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Um equívoco típico de posturas doutrinais no campo da Sociologia é contrapor mito e razão. É a tese segundo a qual todo o progresso humano consiste numa libertação consciente dos mitos na medida em que o neófito estudioso busca a racionalização, isto é, de gradual substituição de um estágio irracional dado a fábulas e emocionalismos, necessariamente inferior, pelos altos e desenvolvidos ideais iluministas do ateísmo analítico.
Contra essa tese, central no positivismo, no funcionalismo e no marxismo vulgar, insurgiram-se Max Horkheimer e Theodor Adorno na Dialética do Esclarecimento. Escrita em plena Segunda Guerra Mundial, quando os autores, ambos judeus de origem alemã, encontravam-se emigrados nos Estados Unidos, é extremamente atual ainda hoje. O livro propõe-se a indagar o esclarecimento que temos diante de nós: como é possível que este esclarecimento, que supostamente nos levaria para uma sociedade mais justa e livre, acabou produzindo o seu reverso, ou seja, uma sociedade destrutiva e injusta, por mais esclarecida que seja? Que esclarecimento é esse?
Procurando responder a estas questões os autores remontam à história antropológica do esclarecimento, e mostram como, desde o princípio, a relação mito-esclarecimento é íntima, por mais que este esclarecimento tenha sempre tentado se desvencilhar do mito, considerado como superstição. É por conta dessa íntima e complexa relação que faz-se necessário ao esclarecimento (para que este seja, de fato, esclarecido) reconhecer esse seu momento de mito. Enquanto ele não se conscientiza disso, enquanto se opõe rigidamente ao mito, acaba se tornando mito no pior sentido.
Ora, é isso o que ocorre hoje com o esclarecimento científico: ele, como razão tecnológica, recusa qualquer pensamento que não se atenha factualmente às coisas, como se a factualidade do procedimento científico não fosse também uma produção subjetiva (subjetivismo é, aliás, o adjetivo invocado para desqualificar o pensamento mitológico). Daí porque a facilidade com que essa razão tecnológica cai no mito, se presta a qualquer ideologia: assim foi com o fascismo, o nazismo, assim é com a guerra contra o terrorismo contemporânea. O esclarecimento científico, factual da sociedade industrial avançada, na qual vivemos, é o esclarecimento avesso ao pensamento que, enquanto tal, não é jamais puramente científico, na medida em que sempre exige mais que o apêgo desesperado aos "fatos". Não se faz pensamento com fatos. Pensamento não é jornalismo - embora, pelas mesmas razões, o "achado" frankfurtiano coloque para esta profissão um gigantesco desafio de ordem epistemológica (e que, por não estar no bojo da reflexão de hoje, ficará subentendido).
Embora não tenha sido esse o alvo de Horkheimer e Adorno, isso ocorre porque um mito é - necessariamente - partícipe das relações produzidas por cada aglomerado humano, isto é, o mito é um fenômeno de ordem política. Por isso mesmo é possível localizar, em cada narrativa mítica, os indicadores de ordem jurídica, filosófica, geográfica, física, química, econômica, tecnológica etc que se dispõem nas lendas míticas e dão corpo aos heróis, deuses, semideuses, locais, práticas ritualísticas e mesmo substâncias sagradas. Esta dimensão socialmente engendrada de cada mito é na verdade a base dos trabalhos da antropologia e da arqueologia, dentre outras ciências.
A dimensão mítica do conhecimento científico (que se pretende a-mítico ou pós-mítico) apontada por Adorno/Horkheimer, e o aspecto histórico-social do mito têm como origem a dinâmica própria da vida social. Marx, que já havia captado a natureza e a mobilidade dialética desses fenômenos, elaborou a famosa "metáfora do edifício", que consiste basicamente na tensão originada das relações de produção. Embora bem mais ampla, a noção de movimento da análise marxiana é descrita nos seguintes termos:
na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento económico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superstrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o qual é constatável rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem. - MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política, Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982. (negritos meus)
Comecei esse artigo atribuindo a contraposição de mito e razão a "posturas doutrinais" - não por acaso, atacar esta postura, pela sua derivação direta da racionalidade positivista, era precisamente o alvo de Theodor Adorno (o que fica claro em um livro posterior, Dialética negativa).
No entanto, é uma postura doutrinal confundir a crítica à utopia com a crítica ao mito?
Estou certo que sim. Atribuir à crítica anti-utópica uma dimensão também anti-mítica é o mecanismo de defesa perfeito para entrar numa circularidade teórica, onde, a exemplo da fábula da Roupa Invisível do Rei, vê-se apenas o que se quer ver, ignorando os berros da lógica. Ora, se nesta confusão não se distingue sequer o superficial, ou seja, que mito e utopia são fenômenos distintos, embora possam por vezes comparecer ao senso comum como massa compacta e indissociável, que se dirá da enorme diversidade de implicações de cada um deles na vida social?
Em ocasiões anteriores, reconheci que o mito - por ter, obviamente, "dimensão social" - pode servir de anteparo prático para a organização de tarefas contra-hegemônicas, cuja variedade só pode ser determinada pelo grau de revolução das forças produtivas em relação ao modo de produção. Na verdade, uma vasta experiência histórica faz da religião cristã uma especialista no assunto. No mesmo passo em que as relações produtivas do Ocidente entraram em contrafação, as formas elementares da sua narrativa mítica predominante também puderam, em nome de Deus e das tarefas revolucionárias de cada época, adaptar-se enfatizando este ou aquele aspecto doutrinário em detrimento dos demais. Obviamente o resultado desse exercício que nada tem de miraculoso foi o de sobreviver a todas as revoluções aliançando-se com as novas forças. Cada fase revolucionária da sociedade ocidental, o Império Romano, Germânico, Bizantino, o Absolutismo, a Burguesia, foi acompanhada da respectiva inflexão doutrinária do cristianismo rumo ao novo horizonte histórico.
Pode-se argumentar, claro, que tal tarefa não se deu sem uma enorme contrafação interna no próprio cristianismo em cada época. No que concordo, acrescentando apenas que este é o quinhão da igreja no mundo, o espinho na carne por participar ativamente das lutas de classes.
Reconhecida a dimensão social do mito, pode-se passar com relativa tranquilidade ao ponto que interessa e que é o cerne de uma problematização com consequencias severas para tudo o que já foi dito até aqui. O ponto é a dimensão utópica do mito, isto é, aquela classe de utopias com recheio religioso. Como trata-se de tema espinhoso será necessário percorrer, primeiro, a utopia como fenômeno geral e seu tratamento, especialmente no modelo marxiano. Depois passarei à produção religiosa da utopia propriamente dita, e as questões derivadas da sua intersecção na política.
Marx e Engels dedicaram grande parte de seus esforços a combater o que chamavam de "socialismo utópico", denominação que reunia várias correntes teóricas francesas e inglesas que pretendiam inaugurar, no espaço público, uma transformação social baseadas em idéias: igualdade como princípio, liberdade como direito e fraternidade como dever. Muito embora essas idéias tenham nascido como reação intelectual às enormes transformações no mundo do trabalho, visíveis para esses autores da Europa do século XIX, os socialistas utópicos pretendiam mudar a sociedade a partir de imperativos de ordem moral. Alguns chegaram inclusive a prescrever como uma sociedade livre deveria funcionar, caso das oficinas blanquistas, dos bancos proudhonianos e das comunidades alternativas de Charles Fourier.
Desses esforços nasceu um dos muitos livros não-lidos desses autores: Do socialismo utópico ao socialismo científico, publicado em 1880. Ironizando a tradução do socialismo como perspectiva utópica de realização dos ideais elevados do Iluminismo, Engels escreve no final do Capítulo I:
As concepções dos utopistas dominaram durante muito tempo as idéias socialistas do século XIX, e em parte ainda hoje as dominam. Rendiam-lhes homenagens, até há muito pouco tempo, todos os socialistas franceses e Ingleses e a eles se deve também o incipiente comunismo alemão, incluindo Weitling. Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça variam com os fundadores de cada escola; e como o caráter específico da verdade absoluta, da razão e da justiça está condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela Inteligência pessoal, condições de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que nesse conflito de verdades absolutas a única solução é que elas vão acomodando-se umas às outras. E, assim, era inevitável que surgisse uma espécie de socialismo eclético e medíocre, como o que, com efeito, continua imperando ainda nas cabeças da maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra: uma mistura extraordinariamente variegada e cheia de matizes, compostas de desabafes críticos, princípios econômicos e as imagens sociais do futuro menos discutíveis dos diversos fundadores de seitas, mistura tanto mais fácil de compor quanto mais os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discussão, os seus contornos sutis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade. - ENGELS, Friederich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Braziliense, 1994. (negrito meu)
Escrito originalmente como parte de O anti-Dühring (1878), Do socialismo utópico ao socialismo científico tem apenas três capítulos.
No Capítulo I, enumera as teorias socialistas do passado (principalmente as dos socialistas utópicos) e discute seus limites e equívocos.
No Capítulo II, sintetiza características do método dialético (em oposição ao metafísico) e da concepção materialista (em oposição à idealista), mostrando que é a concepção materialista de história (o materialismo dialético-histórico) que permite a análise científica do modo capitalista de produção, o entendimento de como se dá a exploração do trabalho sob esse regime e a demonstração da necessidade e possibilidade de sua superação. "Desse modo o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia".
No Capítulo III, analisa as contradições básicas do capitalismo (capital x trabalho, burguesia x proletariado) e suas manifestações no conflito entre as forças produtivas e as relações de produção: "a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista"; "o antagonismo entre a organização da produção dentro de cada fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade". Enfatiza a revolução proletária como ato que socializa os meios de produção, põe fim à anarquia e inicia a superação da exploração, como "salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade". E situa o socialismo científico como "expressão teórica do movimento proletário" - capaz de infundir-lhe "a consciência das condições e da natureza de sua própria ação". (novamente, negrito meu)
Nesta crítica de Marx e Engels ao socialismo como a vitória mundial da filantropia iluminista, da bondade, da solidariedade, da paz entre os homens, trata-se de criticar o utopismo de vertente humanista. No caso, é o próprio socialismo que entra na faca!
Em textos mais prescritivos, como Crítica ao programa de Gotha e o Manifesto do partido comunista, Marx e Engels fazem questão de frisar: a emancipação política dos trabalhadores é a única solução efetiva para solucionar o impasse entre trabalho e capital - impasse real posto como natural pela ideologia burguesa por ser necessária, segundo Marx e Engels, à manutenção das amarras que esta classe pôs sobre o mundo da produção.
Novamente, não há perspectiva de que alguma bondade ou ação engajada por ideais nobres, elevados ou puros, seguindo a velha tradição socrática, resolverá tal impasse. O comunismo, entendido como uma sociedade mundial de homens e mulheres livres, auto-determinados por sua forma livre de intervenção no mundo do trabalho, é uma necessidade histórica movida por necessidades reais de reprodução material de uma classe social, exatamente a classe produtiva.
Qual o problema das utopias para o socialismo científico? Uma leitura atenta do Manifesto do Partido Comunista dá algumas pistas. NETTO (1998), ao analisar a apresentação estética do livro, revela que
Não é por economia de exposição ou de arquitetura formal que a programática se mostra quase como conclusão de operações teóricas ou que os dez pontos que resumem as “medidas” de implementação para “os países mais avançados” só estejam arrolados ao fim de um panorama analítico; são outras as razões que respondem por esta característica. Tais razões remetem ao radical anti-utopismo de Marx e Engels, expresso sem qualquer ambigüidade no Manifesto, que os acompanhará por toda a vida e cancelará qualquer veleidade de “prever” como será a sociedade emancipada (ou oferecer receitas para ela), mantendo as suas prospecções numa faixa de sobriedade que contrasta flagrantemente com a da maior parte dos teóricos e pensadores sociais. No Manifesto, aliás, o traço utópico que marcou o movimento socialista é claramente vinculado à debilidade do proletariado - o utopismo é debitado por Marx e Engels ao fato de o proletariado, em condições de desenvolvimento limitado, carecer de uma clara visão de sua posição na sociedade burguesa. NETTO, J. P. Prólogo: elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista. In: MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998. (negritos meus)
A razão desse anti-utopismo como princípio analítico é descrita pelo autor algumas páginas depois.
Entretanto, há algo mais - e essencial - que o anti-utopismo situando a programática a partir da análise. Marx e Engels, já por esta época, tinham suficientemente esclarecida a questão do papel do sujeito social (coletivo, classista) na história: sabiam-no livre em suas opções dentro de um marco determinado de alternativas concretas. Compreendiam que a ação política eficaz não podia derivar unilateralmente da “vontade do sujeito” nem da sua passividade diante do movimento social; ao contrário, a ação política eficiente deveria ultrapassar as antíteses do “voluntarismo” e do “fatalismo”. A liberdade de escolha na indicação de objetivos políticos está na razão direta do conhecimento dos processos em curso: quanto mais conhece os processos em que está inserido, mais livre é o sujeito para circunscrever os fins a que visa. Assim, o conhecimento mais aproximado das determinações e conexões sociais torna-se a base imprescindível para viabilizar a concreta liberdade de ação. A programática comunista (e a ação conseqüente) não resulta de escolhas abstratas: resulta de opções que se tornam factíveis pelo conhecimento que se adquire dos processos em cujo interior são tomadas. NETTO, J. P. Prólogo: elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista. In: MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998. (negritos meus)
Para esse autor, portanto, o caráter anti-utópico de Marx e Engels está ligado a uma perspectiva do indivíduo consciente da necessidade da sua autonomia, e, portanto, da ausência da mesma no atual modo de produção. Conquistar essa autonomia tem como pressuposto situar-se nos processos em curso que lhe roubam a criatividade, colocando-lhe tarefas que aparentemente visam a liberdade (trata-se do socialismo utópico), mas que, pelo seu caráter de algo dado, determinado anteriormente ao processo de esclarecimento, de conhecimento da própria inserção do sujeito nessas redes de coerção, não podem produzir autonomia, e sim, heteronomia. Em outras palavras, o caráter anti-utópico de Marx e Engels é o resultado da busca pela autodeterminação dos sujeitos como condição para a luta política.
Assim, no próprio Manifesto encontra-se:
As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo nenhum, em idéias ou em princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa diante dos nossos olhos”. MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, p. 21. São Paulo: Cortez, 1998.
A mesma idéia está presente na Ideologia Alemã:
Para nós, o comunismo não é um estado de coisas que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade deverá se adequar. Denominamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições deste movimento resultam de pressupostos atualmente existentes. MARX, K. La Ideologia Alemana. Madrid, Gallimard-La Pléiade, 1965-1982.
Vale notar que a conquista da liberdade pessoal como processo de autodeterminação que rejeita utopias (entendidas como projeções de felicidades a serem obtidas por obséquio de forças exteriores ao sujeito) não é conceito exclusivamente marxiano. A diferença entre autonomia (fazer-se a si mesmo) e heteronomia (ser feito por vontade de outrem) e sua implicação para a liberdade é delineada desde Epicuro de Samos, passando por Spinoza, Sartre, Marcuse e torna-se por fim o próprio fundamento do anarquismo europeu e norte-americano.
Mas é em Friedrich Nietzsche - contra o qual, não por acaso, pairam pesadas dúvidas academicistas sobre o seu status de filósofo - que faz a reflexão mais bombástica, original e contundente sobre a liberdade humana como autodeterminação. Nietzsche inverte o problema. Para ele, a vontade-de-poder, isto é, a necessidade implacável, natural e própria de cada ser humano de dominar a todos os demais, cria versões da liberdade como forma de assegurar uma rede extensa e bastante funcional de dominações.
Daí porque para Nietzsche, assim como para Marx, a liberdade só pode existir de fato como resultado da ação sobre o mundo. Trata-se de um processo - de fato - dialético, onde, como Hegel, afirma-se que "ser é processo em movimento", mas também é a afirmação do sujeito humano como o agente único e exclusivo desse fenômeno. Para Nietzsche, especificamente, a afirmação da liberdade individual é de fato a grande meta a ser perseguida sem qualquer necessidade de vínculos solidários, engajados, enfim, utópicos - na busca pela afirmação radical do indivíduo como único produtor e produto de si mesmo, Nietzsche sacrificou a dimensão transformadora da ação política.
O motivo pelo qual isso ocorreu, por ser fundamental para a problematização da utopia, inclusive em sua faceta religiosa, quando aplicada à política, requer um certo excurso sobre um dos seus livros mais emblemáticos: a Genealogia da Moral. Nietzsche parte da necessidade de desconstruir a moral já dada do homem (a sua perspectiva é sempre individualizante) ocidental, afim de descobrir como seria a moral ideal, de acordo com a natureza humana. Para isso, analisa e critica a historiografia da moral do homem ocidental, o valor que têm todos os valores construídos até então. Questiona o uso de ideologias, de crenças, pois essas estabelecem valores falsos e ofuscam a realidade. O objetivo é mostrar que por trás dos valores construídos pelo homem, tais como a justiça, liberdade, igualdade, esconde-se a Vontade de Poder pervertida.
Assim se imaginou o castigo como inventado para castigar. Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função (…) colocou-se em primeiro plano a “adaptação”, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade, chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação interna às circunstâncias externas, mas com isso se desconhece a essência da vida, a sua Vontade de Poder; com isso não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções. NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1987. pg. 81.
Através das leis, são valorados conceitos de liberdade, justiça e igualdade como bons e necessários a uma sociedade de paz. Mas todos esses conceitos nascem da força do ressentimento, uma vez que a justiça é a sede de vingança, a igualdade não é o fim último dos homens, pois não comporta a vontade de poder, e a liberdade não é dada aos homens para agirem conforme sua natureza.
A teoria nietzscheana da moralidade como subproduto do ressentimento traz ainda implicações para o campo da política. Segundo ele,
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior... NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.28-29).
Como funciona a extensão da moral escrava ao mundo político? Primeiramente escolhemos aquilo que não nos serve, aquilo que nos causa raiva, ódio, aquilo que desperta em nós um forte desejo de vingança e que nos faz ruminar por muito e muito tempo antes de tomarmos alguma decisão. Por um ato de negação, portanto, afirmamos o que não nos serve, e este é o “mau”. Em um segundo movimento adotamos o que sobrou, por oposição ao que não serve, para ser o nosso “bom”, um ato reativo, portanto! É por reação ao que não serve que estipulo o que me serve, é o que sobra, o pouco, o resto. Toda ação, aqui, é pautada em função do “fora” (de algo para além de mim), se faço ou não faço alguma coisa, se escolho esse ou aquele caminho, se me comporto dessa ou daquele maneira, enfim, tudo isto será medido por exclusão daquilo que a priori não me serve.
A ação - já positivada, observe-se - é uma reação, logo, ressentida, amarga, venenosa, grudenta. O “mau” não pode, aqui, ser desprezado, pois ele é mesmo mais importante que o “bom”, ele vem antes, antecede a este, ele define o “bom”. A vingança ressentida precisa de tempo, é estratégica, manhosa, mimada, provoca fatigamento e por fim, torpor. Envenena de tal forma a consciência que ela, ao invés de paralisar, agita-se compulsivamente em uma infinita excitação pelo justo, pelo correto, pelo belo, pelo não pecaminoso, pelo “fora”. O caminho da ação sofre uma dobra e torna-se um “U”, a retidão amolece e dificulta o escape, o homem torna-se tortuoso e obscuro para si mesmo, torna-se pecador em sua própria casa.
Também nas atitudes ditas de compaixão pelo outro se percebe a expressão da crueldade na sua busca incessante de fruição do poder, ou seja, é na ajuda ao outro, na concessão do perdão, que atualizo minha vontade de poder, que me apresento como um superior, um tal que ainda tem algo para dar a um fracote, a um pecador, a um ressentido.
Aquele sentimento produzido ao ajudar os outros que necessitam, o prazer que enrijece e purifica nosso corpo tem na crueldade - no desejo de dominar o outro pelo poder pegajoso, pelo favor concedido, pela elevação da vontade de potência a um nível estratosférico como só a doação ao outro pode fazer - a sua gênese e justificativa. Para Nietzsche.
Mas esta análise se sustenta?
Adorno, já citado, considerava a mudança do mundo segundo utopias de purificação para uma sociedade mundial superior, elevada, a chave para a compreensão do sucesso do nazismo e do fascismo (vide o ensaio A educação após Auschwitz, no livro Palavras e sinais (traduzido no Brasil pela Ed. Vozes). Hannah Arendt, nas páginas do genial Sobre a revolução, defende que a Revolução Americana, por suas raízes municipalistas em órgãos semelhantes aos primeiros sovietes na Rússia, tinha sido mais profunda do que a Francesa, que para ela mergulhou na cega violência populista devido à sua obsessão pela purificação do mundo em busca da igualdade entre os homens.
Esses problemas não se resolvem se o elemento elevado à condição utópica for de ordem mítica.
Ser como Jesus, andar na luz, partir o pão com os oprimidos, lutar o bom combate: todos os jargões do cristianismo libertário podem ser mobilizados para uma ação interventiva na política. Isso ocorre quando a teologia, amparada na legitimidade do poder do mito e movida por altos ideais humanitários, lança mão do aquecido cobertor revolucionário (no sentido etimológico desse termo) na luta contra situações de exploração.
Evidentemente que isso não se dá ausente de conflitos. Porém, estamos diante do limite estrutural da reflexão religiosa, que nenhum sistema de pensamento consegue superar as fronteiras da sua própria condição: reconhecer que a realização do ágape (amor cristão) poderia redundar no reino do mais puro terror é impensável para o cristão porque a grande missão do cristianismo é instaurá-lo na vida pública.
Se é possível usar uma perspectiva que não seja auto-legitimadora, é possível partir para a moderna teoria de formação da personalidade, considerando-a capaz de resolver o problema da doação como reflexo no outro.
Em Narcisismo: uma introdução (1914), Sigmund Freud segue um movimento teórico anterior iniciado com a descoberta da alteridade como constitutiva do ser. O conceito de narcisismo, na obra freudiana, vai paulatinamente revelando que o eu se forma à sombra do outro; o eu se estrutura na imagem dada a partir de um outro, e é pela intervenção desse outro que o eu se constitui. O modelo de constituição do eu é o da identificação melancólica, o eu é formado pelos restos das relações, pelos fantasmas dos outros. O eu se forma a partir da imagem do outro, que é como um espelho.
Na concepção de Alan Badiou (Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, 100 pp), o tema do narcisismo na obra de Freud não é anunciado em sua radicalidade. O outro, do narcisismo, assemelha-se demais comigo, criando obstáculos para a hipótese de uma abertura originária à alteridade. Bastante claro, o autor revela que
Uma concepção “mimética”, que situa a origem do acesso ao outro em minha própria imagem redobrada, também mostra o que há de esquecimento de si mesmo na captura desse outro: o que valorizo é esse eu-mesmo-à-distância que, justamente por ser “objetivado” para minha consciência, me constrói como dado estável, como interioridade dada em sua exterioridade. A psicanálise explica brilhantemente como essa construção do Eu na identificação com o outro". BADIOU, p. 36.
Ao ampliar e aprofundar a noção da identidade entre o Eu e o Outro, a psicanálise pós-freudiana manteve os fundamentos da identificação da alteridade como extensão do Eu. Um dos expoentes dessa escola, Jacques Lacan, ressalta que a percepção do Outro como miragem do Eu pode ser utilizada para tiranicamente inibir o Outro como sujeito produtor da autonomia da criatividade, da inventividade autodeterminada.
Para Lacan, a identificação do Outro como fonte exclusiva do prazer egóico dilui este Outro em sistemas de poder que o tornam externamente dependente por toda a vida: o pai, o padre, o sábio, o doutor, o magistrado etc. A tendência é a criação de várias formas de psiquismo, uma vez que a tendência do mito de Narciso voltado sobre o próprio sujeito é a produção de psicoses. Assim, o Outro ocupa sempre o espaço de sujeito a ser resgatado.
Os discursos são modalidades de tratamento do outro. O outro aqui não é um semelhante, não é um outro de semblante e sim um outro do laço submetido à estrutura discursiva que condiciona seu lugar nos atos de governar, educar, psicanalisar e fazer desejar. O semblante está no lugar do agente do discurso, ele é um faz-de-conta. LACAN, Jacques. Escritos: Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 529.
A perspectiva psicanalítica, clássica ou contemporânea, pode ser sintetizada da seguinte forma: nos apaixonamos pela imagem que o outro faz de nós mesmos, ou seja, todo amor é amor próprio refletido. Se assim for, não nos doamos pelo outro, mas com os efeitos dessa doação sobre o outro. Nessa perspectiva, todo amor é uma necessidade egoísta (o que não carrega sentido negativo) que, coincidentemente, precisa de outro ser humano para se realizar. Consciente desta missão, submetido a pressões derivadas da necessidade de afirmação e libertação pessoal, o amor egoísta pode se transformar em uma máquina de escravização de Outros como forma de afirmação do Ego.
É suficientemente claro que trata-se do mesmo mecanismo nietzscheano de afirmação da vontade de potência. Curiosamente, Nietzsche, Marx, Arendt, Lacan, Freud, Badiou, Adorno e outros não citados nesse artigo são categóricos ao afirmar, ao mesmo tempo, e cada um ao seu modo, a autonomia do ser como única forma de produção da liberdade. Isto equivale a dizer: se construir uma sociedade fundada em fórmulas moralizantes equivale a transformar a vida pública no protagonismo dos oprimidos em nome de imperativos de qualquer ordem, por outro lado a batalha contra todas as formas de heteronomia, de escravização mental, de paralisação pelo olhar vampiresco dos que determinam nossos destinos, é um dever do homem que se quer livre e produtor do seu destino.
O adendo é que, diferente do que pretendia Nietzsche, essa batalha não ocorre apenas no campo da subjetividade individualista. Ela requer ação política organizada e interventiva, porque trata-se da ação libertária daqueles cuja vontade de potência está sacrificada no altar das conveniências. Sem uma sociedade livre não pode haver homens livres.
Chegamos ao ponto onde se faz necessário fechar os parênteses. As restrições marxianas ao socialismo utópico, a preocupação nietzscheana com a autonomia como fuga do ressentimento moral, a perspectiva de Adorno/Horkheimer com a construção de uma subjetividade conscientemente criadora e, finalmente, o conceito psicanalítico do Outro como extensão das expectativas sobre o Eu apontam para uma única conclusão possível: o caráter - respectivamente - conservador, tirânico, totalitário e mentiroso da utopia como possibilidade efetiva de transformação política.
Para que fique claro: utopia como deslocamento temporal da ação libertária é um mecanismo de poder, de heteronomia, de ressentimento e de expectativas ineficazes: a ação libertária deve ser necessariamente presente diante das circunstâncias de exploração, sem prejuízo do planejamento programático próprio de intervenções políticas de largo fôlego.
Não é por acaso, se considerarmos estas análises dignas de algum crédito, que expectativas utópicas sobre a política raramente não redundam em práticas tirânicas, onde a própria fixidez do horizonte histórico a ser revolucionado se responsabiliza por garantir o inferno a todos que não se submeterem. O aspecto moralmente superior do objetivo a ser alcançado é suficientemente superior a toda sorte de abusos que se possa cometer contra indivíduos que simplesmente não conseguem perceber a enorme cadeia de explorações que dominam todas as instâncias da vida contemporânea - o que não é um fato digno de assombro, visto que esta é a função da ideologia.
Diante disso é que cabe uma última consideração sobre a especificidade da utopia de perfil religioso. Dado o problema do amor ao próximo ser a imagem de si mesmo no outro, a ação religiosa na política em busca de uma recompensa futura é inerentemente hipócrita. Se voltada à busca da salvação em troca de ações efetivas de resgate do outro, a tendência é de inauguração de uma mentalidade política não só conservadora, mas potencialmente nazifascista: o outro como objeto é o princípio da violência na vida pública. Entrementes, é fácil perceber que a preservação do mito como agente da luta contra-hegemônica, isto é, da luta por autonomia individual, pode não só contrabalançar esse efeito, como ainda produzir uma nova sistematização de cunho teológico amplamente favorável à liberdade. Há uma única interrogação: o rebatimento dessa mudança no próprio corpo teológico-doutrinário, produzindo novas possibilidades de vivência mítica, podem mesmo produzir uma autonomia do sujeito como produtor de sua liberdade, sem a implosão do próprio mito?
A busca por uma sociedade livre deve ter como pressuposto a compreensão dos indivíduos como agentes determinantes da sua própria liberdade. A liberdade individual aponta para a social, no sentido de que a última só pode ser o resultado da ação interventiva de mentes livres, conscientes do seu papel como agentes emancipadores do mundo do trabalho em relação ao capital.
Esse quebrar-se a si mesmo, esse zombar da própria natureza (…), no qual as religiões deram tanta importância, é na verdade um altíssimo grau de vaidade. Toda a moral do Sermão da Montanha faz parte disso: o ser humano tem verdadeiro prazer em violentar-se com exigências exageradas, e depois endeusarem sua alma com esse Algo tirânico e exigente. Em toda moral ascética o ser humano reza para uma parte de si mesmo como um Deus, e por isso necessariamente tem de demonizar a outra parte (…). – Nietzsche, Friedrich. Humano, demasiado humano. Cia de Letras, 2001: São Paulo.
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