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ODE AOS SERINGUEIROS!

De George Pereira Santos, capitão do Corpo de Bombeiros e chefe da Divisão de Defesa Civil da Prefeitura de Rio Branco, em entrevista ao Jornal do Meio-Dia, da TV estatal Aldeia, nesta antevéspera de Natal (23.12):

"Nós sabemos que toda a cidade de Rio Branco foi ocupada nas proximidades do rio, que também era a fonte do transporte na nossa região. É um problema social, cultural, político e econômico. Muitas pessoas já dependem dessas áreas alagadiças para a sua sobrevivência e mudar isso poderia ser comparado, pela magnitude que tem, a desfavelizar o Rio [de Janeiro], pois a ocupação daqueles morros é um problema socioeconômico também. Então, diante disso, o que fazemos é atuar informando aos moradores como lidar com os problemas na medida em que estes aparecerem".

O oficial parte de uma compreensão arrevesada do processo de ocupação das chamadas "partes baixas" de Rio Branco, invadidas anualmente, em maior ou menor escala, pelas águas do rio Acre. Essa compreensão é também a justificativa psicológica para manchetes do tipo "Rio sobe" ou "Rio desce", que o leitor verá em toda a imprensa local até meados de abril de 2009 e no mesmo período dos anos seguintes.

A ocupação dessas áreas não foi espontânea. Ela remonta à política de "preenchimento do vazio demográfico do Oeste", implementada pelos generais durante a Ditadura Militar e que gerou conflitos nos seringais acreanos em quantidade suficiente para iniciar o conhecido fenômeno do êxodo rural. É bem verdade que a migração interna já ocorria desde o fim do segundo ciclo da borracha, após a 2ª Guerra Mundial, mas a política de estímulo à pecuária pelo governo - federal e estadual - só reforçou e acelerou o processo.

É por isso que nesses dois períodos as migrações consistiam basicamente de seringueiros expulsos de suas terras. Muitos perderam tudo, tiveram as casas incendiadas e outros, com a falência do extrativismo e sob as ameaças dos pecuaristas, venderam as colocações a preços de banana. Ninguém se mudava "em busca de melhores condições de sobrevivência", como costuma dizer a propaganda oficial, mas simplesmente em busca de sobrevivência.

Essa é a origem real de bairros como Taquari, Santa Terezinha, Triângulo, Santa Inês, Mauri Sérgio, Areal e outros. Nada a ver com "a navegabilidade" do rio Acre.

Por que os bairros nasceram em regiões alagadiças? Porque terras desvalorizadas são mais baratas e grande parte era ainda desocupada. O seringueiro que migrava para a cidade ocupava o terreno e construía, devagar, a sua casa de paxiúba e palha (as casas de madeira vieram com a "democracia", isto é, com as "doações" dos candidatos nas campanhas eleitorais em troca de votos).

A ocupação das regiões baixas de Rio Branco foi uma necessidade, não uma ação espontânea de alguém que vende uma casa em outro lugar e escolhe, por irresponsabilidade ou equívoco, um terreno alagadiço para habitar. Pensar assim é não só evidenciar total ignorância sobre a nossa história recente como manifestar um asqueroso preconceito de classe social.

Se esse tipo de preconceito é intolerável no senso comum, inclusive na auto-imagem dos descendentes dos seringueiros expulsos para as "periferias", o que dizer quando o localizamos em alguém investido do poder público?

Poderia esse indivíduo desenvolver alguma política pública democrática (uma vez que é justamente nas periferias que vive hoje a maior parte da população rio-branquense)?

Poderiam as autoridades pensar em "combate ao crime" e ao mesmo tempo ignorar os crimes que os seus antecessores cometeram?

E nossa imprensa, por que não vai além do rio-sobe, rio-desce?



A foto é do site da Prefeitura de Rio Branco e mostra a pinguela do bairro Ayrton Sena, um dos primeiros atingidos nas enchentes do rio Acre. Clique na imagem para ampliar.

Comentários

Maria disse…
Josafá, a culpabilização das vítimas no Brasil é mais do que recorrente. Isso é uma constante no país inteiro. Onde vivo há uma enormidade de pessoas com dengue, mas o discurso é o mesmo: a culpa é da população.

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