta percepção seja muito menos evidente e muitas vezes mais imatura. O “horizonte” – obscuramente intuído – de uma “realidade indeterminada” como todo constitui o pano de fundo inevitável de cada ação e cada pensamento, embora ele seja inconsciente para a consciência ingênua.
Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis cotidiana cria “o pensamento comum” – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao homem na práxis fetichizada, no tráfico e na manipulação, não é o mundo real, embora tenha a “consistência” e a “validez” do mundo real: é “o mundo da aparência” (Marx). A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas.
A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a “cisão do único”, é o modo pelo qual o pensamento capta a “coisa em si”. A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isto, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem que destruir a aparente independência do mundo dos contatos imediatos de cada dia.
O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real;por trás da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência.[4] O que confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem que efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando seu caráter mediato e apresentando, contra sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado.
A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade.[5]
O pensamento acriticamente reflexivo[6] coloca imediatamente – e portanto sem uma análise dialética – em relação causal as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazendo passar tal forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das idéias. Como os homens tomaram consciência de seu tempo (e, portanto, já o viveram, avaliaram, criticaram e compreenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do “ceticismo pequeno-burguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise “científica” daquelas idéias ao procurar para elas um equivalente econômico, social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas uma dupla mistificação: a subversão do mundo da aparência (das idéias fixadas) tem suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria materialista deve iniciar a análise com a questão: porque os homens tomaram consciência de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos homens nestas categorias? Fazendo esta indagação, o materialista prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das idéias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a idéia.
Entretanto, a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que o mundo possa ser explicado “criticamente”, cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da “práxis” revolucionária. Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade.
O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura. O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos “reais” fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma variante naturalisticamente entendida das idéias platônicas; ao invés, é um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem.
Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.
Portanto, a destruição da pseudoconcreticidade se efetua como: 1) crítica revolucionária da práxis da humanidade, que coincide com o devenir humano do homem, com o processo de “humanização do homem” (A. Kolman), do qual as revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”; 3) realizações da verdade e a criação da realidade humana em um processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação própria, espiritual, como indivíduo social-histórico. Cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem que se formar uma cultura e viver a sua vida.
Não podemos, por conseguinte, considerar a destruição da pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o descobrimento de uma realidade que por trás dele se escondia, pronta e acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem e a redução do homem ao nível da práxis utilitária. A destruição da pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão da realidade, da sua concreticidade. As correntes idealísticas absolutizaram ora o sujeito, tratando do problema de como encarar a realidade a fim de que ela fosse concreta ou bela, ora o objeto, e supuseram que a realidade é tanto mais real quanto mais perfeitamente dela se expulsa o sujeito. Ao contrário delas, na destruição materialista da pseudoconcreticidade, a liberalização do “sujeito” (vale dizer, a visão concreta da realidade, ao invés da “intuição fetichista”) coincide com a liberalização do “objeto” (criação do ambiente humano como fato humano dotado de condições de transparente racionalidade), posto que a realidade social dos homens se cria como união dialética de sujeito e objeto.
A palavra de ordem ad fontes, que ressoa periodicamente como reação contra a pseudoconcreticidade nas suas mais variadas manifestações, assim como a regra metodológica da análise positivista – “libertar-se dos preconceitos” – encontram o seu fundamento e a sua justificação na destruição materialista da pseudoconcreticidade. Todavia, o próprio retorno “às fontes” apresenta dois aspectos completamente distintos. Sob o primeiro aspecto ele se apresenta como uma douta e humanisticamente erudita crítica das fontes, como um exame dos arquivos e das fontes antigas, das quais cumpre deduzir a realidade autêntica. Sob o aspecto mais profundo e mais significativo, que aos olhos da douta erudição se afigura barbárie (como o testemunhas as reações contra Shakespeare e Rousseau) a palavra de ordem ad fontes significa crítica da civilização e da cultura; significa tentativa – romântica ou revolucionária – de descobrir por trás dos produtos e das criações a atividade e operosidade produtiva, de encontrar “a autêntica realidade” do homem concreto por trás da realidade reificada da cultura dominante, de desvendar o autêntico objeto histórico sob as estratificações das convenções fixadas.
NOTAS
[1] “...Se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria a ciência? (Marx a Engels, carta de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e essência coincidissem diretamente.” Marx, O Capital, III, séc.VII, cap. XLVIII, III. (Tr.ital. Roma, Rinascita, 1959, III, a, Pág.228). “Para as formas fenomênicas... a diferença da relação essencial ... vale exatamente aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e para o fundamento oculto por detrás delas. As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência.” Marx, O Capital, I, seç. VI, cap. XVII. (Tr. Ital. I, 2, pág. 259).
[2] Alguns filósofos (por ex. Granger, L’ancienne et la nouvelle économie, “Esprit”, 1956, pág. 5515) atribuem apenas a Hegel o “método da abstração” e “do conceito”. Na realidade, este é o único caminho da filosofia para chegar à estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.
[3] No plano desta “unilateralidade” prática, Marx, Hegel e Goethe se colocam contra a universalidade fictícia dos românticos.
[4] O Capital, de Marx, é construído metodologicamente sobre a distinção entre falsa consciência e compreensão real da coisa, de modo que as categorias principais da compreensão da realidade investigada se apresentam aos pares: fenômeno – essência; mundo da aparência – mundo real; aparência externa dos fenômenos – lei dos fenômenos; existência positiva – núcleo interno, essencial, oculto; movimento visível – movimento real interno; representação – conceito; falsa consciência – consciência real; sistematização doutrinária das representações (“ideologia”) – teoria e ciência.
[5] “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado, as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de Walhens, L’idée phénomenologique d’intentionalité, in Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28. Esta definição de um autor não-marxista constitui um testemunho sintomático da problemática filosófica do século XX, para a qual a destruição da pseudoconcreticidade e das mais variadas formas de alienação se transformou em uma das questões essenciais. Os filósofos se distinguem, entre si, pelo modo como a resolvem, mas a problemática comum já é dada, tanto para o positivismo (a luta de Carnap e Neurath contra a metafísica real ou suposta), como também para a fenomenologia e o existencialismo.É sintomático que o sentido autêntico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do século XX só tenham sido descobertos por um filósofo de orientação marxista, cuja obra constitui a primeira tentativa séria de um confronto entre a fenomenologia e a filosofia materialista. O autor define expressivamente o caráter paradoxal e rico em contrastes da destruição fenomenológica da pseudoconcreticidade: “O mundo da aparência havia abarcado, na linguagem ordinária, todo o sentido da noção de realidade... Desde que as aparências aí se impuseram a título de mundo real, sua eliminação se apresentava como uma colocação entre parênteses deste mundo ... e a realidade autêntica à que se retornava tomava paradoxalmente a forma de irrealidade de uma consciência pura.” Tran-Duc-Thao. Phenomenologique et materialisme dialectique, Paris, 1951, págs. 223-24.
[6] Hegel assim define o pensamento reflexivo: “A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de uma para a outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a unidade que as compenetra.” Hegel, Phil. der Religion, I, pág. 126 (Werke, Vol. XI). Ver também Marx, Grundrisse, pág. 10.
A dialética trata da “coisa em si”.
Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa, com isto não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana.
A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado no mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.
No trato prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas – o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.
Todavia, a “existência real” e as formas fenomênicas da realidade – que se reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada práxis histórica, como conjunto de representações ou categorias do “pensamento comum” (que apenas por “hábito bárbaro” são consideradas conceitos) – são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com seu núcleo interno e essencial e o seu conceito correspondente. Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade.
Por este motivo Marx pôde escrever que aqueles que efetivamente determinam as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n’água, no mundo das formas fenomênicas desligadas da sua conexão interna e absolutamente incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório, nada vêem de misterioso; e seu julgamento não se escandaliza nem um pouco diante da inversão do racional e irracional. A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue. Nesta práxis se forma tanto o determinado ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e com que tem de se avir na vida cotidiana.
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A ele pertencem:
- O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais;
- O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade);
- O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento;
- O mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens.
O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário. A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.
O mundo fenomênico tem a sua estrutura, uma ordem própria, uma legalidade própria que pode ser revelada e descrita. Mas a estrutura deste mundo fenomênico ainda não capta a relação entre o mundo fenomênico e a essência. Se a essência não se manifestasse absolutamente no mundo fenomênico, o mundo da realidade se distinguiria radical e essencialmente do mundo do fenômeno: em tal caso, o mundo da realidade seria para o homem o “outro mundo” (platonismo, cristianismo), e o único mundo ao alcance do homem seria o mundo dos fenômenos. O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto: os fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente.
Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde.Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível. No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. Por conseguinte, a diferença que separa fenômeno e essência equivale à diferença entre irreal e real, ou entre duas ordens diversas de realidade? A essência é mais real do que o fenômeno?
A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso, a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados e, em tal isolamento, sejam considerados com ao única ou “autêntica” realidade.
O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta imediatamente, primeiro e com maior freqüência.
Mas porque a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Porque são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Porque a “coisa em si” se oculta, foge à percepção imediata? De que gênero de ocultação se trata?
Tal ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido com estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O homem faz um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um modo qualquer, presssupõe a existência da verdade, porque possui uma segura consciência da existência da “coisa em si”. Por que, então, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que então, para captá-la ele tem que fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção imediata não se captar “a coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá talvez do fato de que a estrutura da coisa pertence a outra ordem de realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui outra realidade existente por trás dos fenômenos?
Como a essência – ao contrário dos fenômenos – não se manifesta imediatamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem que existir a ciência e a filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.[1]
O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As várias tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a coisa em si, o ser da coisa, não se manifesta direta e imediatamente. Neste sentido, a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente.
O conceito da coisa é a compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.[2]
O conhecimento se realiza como separação entre fenômeno e essência, do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. Neste processo, o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é elemento constitutivo do conhecimento filosófico – com efeito, sem decomposição não há conhecimento – demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação se baseia na decomposição do todo.
O próprio fato de que o pensamento se move naturalmente numa direção oposta à natureza da realidade, que isola e “mata”, e de que neste movimento natural se assenta a tendência à abstração, não constitui uma particularidade imanente do pensamento mas emana de sua função prática. Todo agir é “unilateral”,[3] já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a execução de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.
O impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos, embora para a consciência ingênua esta percepção seja muito menos evidente e muitas vezes mais imatura. O “horizonte” – obscuramente intuído – de uma “realidade indeterminada” como todo constitui o pano de fundo inevitável de cada ação e cada pensamento, embora ele seja inconsciente para a consciência ingênua.
Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis cotidiana cria “o pensamento comum” – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao homem na práxis fetichizada, no tráfico e na manipulação, não é o mundo real, embora tenha a “consistência” e a “validez” do mundo real: é “o mundo da aparência” (Marx). A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas.
A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a “cisão do único”, é o modo pelo qual o pensamento capta a “coisa em si”. A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isto, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem que destruir a aparente independência do mundo dos contatos imediatos de cada dia.
O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real;por trás da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência.[4] O que confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem que efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando seu caráter mediato e apresentando, contra sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado.
A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade.[5]
O pensamento acriticamente reflexivo[6] coloca imediatamente – e portanto sem uma análise dialética – em relação causal as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazendo passar tal forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das idéias. Como os homens tomaram consciência de seu tempo (e, portanto, já o viveram, avaliaram, criticaram e compreenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do “ceticismo pequeno-burguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise “científica” daquelas idéias ao procurar para elas um equivalente econômico, social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas uma dupla mistificação: a subversão do mundo da aparência (das idéias fixadas) tem suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria materialista deve iniciar a análise com a questão: porque os homens tomaram consciência de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos homens nestas categorias? Fazendo esta indagação, o materialista prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das idéias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a idéia.
Entretanto, a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que o mundo possa ser explicado “criticamente”, cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da “práxis” revolucionária. Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade.
O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura. O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos “reais” fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma variante naturalisticamente entendida das idéias platônicas; ao invés, é um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem.
Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.
Portanto, a destruição da pseudoconcreticidade se efetua como: 1) crítica revolucionária da práxis da humanidade, que coincide com o devenir humano do homem, com o processo de “humanização do homem” (A. Kolman), do qual as revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”; 3) realizações da verdade e a criação da realidade humana em um processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação própria, espiritual, como indivíduo social-histórico. Cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem que se formar uma cultura e viver a sua vida.
Não podemos, por conseguinte, considerar a destruição da pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o descobrimento de uma realidade que por trás dele se escondia, pronta e acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem e a redução do homem ao nível da práxis utilitária. A destruição da pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão da realidade, da sua concreticidade. As correntes idealísticas absolutizaram ora o sujeito, tratando do problema de como encarar a realidade a fim de que ela fosse concreta ou bela, ora o objeto, e supuseram que a realidade é tanto mais real quanto mais perfeitamente dela se expulsa o sujeito. Ao contrário delas, na destruição materialista da pseudoconcreticidade, a liberalização do “sujeito” (vale dizer, a visão concreta da realidade, ao invés da “intuição fetichista”) coincide com a liberalização do “objeto” (criação do ambiente humano como fato humano dotado de condições de transparente racionalidade), posto que a realidade social dos homens se cria como união dialética de sujeito e objeto.
A palavra de ordem ad fontes, que ressoa periodicamente como reação contra a pseudoconcreticidade nas suas mais variadas manifestações, assim como a regra metodológica da análise positivista – “libertar-se dos preconceitos” – encontram o seu fundamento e a sua justificação na destruição materialista da pseudoconcreticidade. Todavia, o próprio retorno “às fontes” apresenta dois aspectos completamente distintos. Sob o primeiro aspecto ele se apresenta como uma douta e humanisticamente erudita crítica das fontes, como um exame dos arquivos e das fontes antigas, das quais cumpre deduzir a realidade autêntica. Sob o aspecto mais profundo e mais significativo, que aos olhos da douta erudição se afigura barbárie (como o testemunhas as reações contra Shakespeare e Rousseau) a palavra de ordem ad fontes significa crítica da civilização e da cultura; significa tentativa – romântica ou revolucionária – de descobrir por trás dos produtos e das criações a atividade e operosidade produtiva, de encontrar “a autêntica realidade” do homem concreto por trás da realidade reificada da cultura dominante, de desvendar o autêntico objeto histórico sob as estratificações das convenções fixadas.
NOTAS
[1] “...Se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria a ciência? (Marx a Engels, carta de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e essência coincidissem diretamente.” Marx, O Capital, III, séc.VII, cap. XLVIII, III. (Tr.ital. Roma, Rinascita, 1959, III, a, Pág.228). “Para as formas fenomênicas... a diferença da relação essencial ... vale exatamente aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e para o fundamento oculto por detrás delas. As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência.” Marx, O Capital, I, seç. VI, cap. XVII. (Tr. Ital. I, 2, pág. 259).
[2] Alguns filósofos (por ex. Granger, L’ancienne et la nouvelle économie, “Esprit”, 1956, pág. 5515) atribuem apenas a Hegel o “método da abstração” e “do conceito”. Na realidade, este é o único caminho da filosofia para chegar à estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.
[3] No plano desta “unilateralidade” prática, Marx, Hegel e Goethe se colocam contra a universalidade fictícia dos românticos.
[4] O Capital, de Marx, é construído metodologicamente sobre a distinção entre falsa consciência e compreensão real da coisa, de modo que as categorias principais da compreensão da realidade investigada se apresentam aos pares: fenômeno – essência; mundo da aparência – mundo real; aparência externa dos fenômenos – lei dos fenômenos; existência positiva – núcleo interno, essencial, oculto; movimento visível – movimento real interno; representação – conceito; falsa consciência – consciência real; sistematização doutrinária das representações (“ideologia”) – teoria e ciência.
[5] “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado, as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de Walhens, L’idée phénomenologique d’intentionalité, in Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28. Esta definição de um autor não-marxista constitui um testemunho sintomático da problemática filosófica do século XX, para a qual a destruição da pseudoconcreticidade e das mais variadas formas de alienação se transformou em uma das questões essenciais. Os filósofos se distinguem, entre si, pelo modo como a resolvem, mas a problemática comum já é dada, tanto para o positivismo (a luta de Carnap e Neurath contra a metafísica real ou suposta), como também para a fenomenologia e o existencialismo.É sintomático que o sentido autêntico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do século XX só tenham sido descobertos por um filósofo de orientação marxista, cuja obra constitui a primeira tentativa séria de um confronto entre a fenomenologia e a filosofia materialista. O autor define expressivamente o caráter paradoxal e rico em contrastes da destruição fenomenológica da pseudoconcreticidade: “O mundo da aparência havia abarcado, na linguagem ordinária, todo o sentido da noção de realidade... Desde que as aparências aí se impuseram a título de mundo real, sua eliminação se apresentava como uma colocação entre parênteses deste mundo ... e a realidade autêntica à que se retornava tomava paradoxalmente a forma de irrealidade de uma consciência pura.” Tran-Duc-Thao. Phenomenologique et materialisme dialectique, Paris, 1951, págs. 223-24.
[6] Hegel assim define o pensamento reflexivo: “A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de uma para a outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a unidade que as compenetra.” Hegel, Phil. der Religion, I, pág. 126 (Werke, Vol. XI). Ver também Marx, Grundrisse, pág. 10.
quarta-feira, 25 de maio de 2011
DICOTOMIZAÇÃO
A palavra feia que dá título à postagem de hoje significa, segundo o Dicionário Houaiss, dividir em duas partes. É o ato de classificar ou validar duas idéias opostas sobre um mesmo processo, geralmente complexo. Na política, a dicotomização é praticada com um acréscimo: escolhendo um meio termo entre idéias dicotômicas. Dessa prática largamente utilizada surgiu a expressão popular "agradar a gregos e troianos".
Trata-se do mecanismo ideologicamente mais poderoso da nossa época. Ao se escolher o meio termo de uma dicotomia, oculta-se que trata-se de uma dicotomia, ou seja, de idéias sobre um objeto e não do próprio objeto. Por isso, escolher um meio termo não garante que o objeto esteja de fato elucidado, e sim que entre duas interpretações opostas, ou seja, duas teorias opostas sobre o objeto, escolheu-se o "ponto de equilíbrio".
Obviamente, o efeito colateral dessa prática é que o objeto em si - ou seja, o problema, o fato, a realidade em si - permanece intocada. Escolher o ponto de equilíbrio entre interpretações opostas sobre a realidade não tem qualquer implicação sobre os problemas da realidade mesma. A realidade possui tarefas, implicações e complexidades que independem das interpretações sobre a mesma.
Parece um ovo de Colombo, mas não é. Uma prova: a alteração do Código Florestal Brasileiro.
Durante as discussões na Câmara dos Deputados, a mídia e os formadores de opinião em geral venderam a falsa idéia de que tratava-se de um embate entre verdes e ruralistas. Por isso, cabia aos homens de boa índole e caráter democrático dialogar com o lado contrário na busca por um meio termo que agradasse a gregos e troianos. Encontrado esse lugar mítico, estaria resolvido o problema e todos seriam felizes.
Pergunto: quais as implicações de um consenso no Congresso Nacional no esgotamento mundial dos recursos naturais renováveis? Em que esse consenso mudaria a questão mais ampla do rumo suicida que todas as nações vêm tomando a pretexto de imperativos econômicos? Como uma mudança consensual do Código Florestal Brasileiro impediria a atual rota fatídica rumo ao colapso da civilização humana?
Em que promover o equilíbrio entre ambientalistas e ruralistas mudaria na consciência do Homo sapiens sobre o seu lugar neste planeta?
Parecem questões teóricas, mas não são. Todas as espécies do planeta desenvolvem instintivamente uma interação com o meio ambiente de tal modo que qualquer destruição é sempre recomposta, com benefícios para todos. Nós perdemos esta capacidade. Nós, a única "espécie racional" da natureza. Nós, criadores de prédios e automóveis, não nos reconhecemos mais como espécie: nos reconhecemos como consumidores. Ou no máximo como brasileiros, norte-americanos, bolivianos, australianos etc.
A categoria geral que no designa, a civilização humana, se perdeu do nosso horizonte histórico.
Como isso foi acontecer?
Uma das razões é a dicotomização da política. Escolher entre duas teorias sobre o real pode não ter implicação alguma sobre o próprio real, no sentido da sua autonomia. Mas possui o enorme poder de legitimar da parte que escolhe. A aparência de democracia, de benevolência moral, de profundidade democrática, se encarrega de estabelecer, para aqueles que legislam sobre os nossos destinos, uma "aura" que não somente beira a santidade como também aprofunda o seu próprio poder de mando... e com isso cria um lapso entre os problemas do mundo real e os problemas dos consensos entre narrativas.
No caso do Código Florestal a realidade já se impôs antes mesmo da votação: as queimadas e derrubadas dispararam em praticamente todo o país antes mesmo da aprovação do novo texto. É um exemplo cada vez menos raro no qual a realidade berra em alto e bom som: "Vejam, estou aqui!", enquanto todos estão na busca obsessiva por consensos.
Novos exemplos surgem todos os dias na vida concreta das pessoas, naquilo que a imprensa chama "cotidiano dos bairros". A razão é aquele ovo de Colombo: a realidade tem os seus próprios processos. Grande parte do que se acredita ser uma forma de organização é na verdade, e há muito tempo, um mecanismo para o seu ocultamento. Os principais mecanismos de dominação e controle social, que impedem uma vista mais justa para todos, estão no mundo da política. É de lá que saem os cordões das marionetes.
A liberdade só poderá se realizar politicamente com a supressão da atual política. Nunca na história da nossa espécie foi tão urgente a implantação de um modo de vida onde o poder seja horizontalizado e as decisões tomadas por todos. Só assim poderemos recuperar o debate civilizacional perdido para mistificações sobre os "conflitos de interesses" e as "necessidades de governabilidade" em geral. A política, por sua natureza, nunca vai passar disso. Por necessitar de consensos, ela precisará obviamente manter as partes em dissensos.
Já escrevi no blog que um dos objetivos da busca por equilíbrio nos diálogos da política é manter as aparências do próprio jogo do poder. Há muito tempo o mundo da política descobriu que conceder espaços de protagonismo beneficia muito mais a quem favorece, não tanto a quem é favorecido.
Resultante desta, outra descoberta foi o efeito obtido quando se confunde radicalismo e sectarismo. Mas, a este respeito, o livro que ilustra a postagem de hoje tem muito mais a dizer do que eu.
Trata-se do mecanismo ideologicamente mais poderoso da nossa época. Ao se escolher o meio termo de uma dicotomia, oculta-se que trata-se de uma dicotomia, ou seja, de idéias sobre um objeto e não do próprio objeto. Por isso, escolher um meio termo não garante que o objeto esteja de fato elucidado, e sim que entre duas interpretações opostas, ou seja, duas teorias opostas sobre o objeto, escolheu-se o "ponto de equilíbrio".
Obviamente, o efeito colateral dessa prática é que o objeto em si - ou seja, o problema, o fato, a realidade em si - permanece intocada. Escolher o ponto de equilíbrio entre interpretações opostas sobre a realidade não tem qualquer implicação sobre os problemas da realidade mesma. A realidade possui tarefas, implicações e complexidades que independem das interpretações sobre a mesma.
Parece um ovo de Colombo, mas não é. Uma prova: a alteração do Código Florestal Brasileiro.
Durante as discussões na Câmara dos Deputados, a mídia e os formadores de opinião em geral venderam a falsa idéia de que tratava-se de um embate entre verdes e ruralistas. Por isso, cabia aos homens de boa índole e caráter democrático dialogar com o lado contrário na busca por um meio termo que agradasse a gregos e troianos. Encontrado esse lugar mítico, estaria resolvido o problema e todos seriam felizes.
Pergunto: quais as implicações de um consenso no Congresso Nacional no esgotamento mundial dos recursos naturais renováveis? Em que esse consenso mudaria a questão mais ampla do rumo suicida que todas as nações vêm tomando a pretexto de imperativos econômicos? Como uma mudança consensual do Código Florestal Brasileiro impediria a atual rota fatídica rumo ao colapso da civilização humana?
Em que promover o equilíbrio entre ambientalistas e ruralistas mudaria na consciência do Homo sapiens sobre o seu lugar neste planeta?
Parecem questões teóricas, mas não são. Todas as espécies do planeta desenvolvem instintivamente uma interação com o meio ambiente de tal modo que qualquer destruição é sempre recomposta, com benefícios para todos. Nós perdemos esta capacidade. Nós, a única "espécie racional" da natureza. Nós, criadores de prédios e automóveis, não nos reconhecemos mais como espécie: nos reconhecemos como consumidores. Ou no máximo como brasileiros, norte-americanos, bolivianos, australianos etc.
A categoria geral que no designa, a civilização humana, se perdeu do nosso horizonte histórico.
Como isso foi acontecer?
Uma das razões é a dicotomização da política. Escolher entre duas teorias sobre o real pode não ter implicação alguma sobre o próprio real, no sentido da sua autonomia. Mas possui o enorme poder de legitimar da parte que escolhe. A aparência de democracia, de benevolência moral, de profundidade democrática, se encarrega de estabelecer, para aqueles que legislam sobre os nossos destinos, uma "aura" que não somente beira a santidade como também aprofunda o seu próprio poder de mando... e com isso cria um lapso entre os problemas do mundo real e os problemas dos consensos entre narrativas.
No caso do Código Florestal a realidade já se impôs antes mesmo da votação: as queimadas e derrubadas dispararam em praticamente todo o país antes mesmo da aprovação do novo texto. É um exemplo cada vez menos raro no qual a realidade berra em alto e bom som: "Vejam, estou aqui!", enquanto todos estão na busca obsessiva por consensos.
Novos exemplos surgem todos os dias na vida concreta das pessoas, naquilo que a imprensa chama "cotidiano dos bairros". A razão é aquele ovo de Colombo: a realidade tem os seus próprios processos. Grande parte do que se acredita ser uma forma de organização é na verdade, e há muito tempo, um mecanismo para o seu ocultamento. Os principais mecanismos de dominação e controle social, que impedem uma vista mais justa para todos, estão no mundo da política. É de lá que saem os cordões das marionetes.
A liberdade só poderá se realizar politicamente com a supressão da atual política. Nunca na história da nossa espécie foi tão urgente a implantação de um modo de vida onde o poder seja horizontalizado e as decisões tomadas por todos. Só assim poderemos recuperar o debate civilizacional perdido para mistificações sobre os "conflitos de interesses" e as "necessidades de governabilidade" em geral. A política, por sua natureza, nunca vai passar disso. Por necessitar de consensos, ela precisará obviamente manter as partes em dissensos.
Já escrevi no blog que um dos objetivos da busca por equilíbrio nos diálogos da política é manter as aparências do próprio jogo do poder. Há muito tempo o mundo da política descobriu que conceder espaços de protagonismo beneficia muito mais a quem favorece, não tanto a quem é favorecido.
Resultante desta, outra descoberta foi o efeito obtido quando se confunde radicalismo e sectarismo. Mas, a este respeito, o livro que ilustra a postagem de hoje tem muito mais a dizer do que eu.
segunda-feira, 23 de maio de 2011
RIO BRANCO DAS PRAÇAS
Das muitas coisas que não entendo no "projeto paisagístico" de Rio Branco está a enorme quantidade de praças no centro da cidade. Espaços que quase ninguém usa, inclusive nos finais de semana, graças à violência e a falta de opções culturais no dito centro da cidade.
Da ponte Juscelino Kubitschek até o prédio da prefeitura, em linha reta, são 5 praças: dos Povos da Floresta, do Senadinho, da Biblioteca Pública, da Revolução e dos Taxistas. Tudo em menos de 500 metros! E há outras praças, nas adjacências, geralmente pequenos espaços com meia dúzia de bancos que ninguém usa, exceto para vender badulaques e traquitanas durante o dia. À noite todas ficam, como de praxe, entregues às baratas.
O governo Tião Viana (PT) vem falando em modernização do Acre desde que assumiu. A prefeitura bem que poderia aderir à idéia e ajudar o povo: as ruas do centro já estão apertadas demais e a luta por estacionamentos é quase uma epopéia, especialmente ao meio-dia, quando os pais vão buscar as crianças nas escolas.
Que tal transformar todas essas praças em estacionamentos públicos? Não precisa derrubar as árvores, basta remover alguns bancos e aplainar o nível do solo. Na Praça da Revolução poderiam até construir um drive-in, um cinema público (ou terceirizado) com entrada simbólica. Além de melhorar na questão dos estacionamentos, ajudaria a reduzir pasmaceira cultural que hoje impera em Rio Branco, dando ao povo, de quebra, uma opção de lazer.
Algumas idéias radicais são necessárias de vez em quando. Aliás, por mim o centro deveria ser fechado desde a Avenida Ceará até as duas pontes. A área toda viraria um grande calçadão, como é hoje aquela região dos camelôs no centro da cidade. O trânsito ali está ficando inviável, as ruas são estreitas demais e a especulação fundiária, como sempre, só piora a situação.
Transformar as praças em estacionamentos e o centro em calçadão. Dá certo, é só querer.
A foto é da praça inútil na frente do Palácio Rio Branco. A propósito, a região já foi um estacionamento.
Da ponte Juscelino Kubitschek até o prédio da prefeitura, em linha reta, são 5 praças: dos Povos da Floresta, do Senadinho, da Biblioteca Pública, da Revolução e dos Taxistas. Tudo em menos de 500 metros! E há outras praças, nas adjacências, geralmente pequenos espaços com meia dúzia de bancos que ninguém usa, exceto para vender badulaques e traquitanas durante o dia. À noite todas ficam, como de praxe, entregues às baratas.
O governo Tião Viana (PT) vem falando em modernização do Acre desde que assumiu. A prefeitura bem que poderia aderir à idéia e ajudar o povo: as ruas do centro já estão apertadas demais e a luta por estacionamentos é quase uma epopéia, especialmente ao meio-dia, quando os pais vão buscar as crianças nas escolas.
Que tal transformar todas essas praças em estacionamentos públicos? Não precisa derrubar as árvores, basta remover alguns bancos e aplainar o nível do solo. Na Praça da Revolução poderiam até construir um drive-in, um cinema público (ou terceirizado) com entrada simbólica. Além de melhorar na questão dos estacionamentos, ajudaria a reduzir pasmaceira cultural que hoje impera em Rio Branco, dando ao povo, de quebra, uma opção de lazer.
Algumas idéias radicais são necessárias de vez em quando. Aliás, por mim o centro deveria ser fechado desde a Avenida Ceará até as duas pontes. A área toda viraria um grande calçadão, como é hoje aquela região dos camelôs no centro da cidade. O trânsito ali está ficando inviável, as ruas são estreitas demais e a especulação fundiária, como sempre, só piora a situação.
Transformar as praças em estacionamentos e o centro em calçadão. Dá certo, é só querer.
A foto é da praça inútil na frente do Palácio Rio Branco. A propósito, a região já foi um estacionamento.
sábado, 21 de maio de 2011
quinta-feira, 19 de maio de 2011
O DIÁLOGO DO PODER
Na edição de hoje do jornal A Gazeta, do empresário marxista Silvio Martinello, há um louvor formidável a uma das principais invenções da humanidade: o diálogo. Em vinte e cinco linhas e meia muito bem escritas, o jornalista Nelson Liano explica por que os interesses dos movimentos sociais, do Estado e da iniciativa privada devem ceder lugar, quando em atrito, a uma concepção orgânica da vida social.
A tese fundamental é que radicalismos de qualquer lado, exatamente por pertencerem a alguma das partes em luta, devem ser apresentados como equivalentes em um amplo diálogo para que se encontre o entendimento comum. Suspeitando de interferências de ambições pessoais nas ameaças de radicalização, o autor ensina que a preponderância do coletivo, do todo, sobre interesses antagônicos, é uma verdade absoluta ao mesmo tempo em que nos informa: “verdades absolutas, na realidade, são típicas de sistemas ditatoriais”.
Mas o que poderia ser chamado de “ato falho” numa abordagem meramente psicanalítica, revela-se na verdade conseqüência de um sistema de idéias: Liano parte do princípio de que “encontrar uma nova identidade econômica e social” a partir do modo de produção vigente hoje não é interesse de uma das partes, nem está sujeita a projetos pessoais de poder.
É uma aposta e tanto, se considerada a vida material dos cidadãos. Por esse critério teríamos que rever, com certa urgência, a formação histórica do Estado do Acre – e, suspeito, não somente dele.
A questão é que as citadas partes em diálogo não o fazem abstraindo a sua situação de vida, suas condições reais de existência. O discurso da organicidade é fundamental para a manutenção de interesses dominantes: ele surge como o chamado para uma igualdade simbólica quando não há igualdade real. Por esta razão, na terrível iminência dos radicalismos de pessoas e grupos, o texto de Nelson Liano contrapõe “muita calma e disponibilidade para manter viva a chama do desapego e do entendimento”. Por que? Porque “o diálogo tem que ser explorado ao máximo na expectativa de que só possa estar esgotado quando houver a convergência”.
Longe de ser o mediador neutro de interesses contraditórios, o sonho de uma organicidade entre partes desiguais é na verdade o seu contrário: o discurso de um dos sujeitos do diálogo que busca, por meio da concessão de alguns espaços, a manutenção das condições mais amplas que produzem a desigualdade e a injustiça social. É um instrumento de dominação e controle da vida material, onde os sujeitos existem de fato. Em realidade, toda proposta de neutralidade (da qual a velha neutralidade jornalística faz parte) é um meio pelo qual o conservadorismo se realiza na vida social – diferente do progressismo, que o faz apresentando idéias e assumindo-as como suas, daí a pecha “radical”, em qualquer época.
A partir desses pressupostos materialmente dados é que se pode iniciar um diálogo realmente frutífero. Caso contrário, toda tentativa de diálogo sempre será fundada em um movimento duplo de concessão de espaços de manobra para a manutenção de uma ordem fundada numa falsa organicidade. Não pelo poder do diálogo, mas no diálogo do poder.
Para uma apreciação mais aprofundada sobre o poder da ideologia "organicista"e entender melhor como isso serve a interesses materiais reais, sugiro a leitura de István Meszáros em O poder da ideologia (ilustração acima). O autor fez uma introdução ao livro, Ensaios de negação e afirmação, que está disponível para download clicando aqui.
A tese fundamental é que radicalismos de qualquer lado, exatamente por pertencerem a alguma das partes em luta, devem ser apresentados como equivalentes em um amplo diálogo para que se encontre o entendimento comum. Suspeitando de interferências de ambições pessoais nas ameaças de radicalização, o autor ensina que a preponderância do coletivo, do todo, sobre interesses antagônicos, é uma verdade absoluta ao mesmo tempo em que nos informa: “verdades absolutas, na realidade, são típicas de sistemas ditatoriais”.
Mas o que poderia ser chamado de “ato falho” numa abordagem meramente psicanalítica, revela-se na verdade conseqüência de um sistema de idéias: Liano parte do princípio de que “encontrar uma nova identidade econômica e social” a partir do modo de produção vigente hoje não é interesse de uma das partes, nem está sujeita a projetos pessoais de poder.
É uma aposta e tanto, se considerada a vida material dos cidadãos. Por esse critério teríamos que rever, com certa urgência, a formação histórica do Estado do Acre – e, suspeito, não somente dele.
A questão é que as citadas partes em diálogo não o fazem abstraindo a sua situação de vida, suas condições reais de existência. O discurso da organicidade é fundamental para a manutenção de interesses dominantes: ele surge como o chamado para uma igualdade simbólica quando não há igualdade real. Por esta razão, na terrível iminência dos radicalismos de pessoas e grupos, o texto de Nelson Liano contrapõe “muita calma e disponibilidade para manter viva a chama do desapego e do entendimento”. Por que? Porque “o diálogo tem que ser explorado ao máximo na expectativa de que só possa estar esgotado quando houver a convergência”.
Longe de ser o mediador neutro de interesses contraditórios, o sonho de uma organicidade entre partes desiguais é na verdade o seu contrário: o discurso de um dos sujeitos do diálogo que busca, por meio da concessão de alguns espaços, a manutenção das condições mais amplas que produzem a desigualdade e a injustiça social. É um instrumento de dominação e controle da vida material, onde os sujeitos existem de fato. Em realidade, toda proposta de neutralidade (da qual a velha neutralidade jornalística faz parte) é um meio pelo qual o conservadorismo se realiza na vida social – diferente do progressismo, que o faz apresentando idéias e assumindo-as como suas, daí a pecha “radical”, em qualquer época.
A partir desses pressupostos materialmente dados é que se pode iniciar um diálogo realmente frutífero. Caso contrário, toda tentativa de diálogo sempre será fundada em um movimento duplo de concessão de espaços de manobra para a manutenção de uma ordem fundada numa falsa organicidade. Não pelo poder do diálogo, mas no diálogo do poder.
Para uma apreciação mais aprofundada sobre o poder da ideologia "organicista"e entender melhor como isso serve a interesses materiais reais, sugiro a leitura de István Meszáros em O poder da ideologia (ilustração acima). O autor fez uma introdução ao livro, Ensaios de negação e afirmação, que está disponível para download clicando aqui.
segunda-feira, 16 de maio de 2011
CAI MAIS UM MITO
Talvez porque seja uma prática difundida demais entre blogs e intelectuais, talvez porque tenha pego muita gente inteligente de surpresa. Não importa o motivo, passou em brancas nuvens no Acre a inclusão do livro "Por uma vida melhor" no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). A obra reconhece o que deveria ser óbvio, mas continua extremamente dificultoso para alguns e até meio conspiratório para outros: a língua pertence aos falantes.
Na sequência de vários estudos - e até de uma ciência nova, a Sociolinguística - sobre língua e linguagem, o MEC passa a admitir, oficialmente, a fala e até a grafia "errada", isto é, fora da norma culta. Por uma razão simples: sendo o idioma uma construção social que visa a comunicação, a escrita e a pronúncia fora dessa norma não podem ser consideradas erradas. Pelo contrário: normatizar a língua para criar um "padrão de comunicação" é não só errado, como ainda herança de uma tradição social autoritária.
Aliás, é essa tradição autoritária a responsável por tornar indispensável a norma culta em determinados espaços da sociedade: documentos oficiais, jornalismo, enfim, espaços de poder em geral - a norma culta, nesse caso, serve para confirmar o mito de que esses espaços têm alguma autoridade política simbólica sobre os cidadãos, ou que estão acima de qualquer processo de transição ou construção social. Alguns, como o Judiciário, especializaram-se em pavonear tal mito.
Logo, é claro e evidente que quem quiser "ascender socialmente" deverá dominar e usar a norma culta (exatamente pela necessidade de seu uso). Isso não se discute.
Discutível, e sociologicamente relevante, é considerar o domínio da norma culta um critério para mensurar inteligência. Assim como é também bizarro exigir a nulidade de um argumento a partir dos seus erros de português - prática bastante comum entre nós.
A questão é que quem escreve ou fala (quem se expressa, de forma geral) sempre o fará de acordo com o seu "horizonte histórico", ou seja, pelo quadro de referencialidades que possui e que é absolutamente pessoal porque está ligado ao meio em que aprendeu a se comunicar. O que a postura normativa, tirânica, em relação à gramática exige é que apenas uma forma seja imposta e todas as outras lhe sejam inferiores - o que, aliás, não muda em nada o processo de transformação do idioma pelo próprio uso - para que com isso seus adeptos, discípulos, defensores etc, possam disciplinar os espaços públicos e determinar quem pode e quem não pode se expressar.
Logo, se a normatização da linguagem é uma forma de controle social, a disseminação dessa prática, para além da estreiteza intelectual de quem a pratica, demonstra o enorme desprezo exatamente pelos valores que costuma cultuar ou prescrever: a liberdade, a pluralidade, a democracia etc.
Falando nisso, vamos esperar para ver até quando blogs e blogueiros, esses seres ultra-desenvolvidos da comunicação social, continuarão dando lições de gramática e passar isso como contestação de argumentos. Como dizem os mais jovens, "oremos..."
Quem quiser se inteirar mais sobre o assunto, sugiro uma visita ao ótimo site do professor Marcos Bagno, da UnB, gramático que já escreveu vários livros sobre o assunto (entre eles, "Preconceito linguístico: o que é, como se faz", cuja capa ilustra a postagem de hoje): clique aqui.
Pode ainda visitar o verbete "Preconceito linguístico" na Wikipedia, clicando aqui.
Na sequência de vários estudos - e até de uma ciência nova, a Sociolinguística - sobre língua e linguagem, o MEC passa a admitir, oficialmente, a fala e até a grafia "errada", isto é, fora da norma culta. Por uma razão simples: sendo o idioma uma construção social que visa a comunicação, a escrita e a pronúncia fora dessa norma não podem ser consideradas erradas. Pelo contrário: normatizar a língua para criar um "padrão de comunicação" é não só errado, como ainda herança de uma tradição social autoritária.
Aliás, é essa tradição autoritária a responsável por tornar indispensável a norma culta em determinados espaços da sociedade: documentos oficiais, jornalismo, enfim, espaços de poder em geral - a norma culta, nesse caso, serve para confirmar o mito de que esses espaços têm alguma autoridade política simbólica sobre os cidadãos, ou que estão acima de qualquer processo de transição ou construção social. Alguns, como o Judiciário, especializaram-se em pavonear tal mito.
Logo, é claro e evidente que quem quiser "ascender socialmente" deverá dominar e usar a norma culta (exatamente pela necessidade de seu uso). Isso não se discute.
Discutível, e sociologicamente relevante, é considerar o domínio da norma culta um critério para mensurar inteligência. Assim como é também bizarro exigir a nulidade de um argumento a partir dos seus erros de português - prática bastante comum entre nós.
A questão é que quem escreve ou fala (quem se expressa, de forma geral) sempre o fará de acordo com o seu "horizonte histórico", ou seja, pelo quadro de referencialidades que possui e que é absolutamente pessoal porque está ligado ao meio em que aprendeu a se comunicar. O que a postura normativa, tirânica, em relação à gramática exige é que apenas uma forma seja imposta e todas as outras lhe sejam inferiores - o que, aliás, não muda em nada o processo de transformação do idioma pelo próprio uso - para que com isso seus adeptos, discípulos, defensores etc, possam disciplinar os espaços públicos e determinar quem pode e quem não pode se expressar.
Logo, se a normatização da linguagem é uma forma de controle social, a disseminação dessa prática, para além da estreiteza intelectual de quem a pratica, demonstra o enorme desprezo exatamente pelos valores que costuma cultuar ou prescrever: a liberdade, a pluralidade, a democracia etc.
Falando nisso, vamos esperar para ver até quando blogs e blogueiros, esses seres ultra-desenvolvidos da comunicação social, continuarão dando lições de gramática e passar isso como contestação de argumentos. Como dizem os mais jovens, "oremos..."
Quem quiser se inteirar mais sobre o assunto, sugiro uma visita ao ótimo site do professor Marcos Bagno, da UnB, gramático que já escreveu vários livros sobre o assunto (entre eles, "Preconceito linguístico: o que é, como se faz", cuja capa ilustra a postagem de hoje): clique aqui.
Pode ainda visitar o verbete "Preconceito linguístico" na Wikipedia, clicando aqui.
sexta-feira, 13 de maio de 2011
quarta-feira, 11 de maio de 2011
"ESTAR NEUTRO É TOMAR PARTIDO"
Autor do livro Política para não ser idiota, o filósofo Mario Sérgio Cortella explica por que a despolitização é absolutamente política
Por Adriana Delorenzo, na revista Forum
Em grego, idiótes quer dizer aquele que só vive a vida privada, que recusa a política. Embora atualmente a palavra não seja usada popularmente com esse significado, ela inspirou o livro do filósofo e professor da PUC/SP, Mário Sérgio Cortella, e Renato Janine Ribeiro: Política para não ser idiota.
“Se você não faz política, alguém decidirá por você”, afirma Cortella, que ressalta a importância da participação política em todas as esferas, seja no condomínio, no sindicato, na cidade, no país. Ficar neutro, em suas palavras, é estar do lado de quem tem mais força. “É o mesmo que ver um menino de 15 anos brigando com uma criança de 5. Se você não fizer nada, quem vai ganhar?”, compara.
O filósofo explica que a política está presente em todos os momentos. “Todo encontro meu com outra pessoa é um ato político. Afinal de contas se eu existisse sozinho no mundo e no universo, não existiria política, porque não haveria a ideia de comunidade. Mas se eu vivo com outras pessoas, sejam duas, dez, um milhão, 30 milhões, 500 milhões, eu estou tendo em qualquer relação, algo ligado à ideia de poder, de convivência, de relacionamento, e nesta hora a política está vindo à tona”, diz.
Mas o brasileiro, segundo o filósofo, não tem tradição de participar, o que é fruto de 511 anos de exclusão. “A independência não foi um objeto de luta política, assim como a proclamação da República não teve grande participação popular”, destaca. Já a nossa democracia, com 25 anos de história, para ele, é ainda jovem. “O número de vezes em que a população entrou no circuito de participação ativa não foi tão grande dentro da nossa trajetória.” Cortella alerta que essa despolitização é absolutamente política: “Há um enfraquecimento da participação, como se política fosse uma coisa ligada a partidos.”
Educar, um ato político
A baixa escolarização interfere na ausência do conhecimento por parte dos brasileiros do que é política. Todas essas questões foram debatidas no dia em que a morte de Paulo Freire completava 14 anos, 2 de maio. Cortella falou a um auditório cheio de metalúrgicos de Osasco. O sindicato da região lançou um programa de educação sindical, que contou com a palestra de Cortella, onde ele reforçou qual deve ser a função da educação: emancipar.
Para o filósofo, é hora de pensar uma educação para evitar que mais pessoas sejam vitimadas: “Hoje se fala muito em excluídos, é muito leve, o certo seria dizer as vítimas da economia”. Ele fez críticas sobre a existência de analfabetismo de adultos no país, que em sua opinião é um problema de Estado. “Cuidado, isso não tem a ver só com governo, às vezes há alguém quem não sabe ler na sua casa, uma empregada, um jardineiro”, dispara.
Além disso, Cortella criticou a educação do estado de São Paulo. “É quase vergonhoso que o maior estado da federação, do ponto de vista econômico, tenha índices tão precários, no campo da educação pública.”
Questionado sobre o fato de alunos do 9º ano não saberem ler e não serem reprovados, Cortella explica: “O atrelamento da promoção automática, que é um sistema de avaliação, com a progressão continuada, que é uma organização do currículo, trouxe uma série de distúrbios. Não se pode implantar a aprovação ou promoção automática sem uma série de medidas laterais, que protejam a qualidade do que está sendo ensinado e as etapas de recuperação do aluno. É preciso melhorar as condições de trabalho, organizar período integral de atendimento, que haja um trabalho também com os pais e as famílias. E em São Paulo, no ponto de partida embora a ideia fosse boa, ela foi colocada de uma forma apressada e sem criar condições para se dar o suporte.”
Segundo Cortella, os índices só não são mais negativos, por conta da pressão do sindicato da categoria, Apeoesp. “O sindicato luta bravamente para que não haja uma depravação completa dessa estrutura”, afirma. Voltando à etimologia, ele explicou que sindicato vem do grego: syn e diké, junto e justiça. “É a ideia de alguém que se junta a outros para reivindicar a justiça para todos.”
Leia a entrevista ao filósofo clicando aqui.
Por Adriana Delorenzo, na revista Forum
Em grego, idiótes quer dizer aquele que só vive a vida privada, que recusa a política. Embora atualmente a palavra não seja usada popularmente com esse significado, ela inspirou o livro do filósofo e professor da PUC/SP, Mário Sérgio Cortella, e Renato Janine Ribeiro: Política para não ser idiota.
“Se você não faz política, alguém decidirá por você”, afirma Cortella, que ressalta a importância da participação política em todas as esferas, seja no condomínio, no sindicato, na cidade, no país. Ficar neutro, em suas palavras, é estar do lado de quem tem mais força. “É o mesmo que ver um menino de 15 anos brigando com uma criança de 5. Se você não fizer nada, quem vai ganhar?”, compara.
O filósofo explica que a política está presente em todos os momentos. “Todo encontro meu com outra pessoa é um ato político. Afinal de contas se eu existisse sozinho no mundo e no universo, não existiria política, porque não haveria a ideia de comunidade. Mas se eu vivo com outras pessoas, sejam duas, dez, um milhão, 30 milhões, 500 milhões, eu estou tendo em qualquer relação, algo ligado à ideia de poder, de convivência, de relacionamento, e nesta hora a política está vindo à tona”, diz.
Mas o brasileiro, segundo o filósofo, não tem tradição de participar, o que é fruto de 511 anos de exclusão. “A independência não foi um objeto de luta política, assim como a proclamação da República não teve grande participação popular”, destaca. Já a nossa democracia, com 25 anos de história, para ele, é ainda jovem. “O número de vezes em que a população entrou no circuito de participação ativa não foi tão grande dentro da nossa trajetória.” Cortella alerta que essa despolitização é absolutamente política: “Há um enfraquecimento da participação, como se política fosse uma coisa ligada a partidos.”
Educar, um ato político
A baixa escolarização interfere na ausência do conhecimento por parte dos brasileiros do que é política. Todas essas questões foram debatidas no dia em que a morte de Paulo Freire completava 14 anos, 2 de maio. Cortella falou a um auditório cheio de metalúrgicos de Osasco. O sindicato da região lançou um programa de educação sindical, que contou com a palestra de Cortella, onde ele reforçou qual deve ser a função da educação: emancipar.
Para o filósofo, é hora de pensar uma educação para evitar que mais pessoas sejam vitimadas: “Hoje se fala muito em excluídos, é muito leve, o certo seria dizer as vítimas da economia”. Ele fez críticas sobre a existência de analfabetismo de adultos no país, que em sua opinião é um problema de Estado. “Cuidado, isso não tem a ver só com governo, às vezes há alguém quem não sabe ler na sua casa, uma empregada, um jardineiro”, dispara.
Além disso, Cortella criticou a educação do estado de São Paulo. “É quase vergonhoso que o maior estado da federação, do ponto de vista econômico, tenha índices tão precários, no campo da educação pública.”
Questionado sobre o fato de alunos do 9º ano não saberem ler e não serem reprovados, Cortella explica: “O atrelamento da promoção automática, que é um sistema de avaliação, com a progressão continuada, que é uma organização do currículo, trouxe uma série de distúrbios. Não se pode implantar a aprovação ou promoção automática sem uma série de medidas laterais, que protejam a qualidade do que está sendo ensinado e as etapas de recuperação do aluno. É preciso melhorar as condições de trabalho, organizar período integral de atendimento, que haja um trabalho também com os pais e as famílias. E em São Paulo, no ponto de partida embora a ideia fosse boa, ela foi colocada de uma forma apressada e sem criar condições para se dar o suporte.”
Segundo Cortella, os índices só não são mais negativos, por conta da pressão do sindicato da categoria, Apeoesp. “O sindicato luta bravamente para que não haja uma depravação completa dessa estrutura”, afirma. Voltando à etimologia, ele explicou que sindicato vem do grego: syn e diké, junto e justiça. “É a ideia de alguém que se junta a outros para reivindicar a justiça para todos.”
Leia a entrevista ao filósofo clicando aqui.
segunda-feira, 9 de maio de 2011
PROTOFASCISMO
Numa época em que todos querem ser os heróis da democracia vale uma reflexão sobre o fascismo, ou, se quiserem, sobre a conduta pessoal que antecipa o fascismo. O trecho abaixo é parte do texto "Tolerância Zero ao Protofascismo", de Raymundo Lima, doutor em Educação pela USP e professor na área de Metodologia da Pesquisa da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Do Espaço Acadêmico
Um traço protofascista é o "culto da ação pela ação". A ação fascista é beligerante e carece de reflexão prévia, logo, é uma ação de fundo irracional ou passional e imprudente. O fascista não fala, age e faz discursos. Quer dizer, nele some a pessoa - que fala - para dar lugar ao discurso político em nome de alguma causa. O discurso que a engendra costuma vir em forma de razão e moral cínicas, de moralismo e legalismo positivista. Segundo Slavój Zizek, a "razão e a moral são cínicas" na medida em que eles sabem que fazem um ato mau, mas mesmo assim argumentam sobre a "justeza" e a "humanidade de seus atos". Sua denúncia não é baseada na justiça, mas no seu próprio sentido de justiça que visa prejudicar alguém, por vezes fazendo uso da delação, da palavra ferina, de insinuações e alusões e até pode usar de agressão física num momento de descontrole. (No caso do terror, a violência extrema é calculada racionalmente, portanto, não se trata de um ato louco, mas de um ato perverso). O protofascista, procura justificar que seu ato foi "para o bem coletivo...", "para evitar a decadência estética das artes...", "para evitar um mal maior" ou ainda como era freqüente nos tempos da ditadura: "para salvar a nação dos comunistas, da corrupção, dos gays", etc.
Enquanto o desacordo é sinal de diversidade, o protofascista pretende alcançar o consenso explorando o medo e a angústia das pessoas. O ambiente de trabalho, por exemplo, é lugar escolhido para gerar intrigas, divisões. Há estudos que trabalham com a hipótese de que espaços movidos pelo espírito protofascista produz mais esquizofrenias paranóides que os outros. Assim como existem seres humanos "terapêuticos", que fazem bem aos outros, também há personalidades perversas que tem a capacidade de causar desarmonia social, desequilíbrio psíquico e atravancar o andamento de projetos, desenvolvendo: desconfiança, ressentimento, inimizade, sensação de pavor, de perseguição ou paranóia.
Não importa se a ideologia "oficial" do grupo é nazi-fascista, anarquista, ou até mesmo socialista ou ecologista, a tática protofascista pode intencionalmente ocupar todos os espaços para fazer sua política de "tudo vale". Os indícios vão desde slogans do tipo "Brasil: ame-o ou deixe-o", também, posicionamentos do tipo "quem não está conosco, está contra nós" (comuns em assembléias de decisões). Por vêzes, as atitudes moralistas ou legalistas "da letra" podem esconder interesses ocultos de ânsia pessoal pelo poder ou de gozo perverso em sustentar a atitude de beligerância.
A estrutura psíquica do protofascista tende a ser perversa e narcisista. "Perversa" porque são incapazes de amar outra pessoa e respeitar a lei que fundamenta a convivência humana e "narcisista" porque "acha feio o que não é espelho"; quanto patológico, o narcisista rejeita tudo que é diferente (idéias, opiniões, crenças, valores, modo de agir e de ser) e somente aceita o que é seu igual. Há patologia no seu ato de olhar que sempre acha alguém ou grupo como "mau". Para o nazista, o narcisismo está em atribuir a culpa de tudo de ruim na economia e na sociedade aos judeus. Hoje, o fascista pensa que aqueles que não se enquadram exatamente nas idéias, crenças e valores que ele acredita, devem ser queimados, eliminados socialmente ou fisicamente. A vontade de poder do nazismo e a intolerância do fascismo tem repugnância pela compaixão ou empatia que é a capacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir-se na pele do outro e sofrer com ele. (O mesmo posicionamento do fascista acontece com o terrorista, com um diferencial: sua causa é o gozo místico que está acima da vida dele e de todos, não há compaixão, não há empatia, só fanatismo). É próprio da estrutura perversa e narcisista do protofascista: a dureza de caráter, a frieza de espírito, a indiferença, a secura no coração, a insensibilidade diante de um necessitado e sua tendência a falar mal dos que não se adequam à sua camisa de força moral. São os agenciadores das fofocas e da politicagem. Goebbls, o ministro da comunicação de Hitler, dizia que "uma fofoca é uma mentira que repetida várias vezes, terminam virando verdade".
O protofascista, acredita que está em marcha uma conspiração, uma rede secreta de conspiração. Os supostos inimigos podem ser os comunistas, os negros, os gays, as mulheres que estão subindo ao poder, todos aqueles que recusam a fazer pacto cego com ele, são vistos como os "do mau". Sua visão de mundo maniqueísta divide-se entre os que representam "o bem" e os que representam "o mau". Um fascista costumava dizer: "Quem não está do nosso lado é contra nós". É notável seu desprezo pelo pluralismo de idéias, a incapacidade pelo diálogo e debates de idéias. Eles pensam que estão sempre do lado do bem e da verdade absoluta. O protofascista vive a fantasia de ter sido eleito pelo divino para fazer o bem. Seu ideal e ação são messiânicos. (Nesse sentido, tanto os EUA, como os terrorista tem algo em comum: o messianismo delirante - escrevo esse adendo após os ataques de 11/09/01, em Nova York). Segundo Umberto Eco, os fascistas estão condenados a perder suas guerras porque são visceralmente incapazes de avaliar objetivamente a força do inimigo.
Para o protofascista, "não há luta pela vida mas vida pela luta". Acredita que o homem é o lobo do homem, a vida é uma luta em que vencem os mais fortes. Vivendo em estado de guerra permanente, ele vê o pacifismo como fraqueza ou simplesmente um mal na sociedade atual. Umberto Eco chama de "complexo de Armagedon", porque há nele a crença de que haverá uma batalha final para derrotar de vez os inimigos, após o qual o movimento controlará o mundo. Após a "solução final", haverá uma Era de Ouro, o que contradiz com o princípio da guerra permanente no fascismo. Enquanto a Era de Ouro não vem, alguns poucos fascistas escolhem viver perigosamente o gozo da luta política. Mussolini, símbolo número um do fascismo, que se aliou a Hitler na 2a. guerra mundial e que acabou pendurado de cabeça para baixo, exposto à execração pública dos italianos, tinha como lema de vida "vivere pericolosamente". Dizia: "Prefiro um dia de leão a mil de ovelha".
Para além das idéias de Umberto Eco, observamos que o protofascista é movido pelo esquizo-paranoidismo. Por exemplo, em casa tende a ser uma pessoa de convivência harmônica, aparentemente equilibrada, mas quando está com seu grupo de iguais ideológicos, entra em "transe grupal", isto é, alucina um campo de batalha onde se oferece aos imperativos da gestalt do grupo, como um soldado, uma bestasfera agressiva, intriguenta, e suicida, enfim, abdica de sua identidade pela "causa" mítica. Alguém disse que tais pessoas são tomadas pelo "espírito de Torquemada" (inquisidor espanhol que mais matou em nome da 'santa inquisição') ou pelo "estilo Goering", o segundo homem após Hitler, que na intimidade era bonachão, amante das artes e da cultura, mas no trabalho colocou sua inteligência na invenção dos campos de concentração e no extermínio em massa dos não arianos. (Esse estado de "transe" poderia ser coletivo e vingativo; uma vez que é puramente passional poderia causar efeitos extremamente imprevisíveis, tanto homicidas como suicidas. É só dar uma olhada na história das guerras).
Uma vez terminada a ditadura militar, no Brasil, de clara orientação fascista, lamentavelmente ainda sobrou seus efeitos camuflados entre diversos grupos sociais, tal como aquele que ensaiou um movimento separatista no sul do Brasil. Na convivência cotidiana, os protofascismos estão expressos nos assédios morais, nos discursos que desqualificam o próximo, nos atos de injustiça, nas bisbilhotagens dos grampos telefônicos, nas intrigas calculadas para prejudicar um colega de trabalho ou estudo, nas falas e atos provocativos de qualquer espécie, etc.
Diante do obscurantismo de nossa época, da esclerose de idéias e de valores, da mediocridade de pensamentos que não consegue dar conta de entender a complexidade de nossa época e, sobretudo, a ausência de sabedoria em todos os setores da existência humana, só nos resta ficarmos de plantão para prevenirmos em relação ao protofascismo individual ou institucional.
Ou seja, no cenário mundial contemporâneo, há indícios de aparecimento de um novo fascismo (o protofascismo) conforme apontamos no início desse artigo, projetando uma nova Auchwitz, ou outros novos movimentos movidos pelo ódio, que obrigam os diferentes a pregar no peito ou na alma suas ideologias tresloucadas, símbolos e atitudes de intolerância e de opressão do mais forte sobre os fracos.
Infelizmente, o fascismo, nazismo e o racismo estão entre nós sob inocentes disfarces. (Já o terrorismo, pela sua própria natureza e modo cruel de expressão é de origem perversa e narcisista, gostando de se expor os seus efeitos e fetiches visando obter gozos "loucos" com o sofrimento dos outros).
Do Espaço Acadêmico
Um traço protofascista é o "culto da ação pela ação". A ação fascista é beligerante e carece de reflexão prévia, logo, é uma ação de fundo irracional ou passional e imprudente. O fascista não fala, age e faz discursos. Quer dizer, nele some a pessoa - que fala - para dar lugar ao discurso político em nome de alguma causa. O discurso que a engendra costuma vir em forma de razão e moral cínicas, de moralismo e legalismo positivista. Segundo Slavój Zizek, a "razão e a moral são cínicas" na medida em que eles sabem que fazem um ato mau, mas mesmo assim argumentam sobre a "justeza" e a "humanidade de seus atos". Sua denúncia não é baseada na justiça, mas no seu próprio sentido de justiça que visa prejudicar alguém, por vezes fazendo uso da delação, da palavra ferina, de insinuações e alusões e até pode usar de agressão física num momento de descontrole. (No caso do terror, a violência extrema é calculada racionalmente, portanto, não se trata de um ato louco, mas de um ato perverso). O protofascista, procura justificar que seu ato foi "para o bem coletivo...", "para evitar a decadência estética das artes...", "para evitar um mal maior" ou ainda como era freqüente nos tempos da ditadura: "para salvar a nação dos comunistas, da corrupção, dos gays", etc.
Enquanto o desacordo é sinal de diversidade, o protofascista pretende alcançar o consenso explorando o medo e a angústia das pessoas. O ambiente de trabalho, por exemplo, é lugar escolhido para gerar intrigas, divisões. Há estudos que trabalham com a hipótese de que espaços movidos pelo espírito protofascista produz mais esquizofrenias paranóides que os outros. Assim como existem seres humanos "terapêuticos", que fazem bem aos outros, também há personalidades perversas que tem a capacidade de causar desarmonia social, desequilíbrio psíquico e atravancar o andamento de projetos, desenvolvendo: desconfiança, ressentimento, inimizade, sensação de pavor, de perseguição ou paranóia.
Não importa se a ideologia "oficial" do grupo é nazi-fascista, anarquista, ou até mesmo socialista ou ecologista, a tática protofascista pode intencionalmente ocupar todos os espaços para fazer sua política de "tudo vale". Os indícios vão desde slogans do tipo "Brasil: ame-o ou deixe-o", também, posicionamentos do tipo "quem não está conosco, está contra nós" (comuns em assembléias de decisões). Por vêzes, as atitudes moralistas ou legalistas "da letra" podem esconder interesses ocultos de ânsia pessoal pelo poder ou de gozo perverso em sustentar a atitude de beligerância.
A estrutura psíquica do protofascista tende a ser perversa e narcisista. "Perversa" porque são incapazes de amar outra pessoa e respeitar a lei que fundamenta a convivência humana e "narcisista" porque "acha feio o que não é espelho"; quanto patológico, o narcisista rejeita tudo que é diferente (idéias, opiniões, crenças, valores, modo de agir e de ser) e somente aceita o que é seu igual. Há patologia no seu ato de olhar que sempre acha alguém ou grupo como "mau". Para o nazista, o narcisismo está em atribuir a culpa de tudo de ruim na economia e na sociedade aos judeus. Hoje, o fascista pensa que aqueles que não se enquadram exatamente nas idéias, crenças e valores que ele acredita, devem ser queimados, eliminados socialmente ou fisicamente. A vontade de poder do nazismo e a intolerância do fascismo tem repugnância pela compaixão ou empatia que é a capacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir-se na pele do outro e sofrer com ele. (O mesmo posicionamento do fascista acontece com o terrorista, com um diferencial: sua causa é o gozo místico que está acima da vida dele e de todos, não há compaixão, não há empatia, só fanatismo). É próprio da estrutura perversa e narcisista do protofascista: a dureza de caráter, a frieza de espírito, a indiferença, a secura no coração, a insensibilidade diante de um necessitado e sua tendência a falar mal dos que não se adequam à sua camisa de força moral. São os agenciadores das fofocas e da politicagem. Goebbls, o ministro da comunicação de Hitler, dizia que "uma fofoca é uma mentira que repetida várias vezes, terminam virando verdade".
O protofascista, acredita que está em marcha uma conspiração, uma rede secreta de conspiração. Os supostos inimigos podem ser os comunistas, os negros, os gays, as mulheres que estão subindo ao poder, todos aqueles que recusam a fazer pacto cego com ele, são vistos como os "do mau". Sua visão de mundo maniqueísta divide-se entre os que representam "o bem" e os que representam "o mau". Um fascista costumava dizer: "Quem não está do nosso lado é contra nós". É notável seu desprezo pelo pluralismo de idéias, a incapacidade pelo diálogo e debates de idéias. Eles pensam que estão sempre do lado do bem e da verdade absoluta. O protofascista vive a fantasia de ter sido eleito pelo divino para fazer o bem. Seu ideal e ação são messiânicos. (Nesse sentido, tanto os EUA, como os terrorista tem algo em comum: o messianismo delirante - escrevo esse adendo após os ataques de 11/09/01, em Nova York). Segundo Umberto Eco, os fascistas estão condenados a perder suas guerras porque são visceralmente incapazes de avaliar objetivamente a força do inimigo.
Para o protofascista, "não há luta pela vida mas vida pela luta". Acredita que o homem é o lobo do homem, a vida é uma luta em que vencem os mais fortes. Vivendo em estado de guerra permanente, ele vê o pacifismo como fraqueza ou simplesmente um mal na sociedade atual. Umberto Eco chama de "complexo de Armagedon", porque há nele a crença de que haverá uma batalha final para derrotar de vez os inimigos, após o qual o movimento controlará o mundo. Após a "solução final", haverá uma Era de Ouro, o que contradiz com o princípio da guerra permanente no fascismo. Enquanto a Era de Ouro não vem, alguns poucos fascistas escolhem viver perigosamente o gozo da luta política. Mussolini, símbolo número um do fascismo, que se aliou a Hitler na 2a. guerra mundial e que acabou pendurado de cabeça para baixo, exposto à execração pública dos italianos, tinha como lema de vida "vivere pericolosamente". Dizia: "Prefiro um dia de leão a mil de ovelha".
Para além das idéias de Umberto Eco, observamos que o protofascista é movido pelo esquizo-paranoidismo. Por exemplo, em casa tende a ser uma pessoa de convivência harmônica, aparentemente equilibrada, mas quando está com seu grupo de iguais ideológicos, entra em "transe grupal", isto é, alucina um campo de batalha onde se oferece aos imperativos da gestalt do grupo, como um soldado, uma bestasfera agressiva, intriguenta, e suicida, enfim, abdica de sua identidade pela "causa" mítica. Alguém disse que tais pessoas são tomadas pelo "espírito de Torquemada" (inquisidor espanhol que mais matou em nome da 'santa inquisição') ou pelo "estilo Goering", o segundo homem após Hitler, que na intimidade era bonachão, amante das artes e da cultura, mas no trabalho colocou sua inteligência na invenção dos campos de concentração e no extermínio em massa dos não arianos. (Esse estado de "transe" poderia ser coletivo e vingativo; uma vez que é puramente passional poderia causar efeitos extremamente imprevisíveis, tanto homicidas como suicidas. É só dar uma olhada na história das guerras).
Uma vez terminada a ditadura militar, no Brasil, de clara orientação fascista, lamentavelmente ainda sobrou seus efeitos camuflados entre diversos grupos sociais, tal como aquele que ensaiou um movimento separatista no sul do Brasil. Na convivência cotidiana, os protofascismos estão expressos nos assédios morais, nos discursos que desqualificam o próximo, nos atos de injustiça, nas bisbilhotagens dos grampos telefônicos, nas intrigas calculadas para prejudicar um colega de trabalho ou estudo, nas falas e atos provocativos de qualquer espécie, etc.
Diante do obscurantismo de nossa época, da esclerose de idéias e de valores, da mediocridade de pensamentos que não consegue dar conta de entender a complexidade de nossa época e, sobretudo, a ausência de sabedoria em todos os setores da existência humana, só nos resta ficarmos de plantão para prevenirmos em relação ao protofascismo individual ou institucional.
Ou seja, no cenário mundial contemporâneo, há indícios de aparecimento de um novo fascismo (o protofascismo) conforme apontamos no início desse artigo, projetando uma nova Auchwitz, ou outros novos movimentos movidos pelo ódio, que obrigam os diferentes a pregar no peito ou na alma suas ideologias tresloucadas, símbolos e atitudes de intolerância e de opressão do mais forte sobre os fracos.
Infelizmente, o fascismo, nazismo e o racismo estão entre nós sob inocentes disfarces. (Já o terrorismo, pela sua própria natureza e modo cruel de expressão é de origem perversa e narcisista, gostando de se expor os seus efeitos e fetiches visando obter gozos "loucos" com o sofrimento dos outros).
sexta-feira, 6 de maio de 2011
DIA DAS CADELAS
Neste segundo domingo de maio, leia com a sua mãe!
"Todo mundo concorda que uma cadela [bitch] é sempre uma fêmea ... Também é geralmente concordado que uma cadela é agressiva, e consequentemente não feminina (aham).... Cadelas têm algumas ou todas as seguintes características.... Cadelas são agressivas, assertivas, dominadoras, arrogantes, mentes fortes, maliciosas, hostis, diretas, objetivas, cândidas, detestáveis, cascas grossas, teimosas, depravadas, autoritárias, competentes, competitivas, insistentes, barulhentas, independentes, obstinadas, exigentes, manipuladoras, egoístas, compulsivas, realizadoras, esmagadoras, ameaçadoras, assustadoras, ambiciosas, resistentes, impudentes, masculinas, impetuosas, e turbulentas. Entre outras coisas.... Cadelas são grandes, altas, fortes, largas, estrondosas, violentas, ásperas, deselegantes, desajeitadas, espaçosas, estridentes, feias. Cadelas preferem mover seus corpos livremente em vez de conter, refinar e confinar seus movimentos na maneira feminina apropriada.... Cadelas buscam suas identidades estritamente através delas mesmas e do que elas fazem. Elas são sujeitos, não objetos.... O que quer que elas façam, elas desejam um papel ativo e frequentemente são percebidas como dominantes. Muitas vezes elas dominam outras pessoas quando não estão disponíveis para elas funções que mais criativamente sublimem suas energias e utilizem suas capacidades. Mais frequentemente elas são acusadas de dominação quando fazem o que seria considerado natural por um homem...."
"A característica mais proeminente de toda Cadela é que elas rudemente violam concepções de condutas de papel sexual apropriadas. Elas violam-nas de modos diferentes, mas todas elas violam-nas. Suas atitudes com respeito a si mesmas e outras pessoas, suas orientações objetivas, seu estilo pessoal, sua aparência e modo de manejar seus corpos, todas chocam as pessoas e as fazem se sentirem incomodadas. Às vezes é consciente e às vezes não, mas pessoas geralmente se sentem inconfortáveis em volta de Cadelas. Elas consideram-nas aberrações. Elas acham o estilo delas perturbador.... Uma Cadela é brusca, direta, arrogante, às vezes egoísta. Ela não tem inclinação para os meios indiretos, sutis e misteriosos do “eterno feminino”. Ela desdenha da vida vicária considerada natural para as mulheres porque ela deseja viver uma vida própria. Nossa sociedade tem definido a humanidade como os machos, e as fêmeas como alguma coisa diferente dos machos. Deste modo, fêmeas poderiam ser humanas apenas ao viver por delegação através de um macho. Para ser capaz de viver, uma mulher tem de concordar em servir, honrar, e obedecer a um homem e o que ela obtém em troca, na melhor das hipóteses, é uma vida de sombra. Cadelas se recusam a servir, honrar e obedecer qualquer pessoa. Elas demandam serem seres humanos completos, não apenas sombras. Elas desejam ser igualmente fêmeas e seres humanos. Isto faz delas contradições sociais. A mera existência de Cadelas nega a idéia que a realidade de uma mulher deve acontecer através do relacionamento dela com um homem e contesta a crença que mulheres são crianças perpétuas que devem sempre estar sob orientação de alguém."
"Uma Cadela altamente competente muitas vezes deprecia a si mesma ao recusar reconhecer sua própria superioridade.... Cadelas estão entre os mais não celebrados dos não celebrados heróis desta sociedade. Elas são as pioneiras, a vanguarda, a ponta da lança. Quer elas desejem ser ou não este é o papel que elas servem exatamente por apenas existirem. Muitas não escolheriam ser as revolucionárias para a massa de mulheres por quem elas não têm sentimentos de irmandade, mas elas não podem evitar isso. Aquelas que violam os limites os estendem; ou causam a destruição do sistema.... Sua maior opressão psicológica não é uma crença que elas são inferiores, mas uma crença que elas não são.... Como a maior parte das mulheres elas foram ensinadas a odiar a si mesmas tanto quanto todas as mulheres. De maneiras diferentes e por motivos diferentes talvez, mas o efeito é similar. Internalização de um depreciador conceito próprio sempre resulta em uma grande quantidade de amargura e ressentimento. Esta raiva é geralmente ou voltada a si mesma - fazendo-a uma pessoa desagradável ou a outras mulheres - reforçando os clichês sociais a respeito delas. Somente com consciência política ela é direcionada à fonte - o sistema social.... Nós devemos ser fortes, nós devemos ser militantes, nós devemos ser perigosas. Nós devemos reconhecer que Cadela é Linda e que nós não temos nada a perder. Absolutamente nada."
Tradução livre de alguns trechos de "The Bitch Manifesto", publicado em 1969 por Joreen Freeman, escritora e ativista dos direitos da mulher nos Estados Unidos. Pois é, nem todo mundo considera mulheres - sejam mães ou não - bichinhos a serem agraciados com frases clichês e "lembranças"(!) em algumas datas do ano...
Texto completo em inglês disponível aqui.
"Todo mundo concorda que uma cadela [bitch] é sempre uma fêmea ... Também é geralmente concordado que uma cadela é agressiva, e consequentemente não feminina (aham).... Cadelas têm algumas ou todas as seguintes características.... Cadelas são agressivas, assertivas, dominadoras, arrogantes, mentes fortes, maliciosas, hostis, diretas, objetivas, cândidas, detestáveis, cascas grossas, teimosas, depravadas, autoritárias, competentes, competitivas, insistentes, barulhentas, independentes, obstinadas, exigentes, manipuladoras, egoístas, compulsivas, realizadoras, esmagadoras, ameaçadoras, assustadoras, ambiciosas, resistentes, impudentes, masculinas, impetuosas, e turbulentas. Entre outras coisas.... Cadelas são grandes, altas, fortes, largas, estrondosas, violentas, ásperas, deselegantes, desajeitadas, espaçosas, estridentes, feias. Cadelas preferem mover seus corpos livremente em vez de conter, refinar e confinar seus movimentos na maneira feminina apropriada.... Cadelas buscam suas identidades estritamente através delas mesmas e do que elas fazem. Elas são sujeitos, não objetos.... O que quer que elas façam, elas desejam um papel ativo e frequentemente são percebidas como dominantes. Muitas vezes elas dominam outras pessoas quando não estão disponíveis para elas funções que mais criativamente sublimem suas energias e utilizem suas capacidades. Mais frequentemente elas são acusadas de dominação quando fazem o que seria considerado natural por um homem...."
"A característica mais proeminente de toda Cadela é que elas rudemente violam concepções de condutas de papel sexual apropriadas. Elas violam-nas de modos diferentes, mas todas elas violam-nas. Suas atitudes com respeito a si mesmas e outras pessoas, suas orientações objetivas, seu estilo pessoal, sua aparência e modo de manejar seus corpos, todas chocam as pessoas e as fazem se sentirem incomodadas. Às vezes é consciente e às vezes não, mas pessoas geralmente se sentem inconfortáveis em volta de Cadelas. Elas consideram-nas aberrações. Elas acham o estilo delas perturbador.... Uma Cadela é brusca, direta, arrogante, às vezes egoísta. Ela não tem inclinação para os meios indiretos, sutis e misteriosos do “eterno feminino”. Ela desdenha da vida vicária considerada natural para as mulheres porque ela deseja viver uma vida própria. Nossa sociedade tem definido a humanidade como os machos, e as fêmeas como alguma coisa diferente dos machos. Deste modo, fêmeas poderiam ser humanas apenas ao viver por delegação através de um macho. Para ser capaz de viver, uma mulher tem de concordar em servir, honrar, e obedecer a um homem e o que ela obtém em troca, na melhor das hipóteses, é uma vida de sombra. Cadelas se recusam a servir, honrar e obedecer qualquer pessoa. Elas demandam serem seres humanos completos, não apenas sombras. Elas desejam ser igualmente fêmeas e seres humanos. Isto faz delas contradições sociais. A mera existência de Cadelas nega a idéia que a realidade de uma mulher deve acontecer através do relacionamento dela com um homem e contesta a crença que mulheres são crianças perpétuas que devem sempre estar sob orientação de alguém."
"Uma Cadela altamente competente muitas vezes deprecia a si mesma ao recusar reconhecer sua própria superioridade.... Cadelas estão entre os mais não celebrados dos não celebrados heróis desta sociedade. Elas são as pioneiras, a vanguarda, a ponta da lança. Quer elas desejem ser ou não este é o papel que elas servem exatamente por apenas existirem. Muitas não escolheriam ser as revolucionárias para a massa de mulheres por quem elas não têm sentimentos de irmandade, mas elas não podem evitar isso. Aquelas que violam os limites os estendem; ou causam a destruição do sistema.... Sua maior opressão psicológica não é uma crença que elas são inferiores, mas uma crença que elas não são.... Como a maior parte das mulheres elas foram ensinadas a odiar a si mesmas tanto quanto todas as mulheres. De maneiras diferentes e por motivos diferentes talvez, mas o efeito é similar. Internalização de um depreciador conceito próprio sempre resulta em uma grande quantidade de amargura e ressentimento. Esta raiva é geralmente ou voltada a si mesma - fazendo-a uma pessoa desagradável ou a outras mulheres - reforçando os clichês sociais a respeito delas. Somente com consciência política ela é direcionada à fonte - o sistema social.... Nós devemos ser fortes, nós devemos ser militantes, nós devemos ser perigosas. Nós devemos reconhecer que Cadela é Linda e que nós não temos nada a perder. Absolutamente nada."
Tradução livre de alguns trechos de "The Bitch Manifesto", publicado em 1969 por Joreen Freeman, escritora e ativista dos direitos da mulher nos Estados Unidos. Pois é, nem todo mundo considera mulheres - sejam mães ou não - bichinhos a serem agraciados com frases clichês e "lembranças"(!) em algumas datas do ano...
Texto completo em inglês disponível aqui.
quarta-feira, 4 de maio de 2011
A CONSCIÊNCIA E O OLHAR
Indagado por uma pesquisadora sobre o que gostaria de ver na televisão, um jovem engraxate da favela da Rocinha (Rio) responde: "eu". Isto é logo interpretado como uma reivindicação de espaço por parte de "meninos, como ele, na faixa dos 10 aos 18 anos, para os quais não existe nada em termos de teatro, lazer e cinema".
A interpretação encaminha claramente a resposta do entrevistado na direção dos interesses de programação da instituição televisiva a que se vincula a pesquisadora. Seria a manifestação do desejo de um telespectador insatisfeito com a oferta habitual de conteúdos da televisão. O atendimento à demanda ratificaria as linhas gerais do juízo de função psicossocial que a organização televisiva costuma fazer sobre si mesma.
Entretanto, para melhor entender a natureza do fenômeno da televisão, começaremos tomando ao pé da letra a resposta do pequeno engraxate: ele desejaria ver a si mesmo enquanto indivíduo concreto - não como índice de uma abstrata média de telespectadores infanto-juvenis - no vídeo. Desejaria ver a sua própria imagem refletida nesse moderno espelho eletrônico e por ele multiplicada com tal intensidade que alguma modificação viesse a ocorrer no seu estatuto social de engraxate da Rocinha ou que algo pudesse compensar uma provável auto-imagem negativa.
É tão simples assim. A fala sincera de uma criança é capaz de apontar com mais clareza para as raízes profundas da fascinação que sobre o homem contemporâneo exerce o "espelho" televisivo.
Trecho de SODRÉ, Muniz. "A Máquina de Narciso: Televisão, Indivíduo e Poder no Brasil". Cortez, 145 p.
A interpretação encaminha claramente a resposta do entrevistado na direção dos interesses de programação da instituição televisiva a que se vincula a pesquisadora. Seria a manifestação do desejo de um telespectador insatisfeito com a oferta habitual de conteúdos da televisão. O atendimento à demanda ratificaria as linhas gerais do juízo de função psicossocial que a organização televisiva costuma fazer sobre si mesma.
Entretanto, para melhor entender a natureza do fenômeno da televisão, começaremos tomando ao pé da letra a resposta do pequeno engraxate: ele desejaria ver a si mesmo enquanto indivíduo concreto - não como índice de uma abstrata média de telespectadores infanto-juvenis - no vídeo. Desejaria ver a sua própria imagem refletida nesse moderno espelho eletrônico e por ele multiplicada com tal intensidade que alguma modificação viesse a ocorrer no seu estatuto social de engraxate da Rocinha ou que algo pudesse compensar uma provável auto-imagem negativa.
É tão simples assim. A fala sincera de uma criança é capaz de apontar com mais clareza para as raízes profundas da fascinação que sobre o homem contemporâneo exerce o "espelho" televisivo.
Trecho de SODRÉ, Muniz. "A Máquina de Narciso: Televisão, Indivíduo e Poder no Brasil". Cortez, 145 p.
segunda-feira, 2 de maio de 2011
ÓPIO DO POVO OU CULTURA POPULAR?
André Corten, no Le Monde Diplomatique
Nunca a Igreja Universal do Reino de Deus obtivera tamanha audiência. Em 12 de outubro de 1995, dia da festa da padroeira do Brasil, através da rede brasileira mais importante de televisão, um bispo daquela Igreja tenta convencer seus adeptos sobre a idolatria dos católicos, chutando uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Com isso, pretende implicitamente denunciar a religiosidade de um Estado supostamente laico. Naquele dia, muitos brasileiros que jamais haviam prestado atenção à Igreja Universal do Reino de Deus, ficaram indignados com o sensacionalismo, ao mesmo tempo que muitos deles se sentiram secretamente orgulhosos dessa multinacional de cor brasileira.
Em setenta países do mundo, a Igreja Universal prega uma mesma mensagem, bem sucedida: "Pare de sofrer". Acuada pelas comissões parlamentares que investigam as seitas na França (1995) e na Bélgica (1997) - segundo esta última, ela seria "palco de inúmeros escândalos sexuais" -, a Igreja Universal do Reino de Deus está em franca expansão na América Latina e na África.
O futuro do cristianismo no Terceiro Mundo - Acuada por comissões parlamentares que investigam as seitas na Europa, a Igreja Universal está em franca expansão na América Latina e na África.
Assim, em uma cidade como Kinshasa, no Congo (ex-Zaire), completamente devastada pela miséria, o pentecostalismo também explodiu: "Jesus, Jesus!", urram nas igrejas os fiéis em transe, rolando pelo chão, inflamados por pastores carismáticos às vezes chamados de "vigaristas de Deus". Eles fazem esquecer a fome, a doença, a promiscuidade, desmascarando "os ataques de bruxaria a que é exposta qualquer vítima de uma decepção pessoal, de melancolia e de incredulidade", segundo o trecho de um sermão proferido na capital do Congo. Fazem os fiéis sonhar com a "prosperidade milagrosa". E se as igrejas invadem as ruas e, ao cair da noite, ecoam de todos os lados cânticos e gritos, também penetram pela televisão, pelos vídeocassetes e até pela Internet. "Se não forem tomadas medidas draconianas, dentro de dez anos a nação congolesa será constituída por uma geração de tarados e psicopatas", afirma o professor Mweze, decano das Faculdades Católicas de Kinshasa.
Além da "influência ameaçadora de um islamismo extremista, em expansão na Ásia e na África", a Igreja católica receia a "concorrência devoradora, nas grandes metrópoles do Terceiro Mundo, das Igrejas evangélicas, das seitas e de um "pentecostalismo desenfreado". E no entanto, perguntam teólogos protestantes, "não seria o pentecostalismo o futuro do cristianismo no Terceiro Mundo?" De qualquer maneira, tanto na África quanto na América Latina, fala-se cada vez mais em conversão. As Igrejas multiplicam-se com os mais diversos nomes, alguns deles conhecidos, como Assembléia de Deus ou Igreja de Deus, e outros menos, como Deus É Amor, Igreja Viva, Templo de Sion, Igreja da Vitória etc. O termo "pentecostal" raramente aparece nos nomes; utiliza-se quase sempre a palavra "evangélicas" para as designar.
O fator uniformidade - No entanto, perguntam teólogos protestantes, "não seria o pentecostalismo o futuro do cristianismo no Terceiro Mundo?"
O que se entende por pentecostalismo? Sua especificidade doutrinária (que nada tem de heterodoxo com relação às Igrejas instituídas) considera como atuais os dons do Espírito Santo (falar línguas, cura, profecia, exorcismo etc.) tais como são descritos na narrativa de Pentecostes dos "Atos dos Apóstolos". Nascido do protestantismo - e praticamente simultâneo - no início do século XX, nas Igrejas negras dos Estados Unidos, África do Sul, Brasil e Chile, o movimento Despertar passou por uma verdadeira explosão a partir da década de 80. Incluindo-se o grupo das Igrejas sionistas e apostólicas, abrange, na África do Sul, mais da metade da população, quando não passava de um quarto há vinte anos. Em países como o Chile e a Guatemala, atrai de 15 a 25% da população. Tanto na África quanto na América Latina, o número de adeptos deste novo proselitismo já ultrapassaria os cem milhões.
No sentido comum do termo, trata-se de "seitas", devido ao proselitismo e às exigências rigorosas exigidas de seus membros. Entretanto, o movimento não atende a vários outros critérios que caracterizam as seitas (principalmente o de caráter ultraminoritário) visto que, no sentido sociológico do termo, não há exclusividade (a fórmula "fora da Igreja, não há salvação" não se aplica: o que conta é a "conversão a Jesus") e o afastamento com relação ao "mundo" é cada vez menos acentuado. Seja ela o que for, essa crença extraordinária pode-se medir pela multiplicação das denominações, que atravessam fronteiras (Quênia, Uganda, Ruanda, Burundi, Tanzânia ou Brasil, Venezuela, Uruguai, Argentina). Aliás, o que chama atenção é a uniformidade. Como explicar a semelhança desses novos cultos em Ruanda, Zimbábue, Costa do Marfim, Bolívia, Brasil, Guatemala e Haiti? Efeito ou manifestação da globalização?
A crítica da "simplificação" - O termo "pentecostal" raramente aparece nos nomes das igrejas; utiliza-se quase sempre a palavra "evangélicas" para as designar.
Até o final da década de 80, circulava uma única explicação sobre esta explosão, que, nos meios católicos, é resolutamente denominada de "seitas". Faz-se referência ao Relatório Rockefeller de 1969 bem como ao Documento de Santa Fé, plataforma ideológica do presidente norte-americano Ronald Reagan em 1980. Em ambos os casos, trata-se do perigo de infiltração marxista na Igreja católica e dos perigos da teologia da libertação. Aliás, a hierarquia católica também se preocupa. Não é que, desde 1969, com o apoio discreto da CIA, a Universidade de Louvain, na Bélgica, tenta fundar um centro de ética cristã do desenvolvimento para controlar melhor os teólogos latino-americanos, em parte formados por ela mesma? Em conseqüência disso, e para contrabalançar a influência da teologia da libertação no mesmo terreno, a estratégia sugerida por esses relatórios consiste, principalmente, em apoiar as Igrejas evangélicas que começavam na época a se expandir. Há, portanto, um elemento de realidade na opinião obsessiva de que as Igrejas pentecostais constituem o "braço espiritual" do imperialismo norte-americano.
Em 1990, dois livros brilhantes - o de David Stoll, um norte-americano de espírito crítico, e o de David Martin, famoso sociólogo britânico, estudioso das religiões - põem um ponto final a essas simplificações. Se é verdade que Washington vê com bons olhos o desenvolvimento desses movimentos evangélicos - por introduzirem elementos da cultura norte-americana, contrabalançando a influência mais européia do catolicismo - não está definitivamente provado que a extraordinária expansão desses movimentos se deva a financiamento dos Estados Unidos. Nem está provado que tenham recebido qualquer apoio financeiro importante (mais importante, em todo o caso, que os destinados às diversas correntes católicas).
A "teologia da prosperidade" - O que se entende por pentecostalismo? Sua especificidade doutrinária considera como atuais os dons do Espírito Santo descritos nos "Atos dos Apóstolos".
Na realidade, muitas dessas Igrejas são totalmente autônomas. A expansão da Igreja Universal do Reino de Deus fornece mesmo um eloqüente contra-exemplo no que se refere à direção dos fluxos financeiros. No caso, é o dinheiro dos pobres brasileiros que permite a implantação da Igreja em todos os continentes (inclusive nos países do hemisfério Norte).
A homogeneização dos estilos de religiosidade e de doutrina, com base no modelo norte-americano, fornece um argumento mais sólido em favor da tese do "braço espiritual". Em qualquer lugar da África ou da América Latina, grandes cruzadas atraem massas impressionantes de adeptos ou de curiosos aos estádios, programas televisivos de "cura divina", às vezes transmitidos 24 horas sem parar, atingem camadas cada vez maiores da população, e, até nas cidades menores, encontram-se disponíveis nas prateleiras das livrarias evangélicas best-sellers de devoção, traduzidos de edições norte-americanas. Tudo é sempre associado aos nomes de alguns grandes televangelistas como Jimmy Swaggart, Pat Robertson, Kenneth Copeland, Reinhard Bonnke ou Paul Yonggi Cho, alguns dos quais lideram, nos Estados Unidos, a coalizão cristã e fazem parte do círculo íntimo dos presidentes.
Por outro lado, como explica Paul Gifford, que mostrou o parentesco do pentecostalismo com a extrema-direita sul-africana, suas principais doutrinas são parcialmente (e em diversos graus) de origem norte-americana, quer se trate da "teologia da prosperidade" - Deus não ama a pobreza (enriquecer não é um pecado) -, da libertação e da guerra espiritual - o que importa é expulsar Satã de nossos corpos, de nossos espíritos e de nossos países -, ou ainda do que Gifford chama de sionismo cristão.
A promessa do enriquecimento rápido - Na África, assim como na América Latina, o número de adeptos do pentecostalismo já ultrapassaria os cem milhões.
Tanto na África quanto na América Latina, isso justifica a referência constante a Israel nos sermões, assim como o convite feito aos fiéis para fazer peregrinações a Jerusalém, comparáveis às dos muçulmanos a Meca. Esta guerra espiritual de tom milenar toma também formas inesperadas: na Costa Rica, um famoso pastor pentecostalista sobrevoou o país "da fronteira de Nicarágua à do Panamá, e de Puntarenas a Limón, derramando óleo santo a cada seis quilômetros", para "libertar o território nacional de modo a facilitar a evangelização"!
Será que, à medida que o pentecostalismo clássico, o novo pentecostalismo ("neo-pentecostalismo") e as Igrejas do mesmo tipo adaptam os "pobres" às exigências do mercado, se estaria não somente diante do "braço espiritual" do imperialismo norte-americano, mas também do neoliberalismo triunfante? A julgar pela "máquina narrativa" do pentecostalismo, que divulga seu sucesso mundial, e que é dirigida aos indivíduos (em geral pobres) e não às camadas proletárias enquanto grupo, ele consegue efetivamente amortecer o choque dos programas de ajuste estrutural. E dá aos convertidos o que o Banco Mundial chama de votos, isto é o empowerment (a outorga de direitos) às mulheres e aos homens, a confiança em si mesmo e na capacidade de vencer a adversidade! Permite aos excluídos da sociedade não se deixarem esmagar e "renascer".
Inebriados pela emoção de cultos exuberantes, os crentes atravessam, sem protestar, as novas provas a que a globalização neoliberal os submete. Com a chave da promessa de um enriquecimento rápido, à imagem dos pastores que dirigem um 4x4... Dê e Deus lhe dará em dobro!
Emoção ou felicidade ilusória? - Como explicar a semelhança desses cultos no Zimbábue, Costa do Marfim, Bolívia, Brasil, Guatemala e Haiti? Efeito ou manifestação da globalização?
Novo "ópio do povo"? Convém não esquecer a primeira parte da famosa frase de Marx: "A religião é o suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo sem coração, e o espírito das condições sociais das quais se encontra excluído o espírito." Nessa perspectiva, é preciso ver que tanto o catolicismo quanto o protestantismo histórico passaram, nos últimos séculos, por uma crescente racionalização, um desencanto, a que Marcel Gauchet chama "uma saída da religião", já não oferecendo o calor nem o consolo. Ora, em contrapartida, novas necessidades religiosas afirmam-se no mundo contemporâneo: necessidade de emoção, do sagrado (principalmente pelo surgimento de forças aterrorizantes), de participação. Na América Latina, o pentecostalismo retoma a devoção e o misticismo popular bastante difundidos no século XIX, expressão popular "pagã" que a Igreja católica pretendeu disciplinar, a partir do último terço do século em questão, pelo chamado processo de "romanização".
Na África, o pentecostalismo alia-se ao profecismo - ao mesmo tempo abertura e resistência. Diante do crescimento da racionalização e da "virtualização", os oprimidos do mundo reivindicam o calor da emoção e o sentimento de estar junto; buscam cenários que atestem a atrocidade do mal que os oprime, encontrando nisso um sentido do sagrado. Felicidade ilusória? Muitas vezes, eles se convencem que a ilusão se encontra do lado dos que, não sem irresponsabilidade, prometem revoluções que acabam por oprimi-los ainda mais.
A fantasia de ganhar na loteria - Há um elemento de realidade na opinião obsessiva de que as Igrejas pentecostais constituem o "braço espiritual" do imperialismo norte-americano.
A "máquina narrativa" do pentecostalismo é dirigida aos indivíduos e não mobiliza camadas sociais. Ao mesmo tempo que mulheres e homens são separados, vivem em um universo holístico onde tudo está em tudo. Impregnados de uma cultura mediúnica - crêem na presença de espíritos -, continuam a se sentir próximos da natureza e de sua comunidade, que tentam recriar quando se desintegra. Em lugar algum o holístico se manifesta melhor do que no que se denomina de "cura divina". Uma nova abordagem para cada indivíduo de seu corpo, de sua relação com os outros, de suas necessidades espirituais, a "cura divina" não significa uma simples mudança de estado psicológico: ela é uma regeneração. Ela é conseguida por um "novo nascimento" (born again), uma maneira de o indivíduo se reencontrar, mas também de a comunidade se reconciliar. A transição da África do Sul para uma nova sociedade - ainda que falte fazer tudo no plano das desigualdades econômicas (cada vez mais explosivas) - fez-se por meio dessa concepção de "cura" típica do cristianismo sul-africano.
Os pentecostais irritam espontaneamente os intelectuais. Para estes, o misticismo não passa de gestos grotescos, e os fiéis, crentes atrasados e mesmo oportunistas. Os pentecostais pregam a hipermodernidade (principalmente por meio de redes transnacionais e pelo uso dos meios de comunicação) mas, ao mesmo tempo, parecem atrasados pela crença nos maus espíritos (transfigurados em manifestações de Satã). Mostram-se muito rigorosos (proibição de álcool, tabaco, sexualidade muito restrita etc) e ao mesmo tempo carnais (às vezes, os cultos assemelham-se razoavelmente a balés sensuais). Reivindicam a aplicação literal da Bíblia, adaptada à experiência de cada um. Apoiada em uma leitura literal sobre a prosperidade de Abraão abençoada por Deus, a "teologia da prosperidade", por exemplo, apresenta-se como a expressão da fantasia popular de ganhar na loteria; ao mesmo tempo, é a afirmação de um direito, o de escapar à humilhação, à miséria e à dependência. Dedicando-se a Cristo, o crente transforma-se em "vencedor".
Pregando a "guerra espiritual" - A "máquina narrativa" do pentecostalismo é dirigida a indivíduos: mulheres e homens vivem em um universo holístico onde tudo está em tudo.
Esta adaptação irrestrita aos sinais da globalização irritou durante muito tempo os antropólogos. Envoltos na autenticidade africana, os africanistas em particular negligenciaram esse fenômeno "americano". Foi preciso que a jovem geração de antropólogos, sociólogos e cientistas políticos (muitas vezes britânicos e franceses) se interessasse pelo assunto para que o fenômeno começasse a ser estudado. Na América Latina, brasileiros, chilenos e argentinos começaram antes, de forma que o fenômeno é hoje melhor conhecido.
A cultura do "mau gosto" e o estilo "supermercado da fé" do pentecostalismo, atualmente já são aceitos sem muito juízo de valor. Quer se goste ou não, percebe-se que se trata de uma expressão da cultura popular. Uma cultura que não quer ficar longe do que se passa no mundo - antes, uma cultura de retiro e de refúgio, o pentecostalismo tornou-se uma cultura de adaptação - mas que não renega suas tradições, muitas vezes vistas de fora como superstições.
O fenômeno espalha-se por todos os cantos do mundo. Fala-se muito de seu desenvolvimento na Ásia (mesmo na China), mas os estudos são ainda pouco numerosos. Ele é vivido como uma guerra total. "A década de 90 será definitivamente testemunha da guerra espiritual mais intensa que a Igreja terá conhecido em 2000 anos de história", ensinava-se nas escolas bíblicas. "Não há zona desmilitarizada!" Os mesmos rituais se observam ainda hoje, o mesmo uso da mídia, as mesmas "máquinas narrativas".
Reproduzindo a ideologia dominante - A cultura do "mau gosto" e o estilo "supermercado da fé" do pentecostalismo, atualmente já são aceitos sem muito juízo de valor ou preconceito.
No entanto, essa padronização está longe de nivelar as culturas. Ela é como a "chave inglesa", que permite apertar os parafusos de formas sempre diferentes. É universal no sentido de que não respeita fronteiras. Mas, uma vez apertados os parafusos, novas configurações surgem. Às vezes, identidades afirmam-se mais restritas que as identidades nacionais, sem serem étnicas, mas freqüentemente são maiores que as fronteiras.
O mais curioso é que não se trata aqui de uma geopolítica conduzida de cima para baixo (há milhares de denominações e mesmo as mais importantes são geralmente muito descentralizadas), mas de uma geopolítica conduzida a partir de baixo, por pequenos pastores "de pés descalços" (que tentam simplesmente, ampliando as relações com outros países, obter o respeito de sua família e de seus vizinhos).
Em sua convicção da "cura divina", os crentes inventam uma nova cultura em lugarejos abandonados, em todos os sentidos (inclusive no plano dos cuidados com a saúde). Pode-se muito bem falar de cultura popular, exceto de que ela não é reconhecida como tal pelas elites intelectuais. Mas trata-se de uma cultura de resistência que reproduz, sem o saber, a ideologia dominante. Neste sentido, o pentecostalismo é mesmo o novo ópio do povo. Assim mesmo, é preciso lembrar o contexto em que Marx utilizou a expressão: é a emoção em um mundo sem emoção.
DICAS DO BLOG (em ordem alfabética)
- CAVALCANTI, H.B. Marx, Religião e Política: O Protestantismo Conservador Norte-Americano como Ópio do Povo. Artigo científico publicado na Revista Dados. Disponível aqui.
- MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. Ed Loyola, 245 p. Disponível aqui.
- WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ed. Companhia das Letras, 360 p. Disponível aqui.
- WESTMEIER, Karl-Wilhelm. Protestant Pentecostalism in Latin America: A Study in The Dynamics of Missions. Associated University Presses, 160 p. Disponível aqui.
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