"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." Theodor W. Adorno
sábado, 29 de junho de 2013
sexta-feira, 28 de junho de 2013
PROTESTO E COOPTAÇÃO
Manifestantes no cercadinho do Palácio Branco, num sábado ã tarde. Foto: Altino Machado... |
Por Marilena Chauí, no blog da Boitempo
Os
manifestantes, simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas
afirmações explícitas contra a política, realizaram um evento político:
disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos
municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder Legislativo nos
três níveis
O que segue
não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas
focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora
algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às
manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da
tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com
relação à institucionalidade política como ponto de chegada), bem como o
tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e
celebração final, com criminalização dos “vândalos”), permitam algumas
considerações mais gerais a título de conclusão.
O estopim
das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte
público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre
(MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de
partidos de esquerda. Em sua reivindicação específica, o movimento foi
vitorioso sob dois aspectos. Conseguiu a redução da tarifa e definiu a
questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos, e
portanto afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e
defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do
ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.
O inferno urbano
Não foram
poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade
diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que
vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país
(desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções
bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são
justas, mas a perplexidade, não, desde que voltemos nosso olhar para um
ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida
urbana nas grandes metrópoles brasileiras. Quais os traços mais
marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e, sob certos
aspectos, extensíveis às demais cidades? Resumidamente, podemos dizer
que são os seguintes:
- explosão do uso do automóvel individual. A mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;
- explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável, além de não contar com redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
- aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e a consequente expansão das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Ermínia Maricato, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população; em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade);
- o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero. No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 quilômetros de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 quilômetros. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; à insuficiência quantitativa para atender à demanda, somam-se atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTM, também de responsabilidade do governo estadual. No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto feitos para transportar coisas, e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas interbairros, de modo que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.
Em resumo:
definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as
montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de
transporte coletivo dominam a cidade sem assumir nenhuma
responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.
A tradição paulistana de lutas
Recordando: a
cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem
uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas
condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando,
desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e
trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda
Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês,
os sabots, donde a palavra francesa sabotage,
sabotagem – para quebrar as máquinas). Entretanto, não foi esse o
caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por
quê. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a
contestação, em vez de politizá-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.
Recordando:
nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos,
associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um
papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos
seguintes motivos: introdução da ideia de direitos sociais, econômicos e
culturais para além dos direitos civis liberais; afirmação da
capacidade auto-organizativa da sociedade; introdução da prática da
democracia participativa como condição da democracia representativa a
ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos,
associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram
políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e
rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores
institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:
- fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços), dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;
- refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;
- surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada que, por isso, ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e, por isso mesmo, é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito interpessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se
contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da
tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal,
sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas,
diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram uma forma de
convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de
manifestantes nas ruas.
O pensamento mágico
A convocação
foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração desse tipo
de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de
massa, é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas
redes, que possui algumas características que o aproximam dos
procedimentos da mídia:
- é indiferenciado: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;
- tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou à recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York, que, antes de se dissolver, tornou-se um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois, com o fato de as manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
- assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários, e portanto não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, desse ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
- a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de
chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a
recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é constituído por
militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do
movimento, evitou a referência aos partidos de origem. Por isso foi às
ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos, e em São
Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários
compareceram às ruas foram execrados, espancados e expulsos como
oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. A crítica
às instituições políticas não é infundada, possui base concreta:
- no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
- no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos Legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
- a crítica ao PT: de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas, e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos vinte anos).
Isso, porém,
embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada
pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato,
a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse
modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura
autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema
político-partidário montado pelos casuísmos da ditadura. Em lugar de
lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a
legitimidade do partido político como instituição republicana e
democrática. Assim, sob esse aspecto, apesar do uso das redes sociais e
da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à
mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de
que os partidos são corruptos por essência. Como se sabe, essa posição
dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio
das funções do espaço público, como se não fossem empresas capitalistas
movidas por interesses privados. Dessa maneira, a recusa dos meios de
comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não
impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média
conservadora difundida pela mídia a respeito da ética. De fato, a
maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de
ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado
para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a
ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não
depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos, e sim
da qualidade das instituições públicas enquanto instituições
republicanas. A ética da política, no nosso caso, depende de uma
profunda reforma política que crie instituições democráticas
republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela
ditadura, que força os partidos políticos a fazer coalizões absurdas se
quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de
seus programas e abrem as comportas para a corrupção. Em lugar da
ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência,
a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz
de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a
participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos
direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.
Ora, ao
entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado o
fato de que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro
distante, quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por
enquanto, numa república democrática (ao contrário de numa ditadura),
ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros
para as funções governamentais para a concretização dos objetivos e das
metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se
informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das
mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido
político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem
sem partido. Resultado: não teve quadros para montar o governo nem
diretrizes e metas coerentes e deu feição autocrática ao governo, isto
é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.
Além disso,
parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da
classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais, e,
portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos
manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu
país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais
do nazismo contra os partidos políticos.
Assim, em
lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção
democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se
ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção.
Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem
surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens
militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e
ensanguentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL.
Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos
1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.
Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center
e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e
minisséries que usarão essa ideia para incrementar o programa High School Brasil,
da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas
afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um
evento político: disseram ‘não’ ao que aí está, contestando as ações dos
Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do
Poder Legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor
corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das
palavras e do discurso conservador por meio da inversão das
significações e da irreverência, indicando uma nova possibilidade de
práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um
filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente
porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações
merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e
destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.
Comecemos
por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude,
como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe
social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações
das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos
manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a
violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes.
Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens
manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm ideia de que
suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da
densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares
para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de
classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um
automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa
idade) têm ideia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não
é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado
de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo
isso à política corrupta, como é típico da classe média?
Essas
indagações não são gratuitas nem expressão de má vontade a respeito das
manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.
Motivo
político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das
manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será
possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta
algumas perguntas:
- estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte, que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
- estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
- estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
- estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?
Lastro
histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos
populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero
para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a
tarifa precisava ser subsidiada pela prefeitura e que não faria o
subsídio implicar cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e
assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu
governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da
CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de
transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois
disso, em inúmeras audiências públicas, apresentou todos os dados e
planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de
transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou
plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o
subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança
tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial e territorial
seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o
subsídio junto com outros recursos da prefeitura. Na medida que os mais
ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o
transporte público e, como empresários, têm funcionários usuários desse
mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é
base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do
subsídio viesse do novo IPTU.
Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout
das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas manifestações contra o
“totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade
“negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. A
Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia
participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer
mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro
histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência
de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça
imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
domingo, 23 de junho de 2013
APONTAMENTOS PARA O DIA SEGUINTE
A manifestação denominada Dia do Basta, que reuniu uma multidão em Rio Branco, no último sábado, é um ato histórico em si mesmo.
Há muito tempo os espaços da cidade não eram preenchidos espontaneamente com tanta pluralidade, tanta diversidade de idéias.
Reunir essa balbúrdia em um lugar só é possível quando há interesses mínimos em comum.
Por outro lado, não é de hoje que comoções sociais de larga escala costumam tocar apenas tangencialmente as suas causas. Zygmunt Bauman, um dos teóricos da pós-modernidade, credita esse fenômeno à substituição das referências políticas tradicionais por grupos dispersos de pertencimento: rappers, punks, gays, feministas etc.
Segundo Bauman, como cada um desses grupos tem agendas e interesses próprios, sua manifestação coletiva, nas raras vezes em que ocorre, não atua na esfera do rompimento da ordem. Atua em reivindicações específicas para cada grupo - portanto, atua na esfera da afirmação da ordem.
A despeito de Bauman, ouso afirmar que eventos como o Dia do Basta, em Rio Branco, e outros, marcados por uma miríade aparentemente desconexa de reivindicações de todo tipo, aponta precisamente para uma identificação coletiva, em um nível que poderíamos chamar de sintomatologia da perda.
Há uma intersubjetividade latente, subjacente. Inconsciente.
Algo liga os manifestantes, e esse algo é o desgaste das fórmulas políticas tradicionais. Como não consegue ultrapassar certos anteparos ideológicos que protegem a existência - e a irritante persistência - dessas fórmulas, o protesto se volta contra a sua manifestação direta: a gestão pública.
Além de reivindicar pautas pontuais para tribos e guetos (embora muitas dessas pautas estejam também nas manifestações), protesta-se ainda contra os sintomas mais claros da inversão do caráter público, coletivo, da vontade social. Esses sintomas variam de projetos de lei que viabilizam ou facilitam o furto do patrimônio público (PEC 37, cartéis de empresas de ônibus, falta de clareza nas prioridades orçamentárias etc) até atos administrativos viciados ou claramente definidos em favor de apadrinhados (soltura dos presos da operação G7, ausência de democratização dos canais públicos de comunicação, empregabilidade sem critérios para aliados etc).
Nesse sentido, é notável que, no caso de Rio Branco, nenhuma das reivindicações dirigidas ao Estado tenha sido clara, no sentido da sua operacionalidade imediata. Vejamos:
. O fim da tramitação da PEC 37 depende de um acordo entre os partidos no Congresso Nacional - partidos cuja legitimidade política os próprios manifestantes questionam.
. A prisão dos membros do G7 não pode ser atendida de pronto pelo Judiciário - é preciso que o Supremo Tribunal Federal (STF), para onde o processo foi deslocado, coloque o tema em pauta e considere, em caráter liminar, que os réus oferecem algum perigo às investigações (evidentemente, advogados reagirão).
. A redução e a transparência dos gastos públicos foi contemplada, virtualmente, pela presidente Dilma Rousseff, em pronunciamento de rede nacional de rádio e televisão. Porém, se essas medidas serão satisfatórias para os manifestantes, é outra história.
Uma nota paralela: em 2000, FHC conseguiu aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) embalado por protestos parecidos. A lei não impediu a apropriação indevida do erário - mas calou os manifestantes, na época.
Houve ainda protestos dirigidos à própria Dilma Rousseff, que não está envolvida em qualquer denúncia de desvio de recursos - em que pese a destinação de verbas bilionárias, via financiamentos públicos, para a construção e reforma de estádios de futebol - leia-se: empreiteiras; leia-se: doações de campanha - até 2014.
Altino Machado, Letícia Mamed, Armando Pompermaier, Lindomar Padilha e outros acham que o protesto principal, no caso específico do Acre, foi contra o governo Tião Viana.
Concordo em parte, mas somente porque Tião e Jorge Viana, Aníbal Diniz, Dilma Rousseff, Lula, Petecão, Flaviano Melo, Antonia Lucia, Gladson Cameli e outros estão imersos precisamente no sistema que está em crise. Todas as ações desses e de outros indivíduos indicam apenas o seu pertencimento inegável a uma ordem social que manejam e na qual se movem com muita perspicácia. Esta ordem se alimenta de ciclos intermináveis de crises e substituições, de tal forma que, na maioria dos sites de informação, é possível ver matérias de políticos de oposição prestando solidariedade aos manifestantes.
Esta solidariedade, sabem eles, pode render votos em 2014.
São como os vermes: alimentam-se das carcaças dos mortos.
O movimento, portanto, foi sábio em rechaçar os partidos nesse momento. É uma tentativa espontânea de encontrar a verdadeira causa do problema. O mecanismo escondido pelas aparências. O motivo pelo qual a política representativa, com suas siglas e tramitações infinitas, virou um cartel de vigaristas e parasitas.
Por essa exata razão não há clareza nas reivindicações. Não é um subproduto da despolitização do brasileiro, como afirmam alguns vanguardistas que ainda não entenderam a dimensão do problema em andamento. Nos fenômenos da fala, titubeia-se quando dois pensamentos opostos e simultâneos lutam na mente. Na política, vacila-se diante da incoerência de reivindicar a quem, ao mesmo tempo, se rechaça.
O fato desse mecanismo, a reivindicação dirigida a quem se desconfia, ser o único aceito pelas instituições dominantes, permanece no momento intocado. Quem o desafia, nos protestos ou no cotidiano, é imediatamente marginalizado ou mesmo eliminado.
Em breve, a continuar o conflito nas ruas, e se não for cooptado por alguma agenda legislativa, esse pequeno detalhe deve ser confrontado. O resultado desse confronto definirá o vencedor.
Perde tempo quem quem restringe essa luta apenas ao governo do PT. A luta é por uma nova forma de fazer política, uma forma que ainda não existe, que é apenas intuída, mas que com certeza não inclui negociar com o Estado para ver meia dúzia de reivindicações atendidas - certamente com algumas mudanças no caminho, durante o processo de tramitação legislativa (como já citado isso aconteceu em 2000, com a LRF, mas vem acontecendo sistematicamente em nosso país: com os lineamentos da ECO Rio 92, com a Constituição, com a derrubada (?) do Collor, com a redução das passagens de ônibus em São Paulo etc).
A crise, adaptando toscamente uma expressão do István Meszáros, é estrutural - e por isso inclui o Tião Viana. O PT, assim como todas as siglas que disputam espaço no sistema político brasileiro e mundial, à direita e à esquerda, integra organicamente o sistema em crise.
O mesmo vale para intelectuais de esquerda que defendem a presença de partidos nessa onda mundial de protestos. A maioria se vale de leituras conjunturais derivadas de seus próprios partidos, surgidos de facções inicialmente minoritárias da II Internacional, que propunha avançar por dentro do sistema político mundial com reformas favoráveis à classe trabalhadora.
A história, que não é linear nem estática, demonstrou que essa agenda, em períodos de crise estrutural, acentua as contradições e promove o conformismo e a cooptação - caso do Acre.
Intelectuais que defendem a presença de partidos não entenderam que o avanço do capitalismo colocou em xeque o próprio capitalismo, a sua representatividade social. É isso, ou a expressão política disso, que se contesta nas ruas.
Por isso mesmo o PT, ao gerir a máquina pública acreana, não foi capaz de unificar "todos os povos do mundo num só ideal e num só pensamento de unidade socialista", como escreveu Chico Mendes em seu trágico bilhete endereçado aos jovens do ano de 2120. A tentativa de construir uma identidade coletiva baseada no passado específico do Acre, esforço dos Vianas desde 1999, é o oposto simétrico disso. É um auto-engano, mas um auto-engano sintomático.
Como o mesmo fenômeno ocorreu no Brasil e em outras partes do mundo, escancarando o caminho para a privatização final da esfera política - para manter a governabilidade, para garantir as doações de campanha etc - ameaçou-se operar o fim da política. Daí a agenda dos protestos: quando os interesses públicos se tornaram privados? Como fazer os interesses públicos serem válidos? Como fazer outra política?
Acredito que a força própria das manifestações, as conexões naturais entre causas e efeitos para quem sofre as violências do cotidiano, vão demonstrar a inviabilidade que é pedir moralização administrativa ou mecanismos jurídicos de controle da corrupção a quem se beneficia de tudo isso. Nesse sentido, o movimento estudantil tem o papel extremamente importante de fazer as conexões entre causas e efeitos, entre as origens materiais dessas e de outras práticas para explicar como a ideologia do controle da sociedade sobre as instituições é uma prática de controle das instituições sobre a sociedade.
Se estas associações ficarem claras, será possível entender por que a redução de 20 centavos na passagem de ônibus, em São Paulo, é uma faísca em um oceano de gasolina.
Pode-se argumentar que o Acre é muito pequeno para tais debates complexos e que, na verdade, precisamos de desenvolvimento e educação para que possamos ser responsáveis em nossos desejos. Este é um dos discursos ideológicos que virão. Eles buscam desativar as ameaças potenciais.
Um bom antídoto é pensar que o Acre não existe. A Amazônia não existe. O Brasil não existe. Nenhum país, nenhum Estado, nenhum município, em qualquer quadrante do mundo, existe. Tudo é construído. simbolizado, narrado. Nós é que criamos os significados, como considerar que há uma só democracia, que o único meio de mudanças é negociar com as autoridades etc.
No entanto, todos os homens, de todos os lugares e de todos os tempos, apenas falam línguas diversas e vestem roupas diferentes. Essa perspectiva deve ser lembrada e celebrada: não estamos sós. Enquanto protestamos, em outros lugares do mundo outros protestam também, pelas mesmas razões - apesar de, em muitos casos, se voltarem apenas contra seus governos em busca de outros mais eficazes. Em muitos outros lugares, alguns também repintam os palácios que picharam.
Construir o mundo, criar novos símbolos. Esta é a tarefa do tempo presente.
V DE VINGANÇA - A REVISTA
Não é só mais um filme bonitinho |
V de Vingança (versão em português para V for Vendetta) é uma série de romances gráficos escrita por Alan Moore e em grande parte desenhada por David Lloyd.
Foi publicada originalmente entre 1982 e 1983 em preto e branco pela editora britânica Warrior, mas não chegou a ser finalizada. Em 1988, incentivados pela DC Comics, Allan Moore e David Lloyd retomaram a série e a concluíram com uma edição colorida. A série completa foi republicada nos EUA pelo selo Vertigo da DC e no Reino Unido pela Titan Books. No Brasil, foi publicada em 1989 em cinco edições em cores pela Editora Globo e mais tarde pela Via Lettera, em dois volumes em preto e branco; em 2006 teve uma edição especial pela Panini, em volume único, colorido e com material extra. Atendendo a pedidos, em 2012 a Panini relançou esta edição especial.
Sinopse: Após
um aparente hecatombe nuclear, a Inglaterra mergulha no caos. Depois de
algum tempo, a ordem volta a se estabelecer, mas de forma ditatorial.
Um governo fascista caça os direitos civis, impõe a censura e rechaça
qualquer tentativa de oposição ao que impõe.
O medo profetizado no século XX, do
estado vigiando o cidadão e tolhendo sua liberdade de expressão, se
materializa nessa Inglaterra onde o estado tem olhos, ouvidos, nariz e
dedos.
Como já ocorreu na história real do
mundo, nessa ficção os ditadores também têm seus campos de concentração,
nos quais os não adequados à nova ordem são interrogados, torturados,
mortos e, algumas vezes, submetidos aos mais asquerosos experimentos.
Eis que mesmo nesse regime
totalitário/fascista uma voz se levanta e ousa proclamar a possibilidade
de uma outra forma de vida, na qual não haja regras e leis arbitrárias,
em que a liberdade e as individualidades sejam valorizadas e conduzam a
um novo cenário, um personagem designado simplesmente “V” é o porta-voz
dessa idéia.
Vitima de um dos abomináveis campos de
concentração, “V” esteve no fundo do poço, e sem ter mais para onde
cair, a única opção era se erguer.
Aos poucos, se faz claro que “V”, mais que uma pessoa, representa um conceito, uma idéia.
Para baixar, clique aqui.
quinta-feira, 20 de junho de 2013
DILUIR AS REIVINDICAÇÕES PARA NÃO PAGAR A CONTA
Por Yuri Franco, no Viomundo
Nos últimos dias o Brasil tem sido sacudido por manifestações em diversas cidades. Como centelha inicial está a questão do transporte público, causadas pelo aumento da tarifa do transporte coletivo em várias cidades. Esta é uma reivindicação justíssima, e inclusive a revogação dos aumentos é apenas uma pauta imediata. Há uma discussão antiga e profunda sobre a questão do financiamento do transporte coletivo, que hoje serve basicamente como ferramenta de lucro de alguns empresários.
Ao irem às ruas, surgiram também críticas decorrentes da violência policial. A Polícia Militar, como a conhecemos hoje, foi construída ao longo do tempo para ser exatamente isso: instrumento de controle da população e de defesa da propriedade. Isso também não é exclusividade do Brasil.
Recentemente, ao ser questionado sobre a repressão violenta da polícia aos manifestantes na Turquia, o primeiro ministro turco respondeu que sua polícia utilizava os mesmos mecanismos repressivos que a polícia dos Estados Unidos e dos países europeus. Nesse ponto, ele tinha razão.
Infelizmente a mídia e a direita (o que é um pleonasmo), após inicialmente chamarem os manifestantes de vândalos e baderneiros, resolveram fazer uma virada espetacular de opinião e passaram a apoiá-los.
O problema é que esse apoio tem um objetivo muito claro: diluir as bandeiras legítimas dos movimentos ao mesmo tempo em que tentam inserir as suas pautas reacionárias e tentam capitalizar o movimento para os seus objetivos sórdidos.
Esta virada foi sendo colocada quando a seguinte palavras de ordem foi sendo posta: “não é por centavos”. A partir do momento em que a pauta principal e inicial do movimento foi sendo escanteada, abriu-se espaço para que todo tipo de pauta fosse incluída: “contra isso tudo que está aí”, “contra a corrupção” de maneira vaga e despolitizada, “contra os impostos”, e até as mais recentes que já circulam nas redes sociais, como “contra a ditadura gay” e “pelo impeachment da Dilma”.
Os slogans também foram sendo usados de forma a despolitizar. O pior deles é “O gigante acordou”. Este slogan é complicadíssimo. Carregado de ufanismo, ele simplesmente tenta jogar para a vala do esquecimento os séculos de lutas e resistências do povo brasileiro: os índios e suas guerras de resistência, os negros e seus quilombos, os movimentos feministas e suas marchas, a classe trabalhadora e suas greves, os trabalhadores rurais e suas ocupações, o movimento estudantil e suas manifestações…
Para os setores reacionários nenhuma dessas lutas vale, já que sempre estiveram do outro lado, dos exploradores, da elite.
Há um discurso nestes setores, de que “é necessário acabar com o pão e circo”. Precisamos rechaçar fortemente esse discurso, pois o que eles chamam de “política do pão e circo” são os avanços que tivemos nos últimos anos. Eles querem acabar com as políticas sociais de distribuição de renda, com as cotas sociais e raciais, com a política de valorização do salário mínimo e da massa salarial da classe trabalhadora em geral, com os direitos trabalhistas que as empregadas domésticas ganharam recentemente.
Dentro dos palácios temos os governantes, que não souberam negociar e até o momento ainda se mostram atônitos. Utilizam argumentos técnicos, quando o seu papel é fazer política, em outras palavras, procurar meios para atender às pautas populares. Não é possível governar apenas com gestão sem discutir os rumos da sociedade.
Há também uma demanda reprimida da população por participação. Esse sistema político atual, com financiamento privado, favorece a corrupção, uma vez que os financiadores das campanhas cobram depois o retorno dos seus “investimentos”. Também afasta a população das decisões relevantes das cidades, dos estados e do país. É preciso então discutir uma profunda reforma política, que dê voz e espaço aos setores excluídos da política institucional.
Como resistir à tentativa de sequestro dos atos?
Precisamos primeiramente compreender que a gênese desses movimentos é progressista e tem como pautas problemas concretos da vida das pessoas. No entanto há uma operação da mídia e da direita de desvirtuá-los e transformar os manifestantes em massa de manobra para setores da elite que não pretendem avançar, mas sim retroceder nos direitos da maioria da população.
É preciso que os manifestantes “antigos”, que já estão nas lutas e nas ruas há muito tempo em defesa das pautas progressistas, se somem aos atos e disputem sua linha, para que o tom seja pela conquista de novos direitos, sem abrir mão do que já foi conquistado.
Para os manifestantes novos: sejam bem-vindos à luta!
A única compreensão que eu lhes peço é que entendam o motivo que torna impossível “todos darmos as mãos por uma causa só, independente das diferenças”. Há, como sempre houve, a necessidade que alguém perca para que alguém possa ganhar.
Para termos passagens mais baratas e transporte de qualidade é preciso que o dinheiro saia de algum lugar: ou dos governos (o que seria trocar seis por meia dúzia), ou diminuir os lucros dos empresários do setor e aumentar impostos dos usuários de transporte individual (carros). Para conquistarmos direitos para a população LGBT precisaremos derrotar os fundamentalistas. Para democratizarmos as comunicações precisaremos derrotar a grande mídia, para termos melhores salários e condições de trabalho precisaremos derrotar os empresários, para termos mais dinheiro precisaremos derrotar os banqueiros que lucram em cima de nós com seus juros, e por aí segue…
Creio que o meio para defender os atos e os movimentos da intromissão de pautas reacionárias nesse momento é a restrição das nossas pautas nos atos. Precisamos realizar atos como sendo claramente contra os aumentos e em defesa de um novo modelo de transporte público e de qualidade.
Há diversas pautas progressistas igualmente importantes, como o combate ao projeto de lei da “cura gay” aprovado nesta terça-feira (18/06) pelo Feliciano na CDHM da Câmara dos Deputados, a Reforma Política, a democratização dos meios de comunicação, o combate à PEC37 (que restringe os poderes de investigação do Ministério Público), dentre tantas outras.
Se pulverizarmos as pautas em poucas manifestações “genéricas”, estaremos ajudando a fazer o que a mídia e a direita tanto querem: caracterizar o movimento como difuso e aberto à qualquer pauta, e já percebemos que onde cabe qualquer pauta, cabem também as pautas dos nossos adversários.
É necessário organizarmos atos para cada uma dessas pautas, aproveitando o momento político para acumular força, organicidade e visibilidade para as nossas lutas, que certamente não terminarão em uma ou duas semanas.
Que as manifestações não sejam passageiras!
OS LIMITES DA LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO
Cartaz utilizado em um dos protestos na capital paulista: vai que cola... |
Por José Francisco Neto, no Brasil de Fato
Durante o quinto e o sexto protesto contra o aumento
das tarifas do transporte público em São Paulo, foi notável a
heterogeneidade de reivindicações. A pauta central do Movimento Passe
Livre (MPL), que pede a redução das tarifas, parece estar perdendo a
centralidade. Surgem em meio às manifestações cartazes com dizeres como:
“Contra a corrupção” e “Impeachment à Dilma”.
Na
segunda-feira (17) e na terça-feira (18), a reportagem do Brasil de
Fato constatou uma sensível diferença nos atos comparando-os com a
semana anterior. Os gritos não eram os mesmos puxados pelos movimentos
sociais. As bandeiras dos partidos não foram mais estiadas. Muitas,
inclusive, foram impedidas de serem levantadas por um grupo de pessoas
que pediam “Sem partido!”, com bandeiras do Brasil nas mãos e cantando o
hino nacional.
A reportagem passava ao lado da
prefeitura de São Paulo quando presenciou um grupo de pessoas que
segurava uma bandeira vermelha de um movimento sem-teto. Um rapaz, de
aparentemente 27 anos, ao ver a bandeira, disse irritado: “que merda é
essa? Só faltava ter comunista aqui agora”.
Na segunda-feira, militantes da Juventude do PT quase foram agredidos por tentarem erguer a bandeira do partido. Já pessoas ligadas ao PSTU não conseguiram recuar e foram violentados por alguns manifestantes. "Começaram com gritos de longe e depois vieram para cima dizendo que nenhum partido os representava e que os partidos deveriam sair do ato. Aos socos e ponta-pés as bandeiras do PSTU foram arrancadas das mãos dos militantes e rasgadas por aqueles manifestantes que comemoraram logo depois", conta uma manifestante que presenciou a cena.
Na segunda-feira, militantes da Juventude do PT quase foram agredidos por tentarem erguer a bandeira do partido. Já pessoas ligadas ao PSTU não conseguiram recuar e foram violentados por alguns manifestantes. "Começaram com gritos de longe e depois vieram para cima dizendo que nenhum partido os representava e que os partidos deveriam sair do ato. Aos socos e ponta-pés as bandeiras do PSTU foram arrancadas das mãos dos militantes e rasgadas por aqueles manifestantes que comemoraram logo depois", conta uma manifestante que presenciou a cena.
Presente
nos atos, o cientista social Bruno Casalotti lembra que ser contra os
partidos é corroborar com o fascismo. "A existência de partidos é
fundamental para a garantia da democracia. É ótimo que eles estejam nos
atos, inclusive a juventude do PT", destaca.
União
popular é o que conclama Casalotti. "Quer pressionar o Haddad a baixar a
tarifa? Vamos fazer isso junto com a juventude do próprio partido dele
que temos mais força! PSTU, PSOL, todos têm o direito de estarem nos
atos e levantarem suas bandeiras", reforça.
Somando-se ao debate, o professor de sociologia e história do Instituto
Federal de Educação e Ciência, Kennedy Ferreira, ressalta que em uma
manifestação democrática cabem todas as bandeiras, "em especial aquelas
que sempre estiveram ao lado dos mais desfavorecidos".
Outro cartaz do protesto em São Paulo. Podia ser em Rio Branco. Ou não? |
Direita radical
Fatos inusitados não presenciados nas primeiras
manifestações também foram registrados pelo cientista social Bruno
Casalotti. Ele disse ao Brasil de Fato que, enquanto
caminhava junto a manifestação, uma menina, de aproximadamente 17 anos,
entregou dois panfletos a ele com dizeres do tipo “Prisão rural
perpétua, não queremos sustentar bandidos” ou “eliminação da idade
mínima penal, independentemente da idade, o infrator deve ser punido".
Ao ser questionada sobre a origem dos panfletos, ela respondeu: “um cara
me deu esse bolinho pra distribuir”.
HISTÓRIA
Tomar banho de rio
Comer ingá e abiu
Caçar paca, anta, tatu
E
Não ter história.
Criar galinha no terreiro
Fazer chá de mulateiro
Pular a fogueira de São João
E
Não ter história.
Jogar bola na chuva na rua de chão
Pegar minhoca no quintal com a mão
Pescar de caniço cará, mandim, trairão.
E
Não ter história.
Sair do alagado
Virar soldado
Ganhar um ordenado
Ser aceito na história.
Obedecer o chefe, o pastor, o governo.
Sorrir amarelo na coluna social.
Protestar pela ordem, a pátria, a moral.
E
Escrever a história.
Comer ingá e abiu
Caçar paca, anta, tatu
E
Não ter história.
Criar galinha no terreiro
Fazer chá de mulateiro
Pular a fogueira de São João
E
Não ter história.
Jogar bola na chuva na rua de chão
Pegar minhoca no quintal com a mão
Pescar de caniço cará, mandim, trairão.
E
Não ter história.
Sair do alagado
Virar soldado
Ganhar um ordenado
Ser aceito na história.
Obedecer o chefe, o pastor, o governo.
Sorrir amarelo na coluna social.
Protestar pela ordem, a pátria, a moral.
E
Escrever a história.
quarta-feira, 19 de junho de 2013
COMO ENQUADRAR UM PROTESTO
Fazendo um debate na televisão.
Foi o que percebi ontem, ao assistir o Gazeta Entrevista apresentado pelo robótico Allan Rick, da TV Gazeta.
O apresentador, os debatedores e os próprios organizadores do evento foram unânimes: é preciso evitar exageros. Fugir da violência. Não quebrar nada. Manter a ordem.
MANTER A ORDEM!
Não sei quanto a vocês, mas esta expressão ecoa até agora, como um mantra, na minha cachola.
Manter a ordem, pois, "o povo acreano é educado, pacífico e ordeiro", segundo o apresentador.
Carajo, o problema não é justamente a ordem?
Os fiscais ambientais que multaram o Jorge Neto, do movimento hip-hop, aplicaram a lei - a ordem.
A liberdade condicional dos secretários de Estado, presos pela Polícia Federal durante a Operação G7, é prevista legalmente, já que todos têm domicílio fixo e não têm antecedentes criminais. Tudo em ordem.
Os problemas com liberdade de expressão, que impedem o livre exercício de vozes contraditórias na imprensa acreana, tornando-a cada vez mais insuportavelmente igual, resulta da impossibilidade dos donos dos jornais ouvirem vozes dissonantes do poder - e, nos poucos casos em que o fazem, é para chantagear o poder visando fatias maiores da publicidade estatal. Tudo legal, previsto na ordem.
- Protestem, mas dentro dos espaços e condições fornecidos pela própria ordem para tal -, dizem.
Essa postura não se dá por acaso.
Toda novidade política, para surgir, precisa romper com a ordem estabelecida.
A democracia moderna surgiu contestando a ordem, na França de 1789.
As leis que hoje protegem a expressão no Brasil insurgiram-se contra a ordem dos generais de 64.
Os empates no Acre contestam até hoje os discursos dos diferentes governos sobre a "inclusão" da Amazônia na ordem do desenvolvimento mundial (a própria idéia de desenvolvimento está em xeque).
O que liga todos esses casos é: a contestação, a subversão da ordem.
O que ocorreria se, em cada época dessas, os manifestantes protestassem dentro da ordem?
Nada. Absolutamente nada.
Logo que apareceram, blogs e outros meios de interação virtual foram acidamente criticados pela imprensa tradicional, acusados de serem "rancorosos" e de "disseminarem informações distorcidas". Havia propagandas de jornalões na TV tentando apontar a própria credibilidade como salvo-conduto da verdade, ao melhor estilo da velhíssima falácia de autoridade.
Hoje, os blogs são não só a melhor fonte de informações sobre os movimentos sociais, como a mais legítima entre eles. São, simultaneamente, informadores e disseminadores. Reportam e debatem.
Subverter a ordem é a condição da novidade na política.
O ordeiro não inova, obedece. Aceita as regras do jogo. Aceita se enquadrar.
E, ao fazê-lo, vira apenas um trampolim para políticos com algum carisma e nenhum caráter.
"Explosão democrática", "a sociedade acordou", "verás que um filho teu não foge à luta", são as manchetes do dia seguinte aos protestos que se enquadram na ordem e não terminam, por isso mesmo, em um teatro de horrores de pancadaria e truculência policial - os chamados, não por acaso, "homens da lei". É o coroamento da normalidade, a cordialidade hipócrita de quem não deseja, no fim das contas, mudar qualquer coisa.
É tão apropriado esse discurso que mesmo membros do próprio governo do Estado parabenizam antecipadamente o Dia do Basta. Paradoxal? Não, sintomático: qualquer um, inclusive os próprios réus da Operação G7, pode ser contra a corrupção, vestir camisetas brancas, bater panelas, e, ainda, reclamar de censura à liberdade de expressão se não for aceito como igual no movimento (e fazer disso um discurso político poderoso, capaz de agregar muita gente).
Quando se luta pela ordem, quando não se pretende superar nada, quando o novo não se manifesta por meio da subversão, há resultados assim.
É isso o que espera movimentos sociais que pretendem combater o crime, o abuso, com a exigência de mais ordem.
No que isso vai dar, a não ser na eleição de novos políticos?
Não foi esse o percurso trilhado, precisamente, pelo próprio PT?
Foi o que percebi ontem, ao assistir o Gazeta Entrevista apresentado pelo robótico Allan Rick, da TV Gazeta.
O apresentador, os debatedores e os próprios organizadores do evento foram unânimes: é preciso evitar exageros. Fugir da violência. Não quebrar nada. Manter a ordem.
MANTER A ORDEM!
Não sei quanto a vocês, mas esta expressão ecoa até agora, como um mantra, na minha cachola.
Manter a ordem, pois, "o povo acreano é educado, pacífico e ordeiro", segundo o apresentador.
Carajo, o problema não é justamente a ordem?
Os fiscais ambientais que multaram o Jorge Neto, do movimento hip-hop, aplicaram a lei - a ordem.
A liberdade condicional dos secretários de Estado, presos pela Polícia Federal durante a Operação G7, é prevista legalmente, já que todos têm domicílio fixo e não têm antecedentes criminais. Tudo em ordem.
Os problemas com liberdade de expressão, que impedem o livre exercício de vozes contraditórias na imprensa acreana, tornando-a cada vez mais insuportavelmente igual, resulta da impossibilidade dos donos dos jornais ouvirem vozes dissonantes do poder - e, nos poucos casos em que o fazem, é para chantagear o poder visando fatias maiores da publicidade estatal. Tudo legal, previsto na ordem.
- Protestem, mas dentro dos espaços e condições fornecidos pela própria ordem para tal -, dizem.
Essa postura não se dá por acaso.
Toda novidade política, para surgir, precisa romper com a ordem estabelecida.
A democracia moderna surgiu contestando a ordem, na França de 1789.
As leis que hoje protegem a expressão no Brasil insurgiram-se contra a ordem dos generais de 64.
Os empates no Acre contestam até hoje os discursos dos diferentes governos sobre a "inclusão" da Amazônia na ordem do desenvolvimento mundial (a própria idéia de desenvolvimento está em xeque).
O que liga todos esses casos é: a contestação, a subversão da ordem.
O que ocorreria se, em cada época dessas, os manifestantes protestassem dentro da ordem?
Nada. Absolutamente nada.
Logo que apareceram, blogs e outros meios de interação virtual foram acidamente criticados pela imprensa tradicional, acusados de serem "rancorosos" e de "disseminarem informações distorcidas". Havia propagandas de jornalões na TV tentando apontar a própria credibilidade como salvo-conduto da verdade, ao melhor estilo da velhíssima falácia de autoridade.
Hoje, os blogs são não só a melhor fonte de informações sobre os movimentos sociais, como a mais legítima entre eles. São, simultaneamente, informadores e disseminadores. Reportam e debatem.
Subverter a ordem é a condição da novidade na política.
O ordeiro não inova, obedece. Aceita as regras do jogo. Aceita se enquadrar.
E, ao fazê-lo, vira apenas um trampolim para políticos com algum carisma e nenhum caráter.
"Explosão democrática", "a sociedade acordou", "verás que um filho teu não foge à luta", são as manchetes do dia seguinte aos protestos que se enquadram na ordem e não terminam, por isso mesmo, em um teatro de horrores de pancadaria e truculência policial - os chamados, não por acaso, "homens da lei". É o coroamento da normalidade, a cordialidade hipócrita de quem não deseja, no fim das contas, mudar qualquer coisa.
É tão apropriado esse discurso que mesmo membros do próprio governo do Estado parabenizam antecipadamente o Dia do Basta. Paradoxal? Não, sintomático: qualquer um, inclusive os próprios réus da Operação G7, pode ser contra a corrupção, vestir camisetas brancas, bater panelas, e, ainda, reclamar de censura à liberdade de expressão se não for aceito como igual no movimento (e fazer disso um discurso político poderoso, capaz de agregar muita gente).
Quando se luta pela ordem, quando não se pretende superar nada, quando o novo não se manifesta por meio da subversão, há resultados assim.
É isso o que espera movimentos sociais que pretendem combater o crime, o abuso, com a exigência de mais ordem.
No que isso vai dar, a não ser na eleição de novos políticos?
Não foi esse o percurso trilhado, precisamente, pelo próprio PT?
terça-feira, 18 de junho de 2013
SOBRE O DIA DO BASTA
Alunos da Universidade Federal do Acre (UFAC) realizam uma série de manifestações em Rio Branco. Aproveitam o calor dos protestos em várias capitais brasileiras, todas violentamente reprimidas pelas forças policiais. Já houve protestos em frente à sede do governo do Estado e no Terminal Urbano. No sábado haverá outro, marcado para as 16h30.
Os eventos miram claramente o governo do Estado, envolvido em uma crise sem precedentes depois que vários membros do primeiro escalão foram presos, acusados de cometer crimes de formação de cartel, falsidade ideológica, corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha, fraude em licitação e desvio de verbas públicas.
Anotem isso: depois do evento, políticos de várias matizes vão prestar solidariedade aos meninos para dizer que repudiam a "vergonhosa situação do Acre na mídia nacional", afirmarão que amam o Acre, que se colocam à disposição para diálogos com as lideranças etc. Alguns podem, inclusive, tentar posar ao lado de um ou dois organizadores para os holofotes.
É a campanha eleitoral antecipada. É, também, o limite claro de protestos contra a corrupção, pela democracia, pelo restabelecimento da ordem e coisas do tipo.
Espero, sinceramente, que eu esteja enganado, contrariando todas as expectativas, e que o evento não trate apenas disso. Se for assim, seu único efeito será abrir um vácuo para aproveitadores, populistas e parasitas de toda espécie surgirem como salvadores da pátria... ou do Estado!
Isso já ocorreu antes. Em 1998 eu era repórter novato do jornal Página 20 quando vi, com esses olhos que a terra há de comer, o atual senador Jorge Viana bradar em comício que "a vida vai melhorar" porque era chegado o momento do desenvolvimento, do crescimento, da geração de emprego, mas também da honestidade e da competência administrativa para o Acre. O governador na época era Orleir Cameli, do PPB, evolução inespontânea do PDS da ditadura. Orleir lutava para se manter no cargo enfrentando uma série de passeatas, protestos e assemelhados que ocupavam a capital.
Entre os manifestantes, além dos vários sindicatos, associações, artistas e outros segmentos sociais, estavam os estudantes. Como sempre, exigindo ordem. Progresso. O fim da corrupção. O bom governo. O bom Estado.
Em outras cidades, onde a ordem e o progresso levados pelos homens de bem já criaram favelas, esgotos, sistemas prisionais bestializadores, indústrias poderosas do tráfico de drogas e um estado de sobressalto permanente de todos contra todos, a população já percebeu que o problema é mais complicado. Mais grave.
Perceberam que o modelo de modernidade - que não escolhemos, que nos impuseram matando os que resistiam, mas que hoje defendemos com unhas e dentes - não funciona. Separação de poderes, Estado-Nação, partidos políticos, voto, sistema representativo, pleno emprego, toda a parafernália conceitual criada na Europa do século XVIII serviu para exportar os valores europeus para o "resto do mundo" (as colônias, nós) que vivia nas trevas da civilização.
No Brasil, chamaram isso de ordem e progresso.
No Acre, de modernização - e, mais recentemente, de "desenvolvimento sustentável".
Foi esse o contexto do fenômeno que levou pessoas racionais, em pleno domínio das suas faculdades mentais, a protestar contra um aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus na capital paulista. A pista está no próprio lema dos protestos: "Não é só 20 centavos". Não é mesmo: o caos no transporte público, que não justifica o aumento na tarifa, está conectado com outras formas de caos, todas promovidas pelo desenvolvimento, pelo crescimento. Pela ordem.
Suponho que, como eles, a juventude acreana não queira reforçar, e sim, destruir essa ordem.
Pelo sim, pelo não, vou acompanhar neste sábado, em frente ao Palácio Rio Branco, o Dia do Basta. Ou do Continua. A conferir.
Os eventos miram claramente o governo do Estado, envolvido em uma crise sem precedentes depois que vários membros do primeiro escalão foram presos, acusados de cometer crimes de formação de cartel, falsidade ideológica, corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha, fraude em licitação e desvio de verbas públicas.
Anotem isso: depois do evento, políticos de várias matizes vão prestar solidariedade aos meninos para dizer que repudiam a "vergonhosa situação do Acre na mídia nacional", afirmarão que amam o Acre, que se colocam à disposição para diálogos com as lideranças etc. Alguns podem, inclusive, tentar posar ao lado de um ou dois organizadores para os holofotes.
É a campanha eleitoral antecipada. É, também, o limite claro de protestos contra a corrupção, pela democracia, pelo restabelecimento da ordem e coisas do tipo.
Espero, sinceramente, que eu esteja enganado, contrariando todas as expectativas, e que o evento não trate apenas disso. Se for assim, seu único efeito será abrir um vácuo para aproveitadores, populistas e parasitas de toda espécie surgirem como salvadores da pátria... ou do Estado!
Isso já ocorreu antes. Em 1998 eu era repórter novato do jornal Página 20 quando vi, com esses olhos que a terra há de comer, o atual senador Jorge Viana bradar em comício que "a vida vai melhorar" porque era chegado o momento do desenvolvimento, do crescimento, da geração de emprego, mas também da honestidade e da competência administrativa para o Acre. O governador na época era Orleir Cameli, do PPB, evolução inespontânea do PDS da ditadura. Orleir lutava para se manter no cargo enfrentando uma série de passeatas, protestos e assemelhados que ocupavam a capital.
Entre os manifestantes, além dos vários sindicatos, associações, artistas e outros segmentos sociais, estavam os estudantes. Como sempre, exigindo ordem. Progresso. O fim da corrupção. O bom governo. O bom Estado.
Em outras cidades, onde a ordem e o progresso levados pelos homens de bem já criaram favelas, esgotos, sistemas prisionais bestializadores, indústrias poderosas do tráfico de drogas e um estado de sobressalto permanente de todos contra todos, a população já percebeu que o problema é mais complicado. Mais grave.
Perceberam que o modelo de modernidade - que não escolhemos, que nos impuseram matando os que resistiam, mas que hoje defendemos com unhas e dentes - não funciona. Separação de poderes, Estado-Nação, partidos políticos, voto, sistema representativo, pleno emprego, toda a parafernália conceitual criada na Europa do século XVIII serviu para exportar os valores europeus para o "resto do mundo" (as colônias, nós) que vivia nas trevas da civilização.
No Brasil, chamaram isso de ordem e progresso.
No Acre, de modernização - e, mais recentemente, de "desenvolvimento sustentável".
Foi esse o contexto do fenômeno que levou pessoas racionais, em pleno domínio das suas faculdades mentais, a protestar contra um aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus na capital paulista. A pista está no próprio lema dos protestos: "Não é só 20 centavos". Não é mesmo: o caos no transporte público, que não justifica o aumento na tarifa, está conectado com outras formas de caos, todas promovidas pelo desenvolvimento, pelo crescimento. Pela ordem.
Suponho que, como eles, a juventude acreana não queira reforçar, e sim, destruir essa ordem.
Pelo sim, pelo não, vou acompanhar neste sábado, em frente ao Palácio Rio Branco, o Dia do Basta. Ou do Continua. A conferir.
segunda-feira, 17 de junho de 2013
Como os EUA conquistaram o Brasil usando a mídia
Por Leandro Severo, na Carta Maior, reproduzido no Viomundo
Em 1957, uma CPI da Câmara dos Deputados, comprovou que “O Estado de São Paulo”, “O Globo” e “Correio da Manhã” foram remunerados pela publicidade estrangeira para moverem campanhas contra a nacionalização do petróleo. Em momentos cruciais para o país se inclinaram para o golpismo e a traição aos interesses nacionais: contra Getúlio, a Petrobrás, JK, contra Jango, apoiando a ditadura, Collor, FHC e suas privatizações, atacando Lula.
Em 1957, uma CPI da Câmara dos Deputados, comprovou que “O Estado de São Paulo”, “O Globo” e “Correio da Manhã” foram remunerados pela publicidade estrangeira para moverem campanhas contra a nacionalização do petróleo. Em momentos cruciais para o país se inclinaram para o golpismo e a traição aos interesses nacionais: contra Getúlio, a Petrobrás, JK, contra Jango, apoiando a ditadura, Collor, FHC e suas privatizações, atacando Lula.
Em 1941, enquanto milhões de homens e mulheres
derramavam seu sangue pela liberdade nos campos da Europa e da União
Soviética, a elite dos círculos financeiros dos Estados Unidos já
traçava seus planos para o pós-guerra. Como afirmou Nelson Rockefeller,
filho do magnata do petróleo John D. Rockefeller, em memorando que
apresentava sua visão ao presidente Roosevelt: “Independente do
resultado da guerra, com uma vitória alemã ou aliada, os Estados Unidos
devem proteger sua posição internacional através do uso de meios
econômicos que sejam competitivamente eficazes...” (COLBY, p.127, 1998).
Seu objetivo: o domínio do comércio mundial, através da ocupação dos
mercados e da posse das principais fontes de matéria-prima. Anos mais
tarde o ex-secretário de imprensa do Congresso americano, Gerald Colby,
sentenciava sobre Rockefeller: “no esforço para extrair os recursos mais
estratégicos da América Latina com menores custos, ele não poupava
meios” (COLBY, p.181, 1998).
Neste mesmo ano, Henry Luce, editor e proprietário de um complexo de comunicações que tinha entre seus títulos as revistas Time, Life e Fortune, convocou os norte-americanos a “aceitar de todo o coração nosso dever e oportunidade, como a nação mais poderosa do mundo, o pleno impacto de nossa influência para objetivos que consideremos convenientes e por meios que julguemos apropriados” (SCHILLER, p.11, 1976). Ele percebeu, com clareza, que a união do poder econômico com o controle da informação seria a questão central para a formação da opinião pública, a nova essência do poder nacional e internacional.
Evidentemente para que os planos de ocupação econômica pelas corporações americanas fossem alcançados havia uma batalha a ser vencida: Como usurpar a independência de nações que lutaram por seus direitos? Como justificar uma postura imperialista do país que realizou a primeira insurreição anticolonial?
A resposta a esta pergunta foi dada com rigor pelo historiador Herbert Schiller: “Existe um poderoso sistema de comunicações para assegurar nas áreas penetradas, não uma submissão rancorosa, mas sim uma lealdade de braços abertos, identificando a presença americana com a liberdade – liberdade de comércio, liberdade de palavra e liberdade de empresa. Em suma, a florescente cadeia dominante da economia e das finanças americanas utiliza os meios de comunicação para sua defesa e entrincheiramento onde quer que já esteja instalada e para sua expansão até lugares onde espera tornar-se ativa” (SCHILLER, p.13, 1976).
Foi exatamente ao que seu setor de comunicações se dedicou. Estava com as costas quentes, já que as agências de publicidade americanas cuidavam das marcas destinadas a substituir as concorrentes europeias arrasadas pela guerra. O setor industrial dos EUA havia alcançado um vertiginoso aumento de 450% em seu lucro líquido no período 1940-1945, turbinado pelos contratos de guerra e subsídios governamentais. Com esta plataforma invadiram a América Latina e o mundo.
Com o suporte do coordenador de Assuntos Interamericanos (CIIA), Nelson Rockefeller, mais de mil e duzentos donos de jornais latinos recebiam, de forma subsidiada, toneladas de papel de imprensa, transportada por navios americanos. Além disso, milhões de dólares em anúncios publicitários das maiores corporações eram seletivamente distribuídos. É claro que o papel e a publicidade não vinham sozinhos, estavam acompanhados de uma verdadeira enxurrada de matérias, reportagens, entrevistas e releases preparadas pela divisão de imprensa do Departamento de Estado dos EUA.
A vontade de conquistar as novas “colônias” e ocupar novos territórios como haviam feito no século anterior, no velho oeste, não tinha limites. No Brasil, circulava desde 1942, a revista Seleções (do Reader’s Digest), trazida por Robert Lund, de Nova York. A revista, bem como outras publicações estrangeiras, pagavam os devidos direitos aduaneiros por se tratarem de produtos importados, mas solicitou, e foi atendida pelo procurador da República, Temístocles Cavalcânti, o direito de ser editada e distribuída no Brasil, com o argumento de ser uma revista sem implicações políticas e limitada a publicar conteúdos culturais e científicos. Assim começou a tragédia.
Logo chegou o grupo Vision Inc., também de Nova York, com as revistas Dirigente Industrial, Dirigente Rural, Dirigente Construtor e muitos outros títulos que vinham repletos de anúncios das corporações industriais. Um fato bastante ilustrativo foi o da revista brasileira Cruzeiro Internacional, concorrente da Life International, que apesar de possuir grande circulação, nunca foi brindada com anúncios, enquanto a concorrente americana anunciava produtos que, muitas vezes, nem sequer estavam à venda no Brasil.
Ficava claro que os critérios até então estabelecidos para o mercado publicitário, como tempo de circulação efetiva, eficiência de mensagem e comprovação de tiragem, de nada adiantavam. O que estava em jogo era muito maior.
Um papel importantíssimo na ocupação dos novos mercados foi desempenhado pelas agências de publicidade americanas. McCann-Erickson e J. Warter Thompson eram as principais e tinham seu trabalho coordenado diretamente pelo Departamento de Estado. Para se ter uma ideia a McCann-Erickson , nos anos 60, possuía 70 escritórios e empregava 4619 pessoas, em 37 países, já a J. Warter Thompson tinha 1110 funcionários, somente na sede de Londres. Os Estados Unidos tinham 46 agências atuando no exterior, com 382 filiais. Destas 21 agências em sociedade com britânicos, 20 com alemães ocidentais e 12 com franceses. No Brasil atuavam 15 agências, todas elas com instruções absolutamente claras de quem patrocinar.
No início dos anos 50, Henry Luce, do grupo Time-Life, já estava luxuosamente instalado em sua nova sede de 70 andares na área mais nobre de Manhattan, negócio imobiliário que fechou com Nelson Rockefeller e seu amigo Adolf Berle, embaixador americano no Brasil na época do primeiro golpe contra o presidente Getúlio Vargas. Luce mantinha fortes relações com os irmãos Cesar e Victor Civita, ítalo-americanos nascidos em Nova Iorque. Cesar foi para a Argentina em 1941 onde montou a Editorial Abril, como representante da companhia Walt Disney, já Victor, em 1950, chega ao Brasil e organiza a Editora Abril. Neste mesmo período seu filho, Roberto Civita, faz um estágio de um ano e meio na revista Time, sob a tutela de Luce e logo retorna para ajudar o pai.
Poucos anos depois, o mercado editorial brasileiro está plenamente ocupado por centenas de publicações que cantavam em prosa e verso o american way of life. Somente a Abril, financiada amplamente pelas grandes empresas americanas, edita diversas revistas: Claudia, Quatro Rodas, Capricho, Intervalo, Manequim, Transporte Moderno, Máquinas e Metais, Química e Derivados, Contigo, Noiva, Mickey, Pato Donald, Zé Carioca, Almanaque Tio Patinhas, a Bíblia Mais Bela do Mundo, além de diversos livros escolares.
Em 1957, uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, comprova que “O Estado de São Paulo”, “O Globo” e “Correio da Manhã” foram remunerados pela publicidade estrangeira para moverem campanhas contra a nacionalização do petróleo.
Em 1962, o grupo Time-Life encontra seu parceiro ideal para entrar de vez no principal ramo das comunicações, a Televisão. A recém-fundada TV Globo, de Roberto Marinho. Era uma estranha sociedade. O capital da Rede Globo era de 600 milhões de cruzeiros, pouco mais de 200 mil dólares, ao câmbio da época. O aporte dado “por empréstimo” pela Time-Life era de seis milhões de dólares e a empresa tinha um capital dez mil vezes maior.
Como denunciou o deputado João Calmon, presidente da Abert (Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão): “Trata-se de uma competição irresistível, porque além de receber oito bilhões de cruzeiros em doze meses, uma média de 700 milhões por mês, a TV Globo recebe do Grupo Time-Life três filmes de longa metragem por dia – por dia, repito... Só um ‘package’, um pacote de três filmes diários durante o ano todo, custa na melhor das hipóteses, dois milhões de dólares” (HERZ, p.220, 2009).
O Brasil e o mundo estão em efervescência. A tensão é crescente com revoluções vitoriosas na China e em Cuba. A luta pela independência e soberania das nações cresce em todos continentes e os EUA colocam em marcha golpes militares por todo o planeta. A Guerra Fria está em um ponto agudo.
É nesse quadro que a Comissão de Assuntos Estrangeiros do Congresso dos EUA, em abril de 1964, no relatório “Winning the Cold War. The O.S. Ideological Offensive” define:
“Por muitos anos os poderes militar e econômico, utilizados separadamente ou em conjunto, serviram de pilares da diplomacia. Atualmente ainda desempenham esta função, mas o recente aumento da influência das massas populares sobre os governos, associado a uma maior consciência por parte dos líderes no que se refere às aspirações do povo, devido às revoluções concomitantes do século XX, criou uma nova dimensão para as operações de política externa. Certos objetivos dessa política podem ser colimados tratando-se diretamente com o povo dos países estrangeiros, em vez de tratar com seus governos. Através do uso de modernos instrumentos e técnicas de comunicação, pode-se hoje em dia atingir grupos numerosos ou influentes nas populações nacionais – para informá-los, influenciar-lhes as atitudes e, às vezes, talvez, até mesmo motivá-los para uma determinada linha de ação. Esses grupos, por sua vez, são capazes de exercer pressões notáveis e até mesmo decisivas sobre seus governos” (SCHILLER, p.23, 1976).
A ordem estava dada: “informar”, influenciar e motivar. A rede está montada, o financiamento definido.
O jornalista e grande nacionalista, Genival Rabelo, exatamente nesta hora, denuncia no jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro: “Há, por trás do grupo (Abril), recursos econômicos de que não dispõem as editoras nacionais, porém muito mais importante do que isso está o apoio maciço que a indústria e as agências de publicidade americanas darão ao próximo lançamento do Sr. Victor Civita, a exemplo do que já fizeram com as suas 18 publicações em circulação, bem como as revistas do grupo norte-americano Vision Inc.” (RABELO, p.38, 1966)
Mas é necessário mais. É preciso enfraquecer, calar e quebrar tudo que seja contrário aos interesses dos monopólios, tudo que possa prejudicar os interesses das corporações. A General Eletric, General Motors, Ford, Standard Oil, DuPont, IBM, Dow Chemical, Monsanto, Motorola, Xerox, Jonhson & Jonhson e seus bancos J. P. Morgan, Citibank, Chase Manhattan precisam estar seguros para praticar sua concorrência desleal, para remeter lucros sem controle, para desnacionalizar as riquezas do país se apossando das reservas minerais.
Várias são as declarações, nesta época, que deixam claro qual o caminho traçado pelos EUA. Nas palavras de Robert Sarnoff, presidente da RCA – Radio Corporation of America – “a informação se tornará um artigo de primeira necessidade equivalente a energia no mundo econômico e haverá de funcionar como uma forma de moeda no comércio mundial, convertível em bens e serviços em toda parte” (SCHILLER, p.18, 1976). Já a Comissão Federal de Comunicações (FCC), em informe conjunto dos Ministérios do Exterior, Justiça e Defesa, afirmava: “as telecomunicações evoluíram de suporte essencial de nossas atividades internacionais para ser também um instrumento de política externa” (SCHILLER, p.24, 1976).
É esclarecedor o pensamento do delegado dos Estados Unidos nas Nações Unidas, vice-ministro das Relações Exteriores, George W. Ball, em pronunciamento na Associação Comercial de Nova Iorque:
“Somente nos últimos vinte anos é que a empresa multinacional conseguiu plenamente seus direitos. Atualmente, os limites entre comércio e indústria nacionais e estrangeiros já não são muito claros em muitas empresas. Poucas coisas de maior esperança para o futuro do que a crescente determinação do empresariado americano de não mais considerar fronteiras nacionais como demarcação do horizonte de sua atividade empresarial” (SCHILLER, p.27, 1976).
A ação desencadeada pelos interesses externos já havia produzido a falência de muitos órgãos de imprensa nacionais e, por outro lado, despertado a consciência de muitos brasileiros de como os monopólios utilizam seu poder de pressão e de chantagem. Em 1963, o publicitário e jornalista Marcus Pereira afirmava em debate na TV Tupi, em São Paulo: “Em última análise, a questão envolve a velha e romântica tese da liberdade de imprensa, tão velha como a própria imprensa. Acontece que a imprensa precisa sobreviver, e, para isso, depende do anunciante. Quando esse anunciante é anônimo, pequeno e disperso não pode exercer pressão, por razões óbvias. É o caso das seções de ‘classificados’ dos jornais. Mas poucos jornais têm ‘classificados’ em quantidade expressiva. A maioria dos jornais e a totalidade das revistas vivem da publicidade comercial e industrial, dos chamados grandes anunciantes. Acho que posso parar por aqui, porque até para os menos afoitos já adivinharam a conclusão” (RABELO, p.56, 1966).
Não é difícil perceber o quanto a submissão aos interesses econômicos estrangeiros levou a dita “grande mídia” brasileira a se afastar da nação. A se tornar, ao longo dos anos, em uma peça chave da política do Imperialismo. Em praticamente todos os principais momentos da vida nacional se inclinaram para o golpismo e a traição. Já no primeiro golpe contra Getúlio, depois, contra sua eleição, contra sua posse, contra a criação da Petrobrás, contra a eleição de Juscelino, contra João Goulart, contra as reformas de base, apoiando a Ditadura, apoiando a política econômica de Collor, apoiando Fernando Henrique e suas privatizações, atacando Lula.
Hoje, ela novamente tem lado: o das concessões de estradas, portos e aeroportos, o dos leilões de privatização do petróleo e da necessidade da elevação das taxas de juros, do controle do déficit público com evidentes restrições aos investimentos governamentais, ou seja, da aceitação de um neoliberalismo tardio.
Porque atuam desta forma? Genival Rabelo deu a resposta: “Um industrial inteligente desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro me fez outro dia, esta observação, em forma de desafio: ‘Dou-lhe um doce, se nos últimos cinco anos você pegar uma edição de O Globo que não estampe na primeira página uma notícia qualquer da vida americana, dos feitos americanos, da indústria americana, do desenvolvimento científico americano, das vitórias e bombardeios americanos. A coisa é tão ostensiva que, muita vez, sem ter o que publicar sobre os Estados Unidos na primeira página, estando o espaço reservado para esse fim, o secretário do jornal abre manchete para a volta às aulas na cidade de Tampa, Miami, Los Angeles, Chicago ou Nova Iorque. Você não encontra a volta às aulas em Paris, Nice, Marselha, ou outra cidade qualquer da França, na primeira pagina de O Globo, porque, de fato, isso não interessa a ninguém. Logo, não pode deixar de haver dólar por trás de tudo isso...’ Outro amigo presente, no momento, e sendo homem de publicidade concluiu, deslumbrado com seu próprio achado: ‘É por isso que O Globo não aceita anúncio para a primeira página. Ela já está vendida. É isso. É isso!’. ‘E muito bem vendida, meu caro – arrematou o industrial – A peso de ouro’ ” (RABELO, p.258, 1966).
(*) Delegado à Conferência Nacional de Comunicação, Secretário Municipal de Comunicação em São Carlos entre 2007 e 2012 e membro do Partido Pátria Livre.
Referências:
COLBY, G; DENNETT, C. Seja feita a vossa vontade: a conquista da Amazônia, Nelson Rockefeller e o evangelismo na idade do Petróleo. Tradução: Jamari França. Rio de Janeiro: Record, 1998.
HERZ, D. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Dom Quixote, 2009. Coleção Poder, Mídia e Direitos Humanos.
RABELO, G. O Capital Estrangeiro na Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
SCHILLER, H. I. O Império norte-americano das comunicações. Tradução: Tereza Lúcia Halliday Petrópolis: Vozes, 1976.
Neste mesmo ano, Henry Luce, editor e proprietário de um complexo de comunicações que tinha entre seus títulos as revistas Time, Life e Fortune, convocou os norte-americanos a “aceitar de todo o coração nosso dever e oportunidade, como a nação mais poderosa do mundo, o pleno impacto de nossa influência para objetivos que consideremos convenientes e por meios que julguemos apropriados” (SCHILLER, p.11, 1976). Ele percebeu, com clareza, que a união do poder econômico com o controle da informação seria a questão central para a formação da opinião pública, a nova essência do poder nacional e internacional.
Evidentemente para que os planos de ocupação econômica pelas corporações americanas fossem alcançados havia uma batalha a ser vencida: Como usurpar a independência de nações que lutaram por seus direitos? Como justificar uma postura imperialista do país que realizou a primeira insurreição anticolonial?
A resposta a esta pergunta foi dada com rigor pelo historiador Herbert Schiller: “Existe um poderoso sistema de comunicações para assegurar nas áreas penetradas, não uma submissão rancorosa, mas sim uma lealdade de braços abertos, identificando a presença americana com a liberdade – liberdade de comércio, liberdade de palavra e liberdade de empresa. Em suma, a florescente cadeia dominante da economia e das finanças americanas utiliza os meios de comunicação para sua defesa e entrincheiramento onde quer que já esteja instalada e para sua expansão até lugares onde espera tornar-se ativa” (SCHILLER, p.13, 1976).
Foi exatamente ao que seu setor de comunicações se dedicou. Estava com as costas quentes, já que as agências de publicidade americanas cuidavam das marcas destinadas a substituir as concorrentes europeias arrasadas pela guerra. O setor industrial dos EUA havia alcançado um vertiginoso aumento de 450% em seu lucro líquido no período 1940-1945, turbinado pelos contratos de guerra e subsídios governamentais. Com esta plataforma invadiram a América Latina e o mundo.
Com o suporte do coordenador de Assuntos Interamericanos (CIIA), Nelson Rockefeller, mais de mil e duzentos donos de jornais latinos recebiam, de forma subsidiada, toneladas de papel de imprensa, transportada por navios americanos. Além disso, milhões de dólares em anúncios publicitários das maiores corporações eram seletivamente distribuídos. É claro que o papel e a publicidade não vinham sozinhos, estavam acompanhados de uma verdadeira enxurrada de matérias, reportagens, entrevistas e releases preparadas pela divisão de imprensa do Departamento de Estado dos EUA.
A vontade de conquistar as novas “colônias” e ocupar novos territórios como haviam feito no século anterior, no velho oeste, não tinha limites. No Brasil, circulava desde 1942, a revista Seleções (do Reader’s Digest), trazida por Robert Lund, de Nova York. A revista, bem como outras publicações estrangeiras, pagavam os devidos direitos aduaneiros por se tratarem de produtos importados, mas solicitou, e foi atendida pelo procurador da República, Temístocles Cavalcânti, o direito de ser editada e distribuída no Brasil, com o argumento de ser uma revista sem implicações políticas e limitada a publicar conteúdos culturais e científicos. Assim começou a tragédia.
Logo chegou o grupo Vision Inc., também de Nova York, com as revistas Dirigente Industrial, Dirigente Rural, Dirigente Construtor e muitos outros títulos que vinham repletos de anúncios das corporações industriais. Um fato bastante ilustrativo foi o da revista brasileira Cruzeiro Internacional, concorrente da Life International, que apesar de possuir grande circulação, nunca foi brindada com anúncios, enquanto a concorrente americana anunciava produtos que, muitas vezes, nem sequer estavam à venda no Brasil.
Ficava claro que os critérios até então estabelecidos para o mercado publicitário, como tempo de circulação efetiva, eficiência de mensagem e comprovação de tiragem, de nada adiantavam. O que estava em jogo era muito maior.
Um papel importantíssimo na ocupação dos novos mercados foi desempenhado pelas agências de publicidade americanas. McCann-Erickson e J. Warter Thompson eram as principais e tinham seu trabalho coordenado diretamente pelo Departamento de Estado. Para se ter uma ideia a McCann-Erickson , nos anos 60, possuía 70 escritórios e empregava 4619 pessoas, em 37 países, já a J. Warter Thompson tinha 1110 funcionários, somente na sede de Londres. Os Estados Unidos tinham 46 agências atuando no exterior, com 382 filiais. Destas 21 agências em sociedade com britânicos, 20 com alemães ocidentais e 12 com franceses. No Brasil atuavam 15 agências, todas elas com instruções absolutamente claras de quem patrocinar.
No início dos anos 50, Henry Luce, do grupo Time-Life, já estava luxuosamente instalado em sua nova sede de 70 andares na área mais nobre de Manhattan, negócio imobiliário que fechou com Nelson Rockefeller e seu amigo Adolf Berle, embaixador americano no Brasil na época do primeiro golpe contra o presidente Getúlio Vargas. Luce mantinha fortes relações com os irmãos Cesar e Victor Civita, ítalo-americanos nascidos em Nova Iorque. Cesar foi para a Argentina em 1941 onde montou a Editorial Abril, como representante da companhia Walt Disney, já Victor, em 1950, chega ao Brasil e organiza a Editora Abril. Neste mesmo período seu filho, Roberto Civita, faz um estágio de um ano e meio na revista Time, sob a tutela de Luce e logo retorna para ajudar o pai.
Poucos anos depois, o mercado editorial brasileiro está plenamente ocupado por centenas de publicações que cantavam em prosa e verso o american way of life. Somente a Abril, financiada amplamente pelas grandes empresas americanas, edita diversas revistas: Claudia, Quatro Rodas, Capricho, Intervalo, Manequim, Transporte Moderno, Máquinas e Metais, Química e Derivados, Contigo, Noiva, Mickey, Pato Donald, Zé Carioca, Almanaque Tio Patinhas, a Bíblia Mais Bela do Mundo, além de diversos livros escolares.
Em 1957, uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, comprova que “O Estado de São Paulo”, “O Globo” e “Correio da Manhã” foram remunerados pela publicidade estrangeira para moverem campanhas contra a nacionalização do petróleo.
Em 1962, o grupo Time-Life encontra seu parceiro ideal para entrar de vez no principal ramo das comunicações, a Televisão. A recém-fundada TV Globo, de Roberto Marinho. Era uma estranha sociedade. O capital da Rede Globo era de 600 milhões de cruzeiros, pouco mais de 200 mil dólares, ao câmbio da época. O aporte dado “por empréstimo” pela Time-Life era de seis milhões de dólares e a empresa tinha um capital dez mil vezes maior.
Como denunciou o deputado João Calmon, presidente da Abert (Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão): “Trata-se de uma competição irresistível, porque além de receber oito bilhões de cruzeiros em doze meses, uma média de 700 milhões por mês, a TV Globo recebe do Grupo Time-Life três filmes de longa metragem por dia – por dia, repito... Só um ‘package’, um pacote de três filmes diários durante o ano todo, custa na melhor das hipóteses, dois milhões de dólares” (HERZ, p.220, 2009).
O Brasil e o mundo estão em efervescência. A tensão é crescente com revoluções vitoriosas na China e em Cuba. A luta pela independência e soberania das nações cresce em todos continentes e os EUA colocam em marcha golpes militares por todo o planeta. A Guerra Fria está em um ponto agudo.
É nesse quadro que a Comissão de Assuntos Estrangeiros do Congresso dos EUA, em abril de 1964, no relatório “Winning the Cold War. The O.S. Ideological Offensive” define:
“Por muitos anos os poderes militar e econômico, utilizados separadamente ou em conjunto, serviram de pilares da diplomacia. Atualmente ainda desempenham esta função, mas o recente aumento da influência das massas populares sobre os governos, associado a uma maior consciência por parte dos líderes no que se refere às aspirações do povo, devido às revoluções concomitantes do século XX, criou uma nova dimensão para as operações de política externa. Certos objetivos dessa política podem ser colimados tratando-se diretamente com o povo dos países estrangeiros, em vez de tratar com seus governos. Através do uso de modernos instrumentos e técnicas de comunicação, pode-se hoje em dia atingir grupos numerosos ou influentes nas populações nacionais – para informá-los, influenciar-lhes as atitudes e, às vezes, talvez, até mesmo motivá-los para uma determinada linha de ação. Esses grupos, por sua vez, são capazes de exercer pressões notáveis e até mesmo decisivas sobre seus governos” (SCHILLER, p.23, 1976).
A ordem estava dada: “informar”, influenciar e motivar. A rede está montada, o financiamento definido.
O jornalista e grande nacionalista, Genival Rabelo, exatamente nesta hora, denuncia no jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro: “Há, por trás do grupo (Abril), recursos econômicos de que não dispõem as editoras nacionais, porém muito mais importante do que isso está o apoio maciço que a indústria e as agências de publicidade americanas darão ao próximo lançamento do Sr. Victor Civita, a exemplo do que já fizeram com as suas 18 publicações em circulação, bem como as revistas do grupo norte-americano Vision Inc.” (RABELO, p.38, 1966)
Mas é necessário mais. É preciso enfraquecer, calar e quebrar tudo que seja contrário aos interesses dos monopólios, tudo que possa prejudicar os interesses das corporações. A General Eletric, General Motors, Ford, Standard Oil, DuPont, IBM, Dow Chemical, Monsanto, Motorola, Xerox, Jonhson & Jonhson e seus bancos J. P. Morgan, Citibank, Chase Manhattan precisam estar seguros para praticar sua concorrência desleal, para remeter lucros sem controle, para desnacionalizar as riquezas do país se apossando das reservas minerais.
Várias são as declarações, nesta época, que deixam claro qual o caminho traçado pelos EUA. Nas palavras de Robert Sarnoff, presidente da RCA – Radio Corporation of America – “a informação se tornará um artigo de primeira necessidade equivalente a energia no mundo econômico e haverá de funcionar como uma forma de moeda no comércio mundial, convertível em bens e serviços em toda parte” (SCHILLER, p.18, 1976). Já a Comissão Federal de Comunicações (FCC), em informe conjunto dos Ministérios do Exterior, Justiça e Defesa, afirmava: “as telecomunicações evoluíram de suporte essencial de nossas atividades internacionais para ser também um instrumento de política externa” (SCHILLER, p.24, 1976).
É esclarecedor o pensamento do delegado dos Estados Unidos nas Nações Unidas, vice-ministro das Relações Exteriores, George W. Ball, em pronunciamento na Associação Comercial de Nova Iorque:
“Somente nos últimos vinte anos é que a empresa multinacional conseguiu plenamente seus direitos. Atualmente, os limites entre comércio e indústria nacionais e estrangeiros já não são muito claros em muitas empresas. Poucas coisas de maior esperança para o futuro do que a crescente determinação do empresariado americano de não mais considerar fronteiras nacionais como demarcação do horizonte de sua atividade empresarial” (SCHILLER, p.27, 1976).
A ação desencadeada pelos interesses externos já havia produzido a falência de muitos órgãos de imprensa nacionais e, por outro lado, despertado a consciência de muitos brasileiros de como os monopólios utilizam seu poder de pressão e de chantagem. Em 1963, o publicitário e jornalista Marcus Pereira afirmava em debate na TV Tupi, em São Paulo: “Em última análise, a questão envolve a velha e romântica tese da liberdade de imprensa, tão velha como a própria imprensa. Acontece que a imprensa precisa sobreviver, e, para isso, depende do anunciante. Quando esse anunciante é anônimo, pequeno e disperso não pode exercer pressão, por razões óbvias. É o caso das seções de ‘classificados’ dos jornais. Mas poucos jornais têm ‘classificados’ em quantidade expressiva. A maioria dos jornais e a totalidade das revistas vivem da publicidade comercial e industrial, dos chamados grandes anunciantes. Acho que posso parar por aqui, porque até para os menos afoitos já adivinharam a conclusão” (RABELO, p.56, 1966).
Não é difícil perceber o quanto a submissão aos interesses econômicos estrangeiros levou a dita “grande mídia” brasileira a se afastar da nação. A se tornar, ao longo dos anos, em uma peça chave da política do Imperialismo. Em praticamente todos os principais momentos da vida nacional se inclinaram para o golpismo e a traição. Já no primeiro golpe contra Getúlio, depois, contra sua eleição, contra sua posse, contra a criação da Petrobrás, contra a eleição de Juscelino, contra João Goulart, contra as reformas de base, apoiando a Ditadura, apoiando a política econômica de Collor, apoiando Fernando Henrique e suas privatizações, atacando Lula.
Hoje, ela novamente tem lado: o das concessões de estradas, portos e aeroportos, o dos leilões de privatização do petróleo e da necessidade da elevação das taxas de juros, do controle do déficit público com evidentes restrições aos investimentos governamentais, ou seja, da aceitação de um neoliberalismo tardio.
Porque atuam desta forma? Genival Rabelo deu a resposta: “Um industrial inteligente desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro me fez outro dia, esta observação, em forma de desafio: ‘Dou-lhe um doce, se nos últimos cinco anos você pegar uma edição de O Globo que não estampe na primeira página uma notícia qualquer da vida americana, dos feitos americanos, da indústria americana, do desenvolvimento científico americano, das vitórias e bombardeios americanos. A coisa é tão ostensiva que, muita vez, sem ter o que publicar sobre os Estados Unidos na primeira página, estando o espaço reservado para esse fim, o secretário do jornal abre manchete para a volta às aulas na cidade de Tampa, Miami, Los Angeles, Chicago ou Nova Iorque. Você não encontra a volta às aulas em Paris, Nice, Marselha, ou outra cidade qualquer da França, na primeira pagina de O Globo, porque, de fato, isso não interessa a ninguém. Logo, não pode deixar de haver dólar por trás de tudo isso...’ Outro amigo presente, no momento, e sendo homem de publicidade concluiu, deslumbrado com seu próprio achado: ‘É por isso que O Globo não aceita anúncio para a primeira página. Ela já está vendida. É isso. É isso!’. ‘E muito bem vendida, meu caro – arrematou o industrial – A peso de ouro’ ” (RABELO, p.258, 1966).
(*) Delegado à Conferência Nacional de Comunicação, Secretário Municipal de Comunicação em São Carlos entre 2007 e 2012 e membro do Partido Pátria Livre.
Referências:
COLBY, G; DENNETT, C. Seja feita a vossa vontade: a conquista da Amazônia, Nelson Rockefeller e o evangelismo na idade do Petróleo. Tradução: Jamari França. Rio de Janeiro: Record, 1998.
HERZ, D. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Dom Quixote, 2009. Coleção Poder, Mídia e Direitos Humanos.
RABELO, G. O Capital Estrangeiro na Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
SCHILLER, H. I. O Império norte-americano das comunicações. Tradução: Tereza Lúcia Halliday Petrópolis: Vozes, 1976.
sábado, 15 de junho de 2013
segunda-feira, 10 de junho de 2013
POR QUE ME UFANO DO MEU ESTADO
CELSO, Afonso. Por que me ufano do meu país. Rio de Janeiro: Laemert & C. Livreiros - Editores, 1908.
É hoje verdade geralmente aceita que, para a formação do povo brasileiro, concorreram três elementos: o selvagem americano, o negro africano e o português.
Do cruzamento das três raças resultou o mestiço que constitui mais de metade da nossa população.
Qualquer daqueles elementos, bem como o resultante deles, possui qualidades de que nos devemos ensoberbecer. Nenhum deles fez mal a humanidade ou a deprecia. E se não, vejamos.
Na carta em que Pero Vaz de Caminha comunica a El-Rei D. Manoel o descobrimento de Cabral, narra ele o primeiro encontro entre a gente civilizada e os aborígenes.
Conforme já acentuou uma voz eloqüente em ocasião solene (a abertura do Congresso Jurídico Americano, de 1900) as impressões oriundas desse primeiro encontro foram todas favoráveis aos índios. Mostraram-se bondosos, serviçais, confiantes, sociáveis, no seu amistoso acolhimento. A um aceno, depõem as armas. Não trepidam alguns em dormir nas naus recém-vindas e desconhecidas. Recebem outros em suas míseras choças os portugueses que se embrenharam pela nova terra.
Restituem à mais leve reclamação, objetos subtraídos. Entabolam relações pacíficas, sem violência nem fraude. Ajudam os hóspedes a conduzir para o sítio mais próprio a cruz talhada na floresta virgem. Assistem respeitosos à missa e ao sermão de Frei Henrique, imitando os gestos devotos dos cristãos. Tratam com humanidade os degredados deixados nas suas plagas e esses degredados vivem serenamente, entre eles, formam família, desposando índias. Revelam, numa palavra, nobres e raros predicados.
E sempre sucedeu mais ou menos assim. Revoltaram-se quando se lhes procurou tirar a independência, submetendo-os à servidão.
Pondo de parte certas tribos nativamente ferozes, o geral dos nossos aborígenes manifestou de ordinário boas disposições, acessíveis à catequese dos missionários, jamais refratários à melhoria. Houve os que trucidaram o bispo náufrago D. Pero Fernandes Sardinha e cerca de 100 pessoas de sua comitiva, conservando-se a tradição de que, depois desse dia, nenhuma flor ou erva nasceu mais no lugar, — outrora fértil e belo, — da medonha hecatombe. A crueldade, porém, era exceção.
Praticavam largamente a hospitalidade. Todos os cronistas e historiadores nacionais notam-lhes os hábitos hospitaleiros, devidos talvez a superstições religiosas. Entre as atribuições do cacique figurava a de acolher e guiar os hóspedes da taba.
No meio dos selvagens ou descendentes de selvagens brasileiros, sobresaem não poucos homens notáveis.
Tibiriçá, sogro de João Ramalho, muito auxiliou os jesuítas.
Araribóia ajudou os portugueses a repelirem os franceses do Rio de Janeiro.
De Araribóia narra um historiador que indo visitar o governador Salema, deu-lhe este cadeira e ele se assentou cavalgando uma perna sobre a outra conforme costumava. Advertiu-lhe o governador por meio do intérprete não ser aquela boa cortesia quando falava com representante d’El-Rei. Não sem cólera e arrogância respondeu o índio: “Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a El-Rei, não estranharas dar-lhes agora este pequeno descanso, mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para a minha aldeia, onde nós não curamos destes pontos, e não tornarei mais à tua corte.”
Cunhambebe foi amigo de Anchieta. O pai de Cunhambebe, chefe tamoio, celebrizou-se como almirante de uma esquadrilha de canoas muita vez vitoriosa em combates com os navios portugueses.
Jaraguari, conforme narra Southey, foi acusado pelos portugueses, de quem era aliado, durante a guerra contra os holandeses, de haver desertado para estes. Protestou, alegando ter ido buscar entre os inimigos a mulher e os filhos. Incrédulos, metem-no os portugueses 8 anos num cárcere, donde o tiram os holandeses vitoriosos. Vendo-se solto, dirige-se à sua tribo e lhe diz: “sangram ainda os sinais das minhas cadeias; mas é a culpa, não o castigo que infama. Quanto pior me trataram os portugueses tanto maior será o vosso e o meu merecimento conservando-nos fiéis ao serviço deles, especialmente agora que o inimigo os aperta.” E, de fato, levou aos seus condenadores forte contingente.
Jaraguari era tio de Antônio Filipe Camarão, Poti, um dos heróis da epopéia Pernambucana. Tais os serviços de Camarão, que Filipe IV de Espanha concedeu-lhe o título de dom, a comenda de Cristo e o posto de governador e capitão general de todos os índios. Pintam-no os contemporâneos afável com os seus subordinados, cortês com estranhos, cheio de dignidade com os superiores, sempre preocupado de manter ileso o decoro.
Quando Antônio Vieira foi preso no Pará por um motim triunfante contra os jesuítas, só uma índia que lhe era agradecida ousou levar-lhe alimento ao calabouço, através as sentinelas furiosas. Ameaçaram a coitada de ir queimar-lhe a choça. “Queimem, respondeu; com o fogo cozinharei a comida para o padre.”
Assim, sem exageros de fantasia, encontram-se na história dos nossos índios traços sublimes. E quantas figuras lendárias, como a de Paraguaçu, afilhada de Catarina de Medicis, levada à França por seu esposo Diogo Alvares, o Caramuru, e a de Moema, apaixonada do mesmo, seguindo a nado o barco em que ele ia, até exausta, desaparecer nas ondas?!...
O próprio governo da metrópole reconheceu oficialmente a superioridade dos indígenas brasileiros (alvará de 4 de Abril de 1755) determinando que os vassalos do reino na América que casassem com índias, não ficariam por isso com infâmia alguma, antes se fariam dignos da atenção régia, e quando alguns filhos ou descendentes desse matrimônio trouxessem requerimentos perante El-Rei, lhe fizessem saber esta qualidade para, em razão dela, atendê-los mais particularmente.
João Francisco Lisboa faz curioso paralelo entre os costumes dos selvagens brasileiros e os dos antigos germanos, imortalizados por Tácito.
Livro integralmente disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ufano.html
É hoje verdade geralmente aceita que, para a formação do povo brasileiro, concorreram três elementos: o selvagem americano, o negro africano e o português.
Do cruzamento das três raças resultou o mestiço que constitui mais de metade da nossa população.
Qualquer daqueles elementos, bem como o resultante deles, possui qualidades de que nos devemos ensoberbecer. Nenhum deles fez mal a humanidade ou a deprecia. E se não, vejamos.
Na carta em que Pero Vaz de Caminha comunica a El-Rei D. Manoel o descobrimento de Cabral, narra ele o primeiro encontro entre a gente civilizada e os aborígenes.
Conforme já acentuou uma voz eloqüente em ocasião solene (a abertura do Congresso Jurídico Americano, de 1900) as impressões oriundas desse primeiro encontro foram todas favoráveis aos índios. Mostraram-se bondosos, serviçais, confiantes, sociáveis, no seu amistoso acolhimento. A um aceno, depõem as armas. Não trepidam alguns em dormir nas naus recém-vindas e desconhecidas. Recebem outros em suas míseras choças os portugueses que se embrenharam pela nova terra.
Restituem à mais leve reclamação, objetos subtraídos. Entabolam relações pacíficas, sem violência nem fraude. Ajudam os hóspedes a conduzir para o sítio mais próprio a cruz talhada na floresta virgem. Assistem respeitosos à missa e ao sermão de Frei Henrique, imitando os gestos devotos dos cristãos. Tratam com humanidade os degredados deixados nas suas plagas e esses degredados vivem serenamente, entre eles, formam família, desposando índias. Revelam, numa palavra, nobres e raros predicados.
E sempre sucedeu mais ou menos assim. Revoltaram-se quando se lhes procurou tirar a independência, submetendo-os à servidão.
Pondo de parte certas tribos nativamente ferozes, o geral dos nossos aborígenes manifestou de ordinário boas disposições, acessíveis à catequese dos missionários, jamais refratários à melhoria. Houve os que trucidaram o bispo náufrago D. Pero Fernandes Sardinha e cerca de 100 pessoas de sua comitiva, conservando-se a tradição de que, depois desse dia, nenhuma flor ou erva nasceu mais no lugar, — outrora fértil e belo, — da medonha hecatombe. A crueldade, porém, era exceção.
Praticavam largamente a hospitalidade. Todos os cronistas e historiadores nacionais notam-lhes os hábitos hospitaleiros, devidos talvez a superstições religiosas. Entre as atribuições do cacique figurava a de acolher e guiar os hóspedes da taba.
No meio dos selvagens ou descendentes de selvagens brasileiros, sobresaem não poucos homens notáveis.
Tibiriçá, sogro de João Ramalho, muito auxiliou os jesuítas.
Araribóia ajudou os portugueses a repelirem os franceses do Rio de Janeiro.
De Araribóia narra um historiador que indo visitar o governador Salema, deu-lhe este cadeira e ele se assentou cavalgando uma perna sobre a outra conforme costumava. Advertiu-lhe o governador por meio do intérprete não ser aquela boa cortesia quando falava com representante d’El-Rei. Não sem cólera e arrogância respondeu o índio: “Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a El-Rei, não estranharas dar-lhes agora este pequeno descanso, mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para a minha aldeia, onde nós não curamos destes pontos, e não tornarei mais à tua corte.”
Cunhambebe foi amigo de Anchieta. O pai de Cunhambebe, chefe tamoio, celebrizou-se como almirante de uma esquadrilha de canoas muita vez vitoriosa em combates com os navios portugueses.
Jaraguari, conforme narra Southey, foi acusado pelos portugueses, de quem era aliado, durante a guerra contra os holandeses, de haver desertado para estes. Protestou, alegando ter ido buscar entre os inimigos a mulher e os filhos. Incrédulos, metem-no os portugueses 8 anos num cárcere, donde o tiram os holandeses vitoriosos. Vendo-se solto, dirige-se à sua tribo e lhe diz: “sangram ainda os sinais das minhas cadeias; mas é a culpa, não o castigo que infama. Quanto pior me trataram os portugueses tanto maior será o vosso e o meu merecimento conservando-nos fiéis ao serviço deles, especialmente agora que o inimigo os aperta.” E, de fato, levou aos seus condenadores forte contingente.
Jaraguari era tio de Antônio Filipe Camarão, Poti, um dos heróis da epopéia Pernambucana. Tais os serviços de Camarão, que Filipe IV de Espanha concedeu-lhe o título de dom, a comenda de Cristo e o posto de governador e capitão general de todos os índios. Pintam-no os contemporâneos afável com os seus subordinados, cortês com estranhos, cheio de dignidade com os superiores, sempre preocupado de manter ileso o decoro.
Quando Antônio Vieira foi preso no Pará por um motim triunfante contra os jesuítas, só uma índia que lhe era agradecida ousou levar-lhe alimento ao calabouço, através as sentinelas furiosas. Ameaçaram a coitada de ir queimar-lhe a choça. “Queimem, respondeu; com o fogo cozinharei a comida para o padre.”
Assim, sem exageros de fantasia, encontram-se na história dos nossos índios traços sublimes. E quantas figuras lendárias, como a de Paraguaçu, afilhada de Catarina de Medicis, levada à França por seu esposo Diogo Alvares, o Caramuru, e a de Moema, apaixonada do mesmo, seguindo a nado o barco em que ele ia, até exausta, desaparecer nas ondas?!...
O próprio governo da metrópole reconheceu oficialmente a superioridade dos indígenas brasileiros (alvará de 4 de Abril de 1755) determinando que os vassalos do reino na América que casassem com índias, não ficariam por isso com infâmia alguma, antes se fariam dignos da atenção régia, e quando alguns filhos ou descendentes desse matrimônio trouxessem requerimentos perante El-Rei, lhe fizessem saber esta qualidade para, em razão dela, atendê-los mais particularmente.
João Francisco Lisboa faz curioso paralelo entre os costumes dos selvagens brasileiros e os dos antigos germanos, imortalizados por Tácito.
Livro integralmente disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ufano.html
domingo, 9 de junho de 2013
ENREDO ENFADONHO
1982. Nabor Junior (PMDB) vencia as eleições em um frêmito popular por mudança, ordem, progresso. A democracia vencera a ditadura, os homens maus ficaram no passado. A ordem republicana exigia repelir o partido que representou o regime de exceção, o PDS, e nessa nobilíssima causa uniram-se jornalistas, movimentos sociais, partidos. A opinião pública. Os homens de bem. Viva a democracia. Viva.
Os jornais se mancomunam. Intelectuais, de esquina ou de gabinete, são uníssonos. Estamos no rumo certo.
1990. O PMDB, tão inescrupulosamente corrupto quanto qualquer general de óculos escuros da idade média brazuca, é apeado do poder. Lacaios mudam de lado, gritos indignados por renovação lotam as páginas dos jornais. Intelectuais intelectualizam. Notícias alardeiam "caos social", a "onda de violência" oriunda, supostamente, "da fraqueza das instituições". Contra isso, precisamos nos desenvolver, nos civilizar. Onde estão os homens bons? E agora, quem poderá nos defender?
Fora Nabor, é o grito dos indignados. A marcha dos homens de bem. A opinião pública. Os intelectuais.
Dá-se o milagre em 91: o PDS volta, triunfante, conduzido pelo destemido e jovial Edmundo Pinto de Almeida Neto. Hay gobierno, finalmente! Não guardamos mágoa de 64. Somos democráticos! Sejamos, também, civilizados. Conquistemos o nosso lugar na grande pátria brasileira.
1998. Edmundo posto, Edmundo morto. Romildo. Orleir. Oh, ilusão! Oh, mentirosos, canalhas, vigaristas! Não nos merecem. São maus. Como O-U-S-A-M nos negar o direito sagrado ao desenvolvimento? Por que nos roubam, se precisamos sair do atraso, das sombras da civilização? Precisamos de obras e seus milhares de empregos. De avenidas largas e seus engarrafamentos. De shoppings e sua teatralidade consumista.
Intelectuais.
A corrupção não nos representa porque é má. Não nos representa porque não pode nos tirar do atraso.
Precisamos ser outros, pois, não suportamos ser nós mesmos. Queremos "causar", mas, para isso, precisamos crescer, nos desenvolver. Pois não se vive na Amazônia sem progresso. Sem progresso somos seres sombrios, acocorados, sem auto-estima. Sem história.
Queremos ser, ao custo de varrer do mapa a última floresta do planeta, europeus nos trópicos. Não é para isso que nos preparam as escolas?
Multiplicam-se as ladainhas nos jornais, os panfletos nas ruas. Quem vencerá o dragão do atraso amazônico e nos civilizará? Quem nos transformará?
1999. Salve, Jorge! Rufam novamente os tambores. Desenvolvimento sustentável, florestania, resgate da auto-estima acreana. Palavras doces. Estamos salvos. Agora é diferente. Agora há uma frente "democrático-progressista" no poder.
Marx se revira no túmulo: "Ué, que porra é essa?", mas ninguém ouve.
Preferem escrever. E como escrevem! Rios de tinta, quilômetros de fotografias. Jorge almoçando, Jorge no aeroporto, Jorge com FHC, Jorge no seringal, Jorge com os índios, Jorge em campanha... e surgem os blogs: Jorge não é honesto, cuidado com o Jorge, Jorge não licitou, Jorge descumpriu dois incisos da constituição... e a crítica da eficiência, a busca pela qualidade total, dá ao homem o segundo mandato e também um terceiro, que ele transfere para o amigo Binho Marques.
Mas, oh, será que o povo foi traído novamente? Denúncias se proliferam, boatos se propagam, postagens se multiplicam: fulano viu desembargador recebendo sacola de dinheiro na garagem do empresário, sicrano jura que não sei que assessor ecologista virou pecuarista milionário...
Descendentes direitos de Jean-Paul Marat, defensores da verdadeira política, da honestidade, dos valores cristãos, da produção e distribuição de riquezas, da força das instituições, revigoram-se. Não toleram corruptos se passando por santos. Querem os santos verdadeiros.
Salvem-nos de Jorge! Salvem-nos de Sebastião!
2013. Abrem-se as portas do inferno. Dele, virão novos heróis. Todos, orando, clamam por um novo general. Um novo pai. Um novo líder. Qualquer um, desde que finalmente nos insira na ordem mundial antes do próprio bolso. Que nos mude para sempre. Amém.
Que enredo enfadonho...
Assinar:
Postagens (Atom)