Pular para o conteúdo principal

POR QUE ME UFANO DO MEU ESTADO

CELSO, Afonso. Por que me ufano do meu país. Rio de Janeiro: Laemert & C. Livreiros - Editores, 1908.


É hoje verdade geralmente aceita que, para a formação do povo brasileiro, concorreram três elementos: o selvagem americano, o negro africano e o português.

Do cruzamento das três raças resultou o mestiço que constitui mais de metade da nossa população.
Qualquer daqueles elementos, bem como o resultante deles, possui qualidades de que nos devemos ensoberbecer. Nenhum deles fez mal a humanidade ou a deprecia. E se não, vejamos.

Na carta em que Pero Vaz de Caminha comunica a El-Rei D. Manoel o descobrimento de Cabral, narra ele o primeiro encontro entre a gente civilizada e os aborígenes.

Conforme já acentuou uma voz eloqüente em ocasião solene (a abertura do Congresso Jurídico Americano, de 1900) as impressões oriundas desse primeiro encontro foram todas favoráveis aos índios. Mostraram-se bondosos, serviçais, confiantes, sociáveis, no seu amistoso acolhimento. A um aceno, depõem as armas. Não trepidam alguns em dormir nas naus recém-vindas e desconhecidas. Recebem outros em suas míseras choças os portugueses que se embrenharam pela nova terra.

Restituem à mais leve reclamação, objetos subtraídos. Entabolam relações pacíficas, sem violência nem fraude. Ajudam os hóspedes a conduzir para o sítio mais próprio a cruz talhada na floresta virgem. Assistem respeitosos à missa e ao sermão de Frei Henrique, imitando os gestos devotos dos cristãos. Tratam com humanidade os degredados deixados nas suas plagas e esses degredados vivem serenamente, entre eles, formam família, desposando índias. Revelam, numa palavra, nobres e raros predicados.

E sempre sucedeu mais ou menos assim. Revoltaram-se quando se lhes procurou tirar a independência, submetendo-os à servidão.

Pondo de parte certas tribos nativamente ferozes, o geral dos nossos aborígenes manifestou de ordinário boas disposições, acessíveis à catequese dos missionários, jamais refratários à melhoria. Houve os que trucidaram o bispo náufrago D. Pero Fernandes Sardinha e cerca de 100 pessoas de sua comitiva, conservando-se a tradição de que, depois desse dia, nenhuma flor ou erva nasceu mais no lugar, — outrora fértil e belo, — da medonha hecatombe. A crueldade, porém, era exceção.

Praticavam largamente a hospitalidade. Todos os cronistas e historiadores nacionais notam-lhes os hábitos hospitaleiros, devidos talvez a superstições religiosas. Entre as atribuições do cacique figurava a de acolher e guiar os hóspedes da taba.

No meio dos selvagens ou descendentes de selvagens brasileiros, sobresaem não poucos homens notáveis.

Tibiriçá, sogro de João Ramalho, muito auxiliou os jesuítas.

Araribóia ajudou os portugueses a repelirem os franceses do Rio de Janeiro.

De Araribóia narra um historiador que indo visitar o governador Salema, deu-lhe este cadeira e ele se assentou cavalgando uma perna sobre a outra conforme costumava. Advertiu-lhe o governador por meio do intérprete não ser aquela boa cortesia quando falava com representante d’El-Rei. Não sem cólera e arrogância respondeu o índio: “Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a El-Rei, não estranharas dar-lhes agora este pequeno descanso, mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para a minha aldeia, onde nós não curamos destes pontos, e não tornarei mais à tua corte.”

Cunhambebe foi amigo de Anchieta. O pai de Cunhambebe, chefe tamoio, celebrizou-se como almirante de uma esquadrilha de canoas muita vez vitoriosa em combates com os navios portugueses.
Jaraguari, conforme narra Southey, foi acusado pelos portugueses, de quem era aliado, durante a guerra contra os holandeses, de haver desertado para estes. Protestou, alegando ter ido buscar entre os inimigos a mulher e os filhos. Incrédulos, metem-no os portugueses 8 anos num cárcere, donde o tiram os holandeses vitoriosos. Vendo-se solto, dirige-se à sua tribo e lhe diz: “sangram ainda os sinais das minhas cadeias; mas é a culpa, não o castigo que infama. Quanto pior me trataram os portugueses tanto maior será o vosso e o meu merecimento conservando-nos fiéis ao serviço deles, especialmente agora que o inimigo os aperta.” E, de fato, levou aos seus condenadores forte contingente.

Jaraguari era tio de Antônio Filipe Camarão, Poti, um dos heróis da epopéia Pernambucana. Tais os serviços de Camarão, que Filipe IV de Espanha concedeu-lhe o título de dom, a comenda de Cristo e o posto de governador e capitão general de todos os índios. Pintam-no os contemporâneos afável com os seus subordinados, cortês com estranhos, cheio de dignidade com os superiores, sempre preocupado de manter ileso o decoro.

Quando Antônio Vieira foi preso no Pará por um motim triunfante contra os jesuítas, só uma índia que lhe era agradecida ousou levar-lhe alimento ao calabouço, através as sentinelas furiosas. Ameaçaram a coitada de ir queimar-lhe a choça. “Queimem, respondeu; com o fogo cozinharei a comida para o padre.”

Assim, sem exageros de fantasia, encontram-se na história dos nossos índios traços sublimes. E quantas figuras lendárias, como a de Paraguaçu, afilhada de Catarina de Medicis, levada à França por seu esposo Diogo Alvares, o Caramuru, e a de Moema, apaixonada do mesmo, seguindo a nado o barco em que ele ia, até exausta, desaparecer nas ondas?!...

O próprio governo da metrópole reconheceu oficialmente a superioridade dos indígenas brasileiros (alvará de 4 de Abril de 1755) determinando que os vassalos do reino na América que casassem com índias, não ficariam por isso com infâmia alguma, antes se fariam dignos da atenção régia, e quando alguns filhos ou descendentes desse matrimônio trouxessem requerimentos perante El-Rei, lhe fizessem saber esta qualidade para, em razão dela, atendê-los mais particularmente.

João Francisco Lisboa faz curioso paralelo entre os costumes dos selvagens brasileiros e os dos antigos germanos, imortalizados por Tácito.


Livro integralmente disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ufano.html

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A XENOFOBIA NOSSA DE CADA DIA

Deixem-me entender. Em 11 de setembro passado houve uma tentativa de golpe civil na Bolívia, perpetrada pelos dirigentes de vários departamentos - equivalentes aos "estados" no Brasil - opositores ao presidente Evo Morales. Em Pando, departamento fronteiriço com o Brasil pelo Acre, cerca de 18 pessoas foram assassinadas e o número de desaparecidos ainda hoje é incerto. Por isso ainda em setembro a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) enviou ao local uma comissão de investigação composta por advogados, antropólogos, peritos criminais, jornalistas e outros profissionais de várias áreas e de vários países. A comissão visitou Cobija, Brasiléia e Epitaciolândia, conversou com os refugiados, com as famílias das vítimas e sobreviventes, visitou os locais de confronto, coletou provas materiais e depoimentos. Conclusão: houve mesmo uma tentativa de golpe (clique aqui para baixar o relatório final da Unasul). Estupros, torturas, assassinatos a sangue frio, racismo, houve de tudo um...

OS DEMÔNIOS DESCEM DO NORTE

Os movimentos autônomos de cunho religioso, notadamente os de cunho pentecostal e neopentecostal surgidos nos EUA desde meados do século XIX até a atualidade, são subprodutos de um capitalismo que necessitava de uma base ideológica para se sustentar em seus desatinos de exploração e criação de subsistemas para alimentar os mecanismos de dominação ideológica e manutenção de poderes da matriz do grande capital - os Estados Unidos. Na década de 70 praticamente todos os paises da América Latina estavam sob o domínio de sanguinárias ditaduras militares, cuja ideologia de cunho fascista era a resposta política à ameaça da Revolução Cubana que pretendia se expandir para outros países do subcontinente. Era o tempo da Teologia da Libertação, que, com seu viés ideológico de matriz marxista, contribuiu de forma efetiva para a organização dos trabalhadores e dos camponeses em sindicatos e movimentos agrários que restaram depois na criação do PT e do Movimento dos Sem-Terra (MST). A ação dess...

AINDA SOBRE CRISTIANISMO E PAZ SOCIAL

A propósito da postagem " Por que o Cristianismo não produz paz social " recebi o seguinte comentário do leitor Marcelino Freixo: Me permita fazer uma correção. Pelo Evangelho, a salvação do homem é um ato de graça, e não o resultado do amor ao próximo ou mesmo a Deus. O amor a Deus e ao próximo é o resultado de ter a certeza dessa salvação, conforme está escrito em Efésios 2:8-9: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie". Acho que isso invalida o argumento central do seu texto, que o cristianismo ensina que o amor é condição para se ter algo.