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SOBRE O DIA DO BASTA

Alunos da Universidade Federal do Acre (UFAC) realizam uma série de manifestações em Rio Branco. Aproveitam o calor dos protestos em várias capitais brasileiras, todas violentamente reprimidas pelas forças policiais. Já houve protestos em frente à sede do governo do Estado e no Terminal Urbano. No sábado haverá outro, marcado para as 16h30.

Os eventos miram claramente o governo do Estado, envolvido em uma crise sem precedentes depois que vários membros do primeiro escalão foram presos, acusados de cometer crimes de formação de cartel, falsidade ideológica, corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha, fraude em licitação e desvio de verbas públicas.

Anotem isso: depois do evento, políticos de várias matizes vão prestar solidariedade aos meninos para dizer que repudiam a "vergonhosa situação do Acre na mídia nacional", afirmarão que amam o Acre, que se colocam à disposição para diálogos com as lideranças etc. Alguns podem, inclusive, tentar posar ao lado de um ou dois organizadores para os holofotes.

É a campanha eleitoral antecipada. É, também, o limite claro de protestos contra a corrupção, pela democracia, pelo restabelecimento da ordem e coisas do tipo.

Espero, sinceramente, que eu esteja enganado, contrariando todas as expectativas, e que o evento não trate apenas disso. Se for assim, seu único efeito será abrir um vácuo para aproveitadores, populistas e parasitas de toda espécie surgirem como salvadores da pátria... ou do Estado!

Isso já ocorreu antes. Em 1998 eu era repórter novato do jornal Página 20 quando vi, com esses olhos que a terra há de comer, o atual senador Jorge Viana bradar em comício que "a vida vai melhorar" porque era chegado o momento do desenvolvimento, do crescimento, da geração de emprego, mas também da honestidade e da competência administrativa para o Acre. O governador na época era Orleir Cameli, do PPB, evolução inespontânea do PDS da ditadura. Orleir lutava para se manter no cargo enfrentando uma série de passeatas, protestos e assemelhados que ocupavam a capital.

Entre os manifestantes, além dos vários sindicatos, associações, artistas e outros segmentos sociais, estavam os estudantes. Como sempre, exigindo ordem. Progresso. O fim da corrupção. O bom governo. O bom Estado.

Em outras cidades, onde a ordem e o progresso levados pelos homens de bem já criaram favelas, esgotos, sistemas prisionais bestializadores, indústrias poderosas do tráfico de drogas e um estado de sobressalto permanente de todos contra todos, a população já percebeu que o problema é mais complicado. Mais grave.

Perceberam que o modelo de modernidade - que não escolhemos, que nos impuseram matando os que resistiam, mas que hoje defendemos com unhas e dentes - não funciona. Separação de poderes, Estado-Nação, partidos políticos, voto, sistema representativo, pleno emprego, toda a parafernália conceitual criada na Europa do século XVIII serviu para exportar os valores europeus para o "resto do mundo" (as colônias, nós) que vivia nas trevas da civilização.

No Brasil, chamaram isso de ordem e progresso.

No Acre, de modernização - e, mais recentemente, de "desenvolvimento sustentável".

Foi esse o contexto do fenômeno que levou pessoas racionais, em pleno domínio das suas faculdades mentais, a protestar contra um aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus na capital paulista. A pista está no próprio lema dos protestos: "Não é só 20 centavos". Não é mesmo: o caos no transporte público, que não justifica o aumento na tarifa, está conectado com outras formas de caos, todas promovidas pelo desenvolvimento, pelo crescimento. Pela ordem.

Suponho que, como eles, a juventude acreana não queira reforçar, e sim, destruir essa ordem.

Pelo sim, pelo não, vou acompanhar neste sábado, em frente ao Palácio Rio Branco, o Dia do Basta. Ou do Continua. A conferir.

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