Vencedor de vários prêmios no Velho Mundo e pouco conhecido no Brasil, o documentário Undergångens arkitektur (Arquitetura da destruição), de Peter Cohen, aborda uma das facetas pouco conhecidas do Nazismo: como um projeto de purificação do mundo político segundo critérios de moralidade e preservação dos valores da família, da ordem e do status quo, produziu a mais poderosa máquina de matar de todos os tempos.
O documentário confirma no campo empírico uma velha tese conhecida por filósofos, sociólogos e cientistas políticos: a natureza conservadora da moralidade tende a bloquear a democracia e ameaça a própria base da política ao obstruir a liberdade como o campo de construção dos direitos humanos.
A moral não pode servir de estandarte, de ideal para a política. Por mais poderosas que sejam as convicções individuais, a política deve ser o espaço de construção dos direitos para os cidadãos. Por sua vez, a palavra moral vem do latim mos ou moris e significa o costume. O plural latino, mores, é usado para designar os hábitos de cultura ou de comportamento instituídos por uma sociedade em condições históricas determinadas.
Diante disso, é possível construir uma sociedade com direitos de cidadania, baseando-se nas necessidades reais dos cidadãos, se alguns hábitos de cultura ou comportamento se colocam como superiores à própria política?
Mais importante que saber se é ou não possível, é entender como ocorre esta sobreposição da política pela moral. A principal operação, nesse processo, é tornar a moral universal. Ou seja, é promovê-la a uma lei ética e universal, válida para todos os tempos e lugares. O nazismo considerava um fundamento pétreo da ética preservar a família, a raça ariana e a cultura alemã acima de tudo. Com a crise econômica que assolou a Alemanha ao fim da Primeira Guerra Mundial, Hitler venceu as eleições brandindo essas bandeiras e em nome delas partiu para a conversão do resto do mundo.
Nesse caso, nos resta perguntar: o que é ética? Assim como moral, a palavra vem de outros dois termos estrangeiros, o grego: éthos, que significa "o caráter de alguém", e êthos, que quer dizer "o conjunto de costumes instituídos por uma sociedade para formar, regular e controlar a conduta de seus membros".
Logo, Hitler e o Partido Nazista não construíram o III Reich segundo um valor transcendental, universal e válido para todos os tempos e lugares, como imaginavam. Na verdade, o fizeram porque consideraram o seu edifício cultural, costumes e valores como melhores ou mais desenvolvidos que todos os outros. Partindo disso, consideraram seu dever ético adaptar a política segundo esses ideais, ignorando não só a política como instância mediadora de conflitos, como também a necessidade material de liberdade para os cidadãos.
Um bom exemplo mais atual dessa tendência é o cada vez mais poderoso lobby religioso na política brasileira. A religião, uma instância exclusivamente moral, tenta cada vez mais construir na Política os elementos que interpreta serem "a vontade de Deus para os homens".
A perspectiva religiosa segundo a qual o universo está em decadência devido ao problema do pecado, e que uma sociedade justa só poderá surgir sob a direção de Deus em uma outra vida, produz o mesmo tipo de ímpeto conservador da moral predominante que levou os nazistas a matar milhões de pessoas em nome da da tradição, da família, dos costumes e da raça alemã.
Obviamente, os evangélicos não estão reivindicando o direito ao assassinato para defender as suas crenças morais. Mas a elevação de uma interpretação doutrinária, específica de uma visão religiosa (ético-moral) para a condição de política pública é o mesmo princípio de exclusivismo totalitário que levou os nazistas a se proclamarem os ungidos para purificar a civilização humana.
Em 1964, semanas antes do golpe que derrubou o presidente João Goulart, várias igrejas realizaram eventos exatamente "em defesa da família", isto é, da preservação aos valores morais da sociedade. O enorme apoio popular a esse tipo de evento esvaziou qualquer resistência social ao Golpe, inclusive entre as instituições da época. Goulart, como se sabe, defendia as mesmas reformas sociais (agrária, política, sindical etc) que beneficiariam a ampla camada de trabalhadores brasileiros - pessoas que tinham interesses vitais na transformação do mundo político de então.
Como essa transformação feria os interesses dos poderosos da época, estes trataram de denunciar as reformas como um ataque moral "à tradição da família brasileira". O resultado foi o Golpe de 64 e duas décadas de ditadura, com a caça meticulosa a todos que defenderam as reformas.
Em 1977, em plena Ditadura Militar, a pressão de alguns setores da sociedade civil forçou o governo a aprovar várias leis para garantir apoio da classe média. Uma delas foi a Lei do Divórcio, que pela primeira vez na história do país dava aos separados o direito de casar-se novamente com outras pessoas. A igreja foi contra: sob o argumento de ataque à moral e à tradição, as principais ruas das maiores cidades brasileiras encheram-se de passeatas em defesa da família.
Vários eventos recentes da política brasileira mostram uma tendência crescente de subjugar políticas públicas a critérios morais, especialmente religiosos. É preciso tomar cuidado com isso. Especialmente em épocas de crise da política, as soluções mais fáceis são justamente as soluções morais. Personagens autoritários, caudilhistas, verdadeiros porta-vozes da vontade de Deus ou "dos homens de bem" surgem empunhando bastiões de espantosa moralidade que costumam impressionar os brasileiros da mesma forma que Hitler impressionou, por sua oratória e carisma pessoais, os alemães no início do fatídico Século XX.
As soluções para os problemas da política, como pobreza, desigualdade, violência etc, podem e devem ser resolvidas com política. São problemas reais que impõem tarefas práticas, ou seja, independentemente de princípios morais (eles continuarão existindo independentemente do que se acredite). Mas para isso é preciso entender que a vontade de Deus, ou qualquer outro princípio moral, tem prazo de validade, é reflexo de convicções particulares e não pode ser tomada como universal.
Um exemplo: o bullyng. Aquela violência que produz genocidas em potencial nas escolas brasileiras é o resultado de outras formas reais de violência, um ciclo interminável de sofrimento, ódio... e vingança. Qual a melhor forma de eliminar este problema, a não ser ensinando que as diferenças não devem ser temidas, que é justamente o diferente que nos enriquece?
Por outro lado, que tipo de oposição se pode oferecer a isto, a não ser uma oposição moral?
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