Em 2008, no primeiro bloco da última entrevista que concedeu ao programa Gazeta Entrevista, da TV Gazeta, o governador Binho Marques mencionou algo como uma "mania" mundial. Essa mania seria a responsável pelo aumento da distância entre ricos e pobres não só no Acre, mas em todo o mundo, e só poderia ser combatida com a atitude das pessoas em - transcrevo - "não ter ânsia de acumular as coisas, viver com o básico, ter uma vida mais simples" etc.
Quero acrescentar que isso nada tem a ver com socialismo.
Socialismo é um modo de produção de riquezas, assim como o capitalismo. A diferença entre um e outro é que enquanto no capitalismo o trabalhador produz riqueza para um terceiro, no socialismo a riqueza é apropriada pelo próprio trabalhador.
E já que estamos falando dela, a velha pendenga, aproveito para esclarecer alguns pormenores, tendo em vista as abobrinhas que uns e outros andaram escrevendo aqui por perto. Os trechos em destaque são atalhos para explicações adicionais:
O socialismo quer tornar as pessoas iguais?
Não. No socialismo as riquezas são distribuídas de acordo com a quantidade de trabalho de cada pessoa. Se alguém trabalha mais, recebe mais porque se esforçou mais. Se alguém trabalha menos, recebe menos, mas sempre o suficiente para atender a todas as suas necessidades físicas, intelectuais, espirituais etc. A "igualdade" que o socialismo defende é apenas as condições que cada pessoa deve ter para trabalhar. Com igualdade de condições trabalha-se melhor.
O socialismo quer socializar a miséria?
O socialismo pretende criar riquezas em quantidade suficiente para atender às necessidades de todos os indivíduos. Nesse sentido, o acúmulo de riquezas por um indivíduo é considerado um absurdo, já que não é uma necessidade, mas um capricho. Isso não significa que cada pessoa deve ser necessariamente pobre, mas que a sociedade deve ser rica. Isso vai depender, entre outras coisas, da intensidade do trabalho coletivo e dos recursos tecnológicos existentes.
E o governo, como funciona no socialismo?
Isso é importante. No socialismo o Estado é gerenciado pelos trabalhadores. A expressão "ditadura do proletariado" usada por Karl Marx significa isso: os trabalhadores associados que dirigem não só as fábricas, mas também os órgãos de governo. Ou seja, ao invés de políticos profissionais, senadores, deputados, prefeitos etc, o socialismo defende que as decisões da sociedade sejam tomadas diretamente pela sociedade, isto é, pelos trabalhadores.
Nesse caso, por que os países socialistas atuais são ditaduras?
Se olharmos bem nenhum país hoje é governado pelo povo. Em Cuba, China, URSS e Coréia do Norte aconteceram revoluções com o objetivo de implantar o socialismo, mas na prática a maldita democracia representativa ainda não foi extinta. Então que fizeram os trabalhadores nesses países? Criaram sistemas mistos. Nos primórdios da URSS chegou-se a implantar o sistema de sovietes, mas a guerra contra o nazismo, o grande número de países, o oportunismo de alguns ambiciosos e outros motivos acabaram por desembocar em um sistema misto que trouxe aos poucos o capitalismo de volta. Sem o povo no poder o sistema gangrenou e implodiu.
Então pode-se dizer que o socialismo é bonito na teoria, mas na prática não se aplica?
Essa acusação apareceu em vários períodos da história: para justificar o comércio de escravos, para proibir os votos dos analfabetos, para defender as monarquias e até para “contextualizar” ditaduras. Mas como vimos acima não se pode dizer que houve algum país socialista. O máximo que podemos dizer é que em alguns países os trabalhadores se reuniram e resolveram banir o capitalismo. Desde então iniciaram uma transição para o socialismo, em maior ou menor grau. São sociedades em revolução, algumas muito perto do capitalismo e outras muito perto do socialismo. Mas nenhuma é socialista.
Se o socialismo é tão bom, por que Cuba é tão pobre?
Cuba vive sob embargo econômico dos EUA há 46 anos. Parece pouca coisa, mas para uma ilha tão próxima que declarou independência e que pretende instaurar o socialismo é sim um problema considerável. Isso acaba por restringir a variedade de matéria-prima para a indústria cubana, e empresas de outros países que exportarem para Cuba são punidas pelos EUA. Isso significa que, por exemplo, se a Gerdau vendesse pregos para Cuba, todos os demais produtos dessa empresa ficariam impedidos, por vários meses, de entrar nos EUA. Como se não bastasse, a legislação norte-americana estimula a migração ilegal de cubanos. Clique aqui para saber mais.
Por que Cuba não tem eleições e vive numa ditadura?
Cuba tem eleições (clique aqui), que são acompanhadas por observadores internacionais e pela ONU. O Código Eleitoral Cubano foi aprovado em plebiscito e o voto é facultativo. Não há presidente, não há Congresso Nacional milionário e não há “verbas de gabinete” ou “jetons”. O parlamento cubano é formado por pessoas comuns que têm suas profissões e vivem delas. Não há políticos profissionais e as decisões desse parlamento são soberanas. Mesmo assim, vale lembrar, de novo: Cuba é um país em transição para o socialismo.
Por que a história do socialismo é marcada pela violência?
Suponha que você mora em um país pobre, dominado por uma elite milionária. Certo, não precisa supor. Suponhamos apenas que os trabalhadores, cansados dessa desigualdade, resolvam implantar o socialismo pacificamente. Isso significa que a riqueza da nação, e também as riquezas individuais, serão produzidas em fábricas públicas, isto é, em fábricas ocupadas por trabalhadores. E mais: que a política deixará de ter representantes e será organizada diretamente pelos trabalhadores. A política será discutida abertamente pelo povo e com o povo. Imaginou? Pois bem, agora imagine que esse cenário se aproxima e você é um político ou grande empresário. Nos dois casos, seu poder e sua riqueza dependem unicamente do fato de ter funcionários e eleitores trabalhando em seu lugar. Se o socialismo funcionar você terá que trabalhar também e gerar a sua própria riqueza como eles fizeram a vida toda! Muito bem, esta é a fonte da propalada “violência socialista”.
Então todas as formas de violência da história do socialismo se devem a ganância de quem não concordava com o novo sistema?
Isso mesmo. A violência não é inerente ao socialismo, mas de quem tem seus interesses contrariados, que já juntaram muito dinheiro e bens às custas do trabalho alheio. É, sem tirar nem pôr, o que está acontecendo na Bolívia e na Venezuela hoje. Essas pessoas primeiro tentam ridicularizar a proposta socialista, pois na cabeça delas trabalhador só serve como massa de manobra e para votar. Se não conseguem, então partem para a violência. Os EUA têm um histórico de apoios desse tipo, inclusive depondo presidentes eleitos na América Latina somente por serem de esquerda (veja aqui). Outro ponto importante sobre violência é que todas as experiências de transição socialista, excetuando a Venezuela, o Equador e a Bolívia, ocorreram no século 20, um período terrível da história humana. Tivemos duas guerras mundiais, dezenas de guerras locais, o nazismo, as bombas atômicas, a Guerra Fria etc. Então é preciso tomar cuidado com algumas “estatísticas” que cobram do socialismo uma conta que geralmente não é dele. Isso é muito comum no caso da URSS, país que foi invadido por 17 potências logo no seu início e que se envolveu diretamente na guerra contra o nazismo - e o derrotou, diga-se de passagem.
Mas o nazismo não era conhecido como nacional-socialismo?
Esse foi o nome que Hitler deu ao seu sistema. Entretanto, o nacional-socialismo é completamente diferente do socialismo internacionalista, inclusive na nomenclatura. Além disso, basta estudar história para ver que Hitler odiava o socialismo, que ele considerava obra intelectual dos judeus. Pra mim o uso da expressão nacional-socialismo para designar no nazismo tinha como objetivo disputar a atenção dos trabalhadores alemães, já que no parlamento daquele país havia partidos socialistas e suas idéias eram muito populares entre os trabalhadores da época.
E Stalin, você vai negar os julgamentos e execuções sumários?
Me diga, se um Estado capitalista executa um condenado e depois descobre-se que ele era inocente, a culpa é do Estado, do governante que elaborou as leis ou do capitalismo? Quando algo assim acontece no socialismo a tendência é culpar todo o sistema, mas quando ocorre no capitalismo, como foi o caso das prisões de Abu Graib, de Guantánamo e com esse jornalista que foi torturado no Iraque, a tendência é culpar pessoas especificamente. Isso é absurdo! Stalin, se cometeu crimes, deve ser execrado por isso, embora devamos ter cuidado com acusações feitas no contexto da Guerra Fria, pois rolou muita paranóia na época. Diziam que socialista comia criancinhas, que tinha pacto com o demônio, tudo para impedir que as pessoas soubessem o que era de fato o socialismo. E tanto fizeram que conseguiram. Implantaram várias ditaduras na América Latina, tocaram o terror para que não houvesse socialismo. E agora estamos nessa lenga-lenga de “redemocratização”, de “desenvolvimento sustentável”, de “empresa socialmente responsável”. Tudo maquiagem. Os crimes de Stalin, se existiram, serão de Stalin, não do socialismo. Até porque a própria existência de um burocrata dirigindo a URSS já era um erro.
Mas no caso da URSS há vários registros, centenas de livros publicados sobre a era Stalin!
Sim, e nenhuma fonte bate com a outra. Sabe por que? Em 1999 a jornalista inglesa Frances Stonor Saunders publicou um livro chamado “Quem pagou a conta?”, no qual revela com exclusividade que autores como Hannah Arendt e Jackson Pollock, entre outros, receberam dinheiro da CIA para engajar-se numa campanha anticomunista durante a Guerra Fria (confira uma entrevista com a autora aqui). Ora, se a CIA patrocinou o Golpe Militar no Brasil por meio da Operação Brother Sam, se mentiu sobre as armas de destruição em massa no Iraque, se não ratificou o protocolo de Kyoto só para atender lobbies corporativos, imagine o que não fizeram durante a Guerra Fria, quando não havia internet nem blogs que os contestassem? Na eleição de Obama, por exemplo, o principal argumento contra o candidato foi que ele era “socialista”, o que é um absurdo. As "estatísticas" em que se baseiam esses livros foram todas produzidas no contexto da Guerra Fria, da mesma forma que as estatísticas de mortes no Iraque são produzidas pela CIA. Mas quem esteve na URSS? Por exemplo, em relação à URSS vale lembrar que houve várias mortes por fome devido ao inverno rigoroso, especialmente na Ucrânia, além de epidemias e a destruição de cidades inteiras por algum dos vários inimigos da URSS. Mortes naturais e mortes na guerra chegaram até nós como “o horror vermelho”, pelo rádio, pela TV, pelo cinema etc. Esses mitos vão caindo aos poucos, mas é bom lembrar: se houve crimes eles foram cometidos por pessoas, não pelo "socialismo". Punir o sistema por crimes individuais só pode nascer mesmo na mente de quem faz leitura seletiva ou tem algum interesse nessa defesa.
Você tem algumas fontes úteis para consultas a esse respeito?
Quero antes recomendar: não faça leituras seletivas. Não leia só o que lhe agrada ou reforça o seu ponto-de-vista. A literatura é vasta, os pontos de vista idem, e imperscrutáveis são os interesses que se escondem, muitas vezes, nas entrelinhas de um texto. A leitura seletiva, dependendo do fervor da sua igrejinha pessoal, pode fazê-lo erguer um imenso edifício de senso comum e criar uma bela confusão. Como o senso comum é sempre mais atraente – e mais fácil – que a ciência, em terras de não-leitores ele estará sempre à frente do debate científico, transformando temas históricos pungentes em reles maniqueísmos.
Agora as fontes: além do livro da Frances Sauders eu recomendo os seguintes (clique nos títulos para fazer o download):
Stalin, um outro olhar, de Ludo Martens (em espanhol);
Do socialismo utópico ao socialismo científico, de Friedrich Engels;
Os demônios descem do Norte, de Delcio Monteiro de Lima.
- Os censos da URSS e a fraude do "holocausto ucraniano", matéria especial do jornal brasileiro Hora do Povo, disponível em três partes: Parte 1, Parte 2 e Parte 3.
- A era dos extremos, de Eric Hobsbawm.
Para leituras adicionais visite http://www.marxists.org/portugues/index.htm
Um comentário:
Belíssimo blog e absolutamente fantástica lista de artigos em destaque, ali na esquerda. Já inclui seu blog entre meus "lembrados" para retomar algumas leituras pendentes.
Abraço fraterno,
Rafael Reinehr
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