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APONTAMENTOS PARA O DIA SEGUINTE


A manifestação denominada Dia do Basta, que reuniu uma multidão em Rio Branco, no último sábado, é um ato histórico em si mesmo.

Há muito tempo os espaços da cidade não eram preenchidos espontaneamente com tanta pluralidade, tanta diversidade de idéias.

Reunir essa balbúrdia em um lugar só é possível quando há interesses mínimos em comum.

Por outro lado, não é de hoje que comoções sociais de larga escala costumam tocar apenas tangencialmente as suas causas. Zygmunt Bauman, um dos teóricos da pós-modernidade, credita esse fenômeno à substituição das referências políticas tradicionais por grupos dispersos de pertencimento: rappers, punks, gays, feministas etc.

Segundo Bauman, como cada um desses grupos tem agendas e interesses próprios, sua manifestação coletiva, nas raras vezes em que ocorre, não atua na esfera do rompimento da ordem. Atua em reivindicações específicas para cada grupo - portanto, atua na esfera da afirmação da ordem.

A despeito de Bauman, ouso afirmar que eventos como o Dia do Basta, em Rio Branco, e outros, marcados por uma miríade aparentemente desconexa de reivindicações de todo tipo, aponta precisamente para uma identificação coletiva, em um nível que poderíamos chamar de sintomatologia da perda.

Há uma intersubjetividade latente, subjacente. Inconsciente.

Algo liga os manifestantes, e esse algo é o desgaste das fórmulas políticas tradicionais. Como não consegue ultrapassar certos anteparos ideológicos que protegem a existência - e a irritante persistência - dessas fórmulas, o protesto se volta contra a sua manifestação direta: a gestão pública.

Além de reivindicar pautas pontuais para tribos e guetos (embora muitas dessas pautas estejam também nas manifestações), protesta-se ainda contra os sintomas mais claros da inversão do caráter público, coletivo, da vontade social. Esses sintomas variam de projetos de lei que viabilizam ou facilitam o furto do patrimônio público (PEC 37, cartéis de empresas de ônibus, falta de clareza nas prioridades orçamentárias etc) até atos administrativos viciados ou claramente definidos em favor de apadrinhados (soltura dos presos da operação G7, ausência de democratização dos canais públicos de comunicação, empregabilidade sem critérios para aliados etc).

Nesse sentido, é notável que, no caso de Rio Branco, nenhuma das reivindicações dirigidas ao Estado tenha sido clara, no sentido da sua operacionalidade imediata. Vejamos:

. O fim da tramitação da PEC 37 depende de um acordo entre os partidos no Congresso Nacional - partidos cuja legitimidade política os próprios manifestantes questionam.

. A prisão dos membros do G7 não pode ser atendida de pronto pelo Judiciário - é preciso que o Supremo Tribunal Federal (STF), para onde o processo foi deslocado, coloque o tema em pauta e considere, em caráter liminar, que os réus oferecem algum perigo às investigações (evidentemente, advogados reagirão).

. A redução e a transparência dos gastos públicos foi contemplada, virtualmente, pela presidente Dilma Rousseff, em pronunciamento de rede nacional de rádio e televisão. Porém, se essas medidas serão satisfatórias para os manifestantes, é outra história.

Uma nota paralela: em 2000, FHC conseguiu aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) embalado por protestos parecidos. A lei não impediu a apropriação indevida do erário - mas calou os manifestantes, na época.

Houve ainda protestos dirigidos à própria Dilma Rousseff, que não está envolvida em qualquer denúncia de desvio de recursos - em que pese a destinação de verbas bilionárias, via financiamentos públicos, para a construção e reforma de estádios de futebol - leia-se: empreiteiras; leia-se: doações de campanha - até 2014.

Altino Machado, Letícia Mamed, Armando Pompermaier, Lindomar Padilha e outros acham que o protesto principal, no caso específico do Acre, foi contra o governo Tião Viana.

Concordo em parte, mas somente porque Tião e Jorge Viana, Aníbal Diniz, Dilma Rousseff, Lula, Petecão, Flaviano Melo, Antonia Lucia, Gladson Cameli e outros estão imersos precisamente no sistema que está em crise. Todas as ações desses e de outros indivíduos indicam apenas o seu pertencimento inegável a uma ordem social que manejam e na qual se movem com muita perspicácia. Esta ordem se alimenta de ciclos intermináveis de crises e substituições, de tal forma que, na maioria dos sites de informação, é possível ver matérias de políticos de oposição prestando solidariedade aos manifestantes.

Esta solidariedade, sabem eles, pode render votos em 2014.

São como os vermes: alimentam-se das carcaças dos mortos.

O movimento, portanto, foi sábio em rechaçar os partidos nesse momento. É uma tentativa espontânea de encontrar a verdadeira causa do problema. O mecanismo escondido pelas aparências. O motivo pelo qual a política representativa, com suas siglas e tramitações infinitas, virou um cartel de vigaristas e parasitas.

Por essa exata razão não há clareza nas reivindicações. Não é um subproduto da despolitização do brasileiro, como afirmam alguns vanguardistas que ainda não entenderam a dimensão do problema em andamento. Nos fenômenos da fala, titubeia-se quando dois pensamentos opostos e simultâneos lutam na mente. Na política, vacila-se diante da incoerência de reivindicar a quem, ao mesmo tempo, se rechaça.

O fato desse mecanismo, a reivindicação dirigida a quem se desconfia, ser o único aceito pelas instituições dominantes, permanece no momento intocado. Quem o desafia, nos protestos ou no cotidiano, é imediatamente marginalizado ou mesmo eliminado.

Em breve, a continuar o conflito nas ruas, e se não for cooptado por alguma agenda legislativa, esse pequeno detalhe deve ser confrontado. O resultado desse confronto definirá o vencedor.

Perde tempo quem quem restringe essa luta apenas ao governo do PT. A luta é por uma nova forma de fazer política, uma forma que ainda não existe, que é apenas intuída, mas que com certeza não inclui negociar com o Estado para ver meia dúzia de reivindicações atendidas - certamente com algumas mudanças no caminho, durante o processo de tramitação legislativa (como já citado isso aconteceu em 2000, com a LRF, mas vem acontecendo sistematicamente em nosso país: com os lineamentos da ECO Rio 92, com a Constituição, com a derrubada (?) do Collor, com a redução das passagens de ônibus em São Paulo etc).

A crise, adaptando toscamente uma expressão do István Meszáros, é estrutural - e por isso inclui o Tião Viana. O PT, assim como todas as siglas que disputam espaço no sistema político brasileiro e mundial, à direita e à esquerda, integra organicamente o sistema em crise.

O mesmo vale para intelectuais de esquerda que defendem a presença de partidos nessa onda mundial de protestos. A maioria se vale de leituras conjunturais derivadas de seus próprios partidos, surgidos de facções inicialmente minoritárias da II Internacional, que propunha avançar por dentro do sistema político mundial com reformas favoráveis à classe trabalhadora.

A história, que não é linear nem estática, demonstrou que essa agenda, em períodos de crise estrutural, acentua as contradições e promove o conformismo e a cooptação - caso do Acre.

Intelectuais que defendem a presença de partidos não entenderam que o avanço do capitalismo colocou em xeque o próprio capitalismo, a sua representatividade social. É isso, ou a expressão política disso, que se contesta nas ruas.

Por isso mesmo o PT, ao gerir a máquina pública acreana, não foi capaz de unificar "todos os povos do mundo num só ideal e num só pensamento de unidade socialista", como escreveu Chico Mendes em seu trágico bilhete endereçado aos jovens do ano de 2120. A tentativa de construir uma identidade coletiva baseada no passado específico do Acre, esforço dos Vianas desde 1999, é o oposto simétrico disso. É um auto-engano, mas um auto-engano sintomático.

Como o mesmo fenômeno ocorreu no Brasil e em outras partes do mundo, escancarando o caminho para a privatização final da esfera política - para manter a governabilidade, para garantir as doações de campanha etc - ameaçou-se operar o fim da política. Daí a agenda dos protestos: quando os interesses públicos se tornaram privados? Como fazer os interesses públicos serem válidos? Como fazer outra política?

Acredito que a força própria das manifestações, as conexões naturais entre causas e efeitos para quem sofre as violências do cotidiano, vão demonstrar a inviabilidade que é pedir moralização administrativa ou mecanismos jurídicos de controle da corrupção a quem se beneficia de tudo isso. Nesse sentido, o movimento estudantil tem o papel extremamente importante de fazer as conexões entre causas e efeitos, entre as origens materiais dessas e de outras práticas para explicar como a ideologia do controle da sociedade sobre as instituições é uma prática de controle das instituições sobre a sociedade.

Se estas associações ficarem claras, será possível entender por que a redução de 20 centavos na passagem de ônibus, em São Paulo, é uma faísca em um oceano de gasolina.

Pode-se argumentar que o Acre é muito pequeno para tais debates complexos e que, na verdade, precisamos de desenvolvimento e educação para que possamos ser responsáveis em nossos desejos. Este é um dos discursos ideológicos que virão. Eles buscam desativar as ameaças potenciais.

Um bom antídoto é pensar que o Acre não existe. A Amazônia não existe. O Brasil não existe. Nenhum país, nenhum Estado, nenhum município, em qualquer quadrante do mundo, existe. Tudo é construído. simbolizado, narrado. Nós é que criamos os significados, como considerar que há uma só democracia, que o único meio de mudanças é negociar com as autoridades etc.

No entanto, todos os homens, de todos os lugares e de todos os tempos, apenas falam línguas diversas e vestem roupas diferentes. Essa perspectiva deve ser lembrada e celebrada: não estamos sós. Enquanto protestamos, em outros lugares do mundo outros protestam também, pelas mesmas razões - apesar de, em muitos casos, se voltarem apenas contra seus governos em busca de outros mais eficazes. Em muitos outros lugares, alguns também repintam os palácios que picharam.

Construir o mundo, criar novos símbolos. Esta é a tarefa do tempo presente.

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