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ABORTO

O aborto é uma questão política grave no Brasil. Ser contra esse procedimento é um direito, assim como é direito considerar que, no processo de educação das crianças para a vida, "um tapinha não dói" - cerne de outra polêmica recente e que pôs em lados opostos cientistas das mais diversas áreas de Humanas e a grande imprensa.

Antes de entrar no mérito da questão quero lembrar que nós, seres humanos, não somos "tábuas rasas". Não somos coisas. Ser humano é ser o complexo resultado de múltiplas interações cuja forma de influência na personalidade nem sempre é clara em um debate.

É necessário considerar indivíduos como coisas para achar que nossos conceitos não têm pressupostos, isto é, não se ligam a idéias anteriores e que defendemos com unhas e dentes, inclusive de forma inconsciente. Esses conceitos não são defendidos pelo que são, mas pelos significados com os quais foram inscritos em nossas mentes ao longo da vida.

Ao processo segundo o qual idéias são transformadas em conceitos ou "valores da natureza humana" sem o devido lastro que lhe dá suporte a Sociologia chama "ideologia".

O aborto é uma fonte perene de produção de ideologias. O argumento de que a sua descriminalização levará aos hospitais uma miríade de adolescentes tem como ponto de partida uma certa relativização da responsabilidade da mulher sobre o seu próprio corpo. Trata-se aí da ideologia arrevesada de que a mulher não pode, por natureza, escolher racionalmente o melhor para a sua própria saúde física. Deve, portanto, ter sua natureza maligna limitada por aparatos jurídicos.

Em consequencia de tal pressuposto, defende-se indiretamente a idéia de que tais cirurgias continuem sendo feitas em clínicas de "fundo de quintal", por profissionais não-qualificados e sem qualquer garantia em caso de agravamento do quadro médico.

Ser contra o aborto é um direito, mas é também uma questão de fé: é necessário ser adepto da tese da "natureza caída" e da "preexistência da alma", dentre outras, para apresentar tais contribuições a um debate.

A descriminalização do aborto, ao contrário, é uma questão de saúde pública. A mulher precisa poder dirigir o seu próprio corpo e decidir quando e se poderá abortar. O velho conceito filosófico de imperativo ético do indivíduo para a vida boa, plena e feliz, precisa definitivamente chegar às mulheres...

Isso não é justo?

A despeito de toda a sorte de mitologias e correntes pela internet, não há provas científicas de que a "alma humana" começa no útero. Aliás, o próprio conceito de alma, nascido da filosofia grega por meio de Platão e tomado de empréstimo pela mitologia judaico-cristã, tornou-se norma cultural às custas de muito sangue, suor e fogo, especialmente ao longo dos últimos 2 mil anos.

Graças a essa pressão, conquistada na ponta da espada, nosso marco jurídico considera o tutelamento de todo um gênero sexual algo correto e até poético. Que o faça. No entanto, vale ressaltar que nem isso dá a uma crença religiosa, metafísica, o direito de tornar-se um valor compulsório da vida democrática.

A menos, é claro, que a democracia representativa seja uma falsificação.

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