O texto a seguir é o primeiro capítulo de um dos melhores livros de filosofia que já li, Dialética do concreto, do tcheco Karel Kosik. Obra primorosa, publicada em 1963 e reeditada desde então, parece que foi escrita ontem...
A dialética trata da “coisa em si”.
Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa, com isto não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana.
A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado no mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.
No trato prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas – o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.
Todavia, a “existência real” e as formas fenomênicas da realidade – que se reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada práxis histórica, como conjunto de representações ou categorias do “pensamento comum” (que apenas por “hábito bárbaro” são consideradas conceitos) – são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com seu núcleo interno e essencial e o seu conceito correspondente. Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade.
Por este motivo Marx pôde escrever que aqueles que efetivamente determinam as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n’água, no mundo das formas fenomênicas desligadas da sua conexão interna e absolutamente incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório, nada vêem de misterioso; e seu julgamento não se escandaliza nem um pouco diante da inversão do racional e irracional. A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue. Nesta práxis se forma tanto o determinado ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e com que tem de se avir na vida cotidiana.
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A ele pertencem:
- O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais;
- O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade);
- O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento;
- O mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens.
O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário. A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.
O mundo fenomênico tem a sua estrutura, uma ordem própria, uma legalidade própria que pode ser revelada e descrita. Mas a estrutura deste mundo fenomênico ainda não capta a relação entre o mundo fenomênico e a essência. Se a essência não se manifestasse absolutamente no mundo fenomênico, o mundo da realidade se distinguiria radical e essencialmente do mundo do fenômeno: em tal caso, o mundo da realidade seria para o homem o “outro mundo” (platonismo, cristianismo), e o único mundo ao alcance do homem seria o mundo dos fenômenos. O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto: os fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente.
Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde.Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível. No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. Por conseguinte, a diferença que separa fenômeno e essência equivale à diferença entre irreal e real, ou entre duas ordens diversas de realidade? A essência é mais real do que o fenômeno?
A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso, a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados e, em tal isolamento, sejam considerados com ao única ou “autêntica” realidade.
O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta imediatamente, primeiro e com maior freqüência.
Mas porque a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Porque são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Porque a “coisa em si” se oculta, foge à percepção imediata? De que gênero de ocultação se trata?
Tal ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido com estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O homem faz um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um modo qualquer, presssupõe a existência da verdade, porque possui uma segura consciência da existência da “coisa em si”. Por que, então, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que então, para captá-la ele tem que fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção imediata não se captar “a coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá talvez do fato de que a estrutura da coisa pertence a outra ordem de realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui outra realidade existente por trás dos fenômenos?
Como a essência – ao contrário dos fenômenos – não se manifesta imediatamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem que existir a ciência e a filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.[1]
O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As várias tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a coisa em si, o ser da coisa, não se manifesta direta e imediatamente. Neste sentido, a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente.
O conceito da coisa é a compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.[2]
O conhecimento se realiza como separação entre fenômeno e essência, do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. Neste processo, o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é elemento constitutivo do conhecimento filosófico – com efeito, sem decomposição não há conhecimento – demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação se baseia na decomposição do todo.
O próprio fato de que o pensamento se move naturalmente numa direção oposta à natureza da realidade, que isola e “mata”, e de que neste movimento natural se assenta a tendência à abstração, não constitui uma particularidade imanente do pensamento mas emana de sua função prática. Todo agir é “unilateral”,[3] já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a execução de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.
O impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos, embora para a consciência ingênua esta percepção seja muito menos evidente e muitas vezes mais imatura. O “horizonte” – obscuramente intuído – de uma “realidade indeterminada” como todo constitui o pano de fundo inevitável de cada ação e cada pensamento, embora ele seja inconsciente para a consciência ingênua.
Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis cotidiana cria “o pensamento comum” – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao homem na práxis fetichizada, no tráfico e na manipulação, não é o mundo real, embora tenha a “consistência” e a “validez” do mundo real: é “o mundo da aparência” (Marx). A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas.
A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a “cisão do único”, é o modo pelo qual o pensamento capta a “coisa em si”. A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isto, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem que destruir a aparente independência do mundo dos contatos imediatos de cada dia.
O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real;por trás da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência.[4] O que confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem que efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando seu caráter mediato e apresentando, contra sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado.
A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade.[5]
O pensamento acriticamente reflexivo[6] coloca imediatamente – e portanto sem uma análise dialética – em relação causal as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazendo passar tal forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das idéias. Como os homens tomaram consciência de seu tempo (e, portanto, já o viveram, avaliaram, criticaram e compreenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do “ceticismo pequeno-burguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise “científica” daquelas idéias ao procurar para elas um equivalente econômico, social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas uma dupla mistificação: a subversão do mundo da aparência (das idéias fixadas) tem suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria materialista deve iniciar a análise com a questão: porque os homens tomaram consciência de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos homens nestas categorias? Fazendo esta indagação, o materialista prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das idéias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a idéia.
Entretanto, a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que o mundo possa ser explicado “criticamente”, cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da “práxis” revolucionária. Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade.
O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura. O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos “reais” fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma variante naturalisticamente entendida das idéias platônicas; ao invés, é um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem.
Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.
Portanto, a destruição da pseudoconcreticidade se efetua como: 1) crítica revolucionária da práxis da humanidade, que coincide com o devenir humano do homem, com o processo de “humanização do homem” (A. Kolman), do qual as revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”; 3) realizações da verdade e a criação da realidade humana em um processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação própria, espiritual, como indivíduo social-histórico. Cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem que se formar uma cultura e viver a sua vida.
Não podemos, por conseguinte, considerar a destruição da pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o descobrimento de uma realidade que por trás dele se escondia, pronta e acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem e a redução do homem ao nível da práxis utilitária. A destruição da pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão da realidade, da sua concreticidade. As correntes idealísticas absolutizaram ora o sujeito, tratando do problema de como encarar a realidade a fim de que ela fosse concreta ou bela, ora o objeto, e supuseram que a realidade é tanto mais real quanto mais perfeitamente dela se expulsa o sujeito. Ao contrário delas, na destruição materialista da pseudoconcreticidade, a liberalização do “sujeito” (vale dizer, a visão concreta da realidade, ao invés da “intuição fetichista”) coincide com a liberalização do “objeto” (criação do ambiente humano como fato humano dotado de condições de transparente racionalidade), posto que a realidade social dos homens se cria como união dialética de sujeito e objeto.
A palavra de ordem ad fontes, que ressoa periodicamente como reação contra a pseudoconcreticidade nas suas mais variadas manifestações, assim como a regra metodológica da análise positivista – “libertar-se dos preconceitos” – encontram o seu fundamento e a sua justificação na destruição materialista da pseudoconcreticidade. Todavia, o próprio retorno “às fontes” apresenta dois aspectos completamente distintos. Sob o primeiro aspecto ele se apresenta como uma douta e humanisticamente erudita crítica das fontes, como um exame dos arquivos e das fontes antigas, das quais cumpre deduzir a realidade autêntica. Sob o aspecto mais profundo e mais significativo, que aos olhos da douta erudição se afigura barbárie (como o testemunhas as reações contra Shakespeare e Rousseau) a palavra de ordem ad fontes significa crítica da civilização e da cultura; significa tentativa – romântica ou revolucionária – de descobrir por trás dos produtos e das criações a atividade e operosidade produtiva, de encontrar “a autêntica realidade” do homem concreto por trás da realidade reificada da cultura dominante, de desvendar o autêntico objeto histórico sob as estratificações das convenções fixadas.
NOTAS
[1] “...Se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria a ciência? (Marx a Engels, carta de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e essência coincidissem diretamente.” Marx, O Capital, III, séc.VII, cap. XLVIII, III. (Tr.ital. Roma, Rinascita, 1959, III, a, Pág.228). “Para as formas fenomênicas... a diferença da relação essencial ... vale exatamente aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e para o fundamento oculto por detrás delas. As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência.” Marx, O Capital, I, seç. VI, cap. XVII. (Tr. Ital. I, 2, pág. 259).
[2] Alguns filósofos (por ex. Granger, L’ancienne et la nouvelle économie, “Esprit”, 1956, pág. 5515) atribuem apenas a Hegel o “método da abstração” e “do conceito”. Na realidade, este é o único caminho da filosofia para chegar à estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.
[3] No plano desta “unilateralidade” prática, Marx, Hegel e Goethe se colocam contra a universalidade fictícia dos românticos.
[4] O Capital, de Marx, é construído metodologicamente sobre a distinção entre falsa consciência e compreensão real da coisa, de modo que as categorias principais da compreensão da realidade investigada se apresentam aos pares: fenômeno – essência; mundo da aparência – mundo real; aparência externa dos fenômenos – lei dos fenômenos; existência positiva – núcleo interno, essencial, oculto; movimento visível – movimento real interno; representação – conceito; falsa consciência – consciência real; sistematização doutrinária das representações (“ideologia”) – teoria e ciência.
[5] “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado, as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de Walhens, L’idée phénomenologique d’intentionalité, in Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28. Esta definição de um autor não-marxista constitui um testemunho sintomático da problemática filosófica do século XX, para a qual a destruição da pseudoconcreticidade e das mais variadas formas de alienação se transformou em uma das questões essenciais. Os filósofos se distinguem, entre si, pelo modo como a resolvem, mas a problemática comum já é dada, tanto para o positivismo (a luta de Carnap e Neurath contra a metafísica real ou suposta), como também para a fenomenologia e o existencialismo.É sintomático que o sentido autêntico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do século XX só tenham sido descobertos por um filósofo de orientação marxista, cuja obra constitui a primeira tentativa séria de um confronto entre a fenomenologia e a filosofia materialista. O autor define expressivamente o caráter paradoxal e rico em contrastes da destruição fenomenológica da pseudoconcreticidade: “O mundo da aparência havia abarcado, na linguagem ordinária, todo o sentido da noção de realidade... Desde que as aparências aí se impuseram a título de mundo real, sua eliminação se apresentava como uma colocação entre parênteses deste mundo ... e a realidade autêntica à que se retornava tomava paradoxalmente a forma de irrealidade de uma consciência pura.” Tran-Duc-Thao. Phenomenologique et materialisme dialectique, Paris, 1951, págs. 223-24.
[6] Hegel assim define o pensamento reflexivo: “A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de uma para a outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a unidade que as compenetra.” Hegel, Phil. der Religion, I, pág. 126 (Werke, Vol. XI). Ver também Marx, Grundrisse, pág. 10.
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