Há cerca de uma década, ele parecia minado pela oligopolização. Uma onda de inovações tecnológicas havia tornado possível, por exemplo, produzir jornais inteiramente impressos em quatro cores, exibir imagens geradas por equipes de TV em qualquer parte do mundo, fascinar multidões nos cinemas com efeitos especiais extraordinários.
Tais tecnologias, contudo, apenas aprofundavam o caráter essencial da comunicação de massas: um grupo cada vez mais reduzido de emissores transmitia conteúdos, de forma ultra-vertical, para audiências cada vez maiores. Para satisfazer o gosto do público, em qualquer mídia, era necessário possuir equipamentos muito sofisticados e caros. Por isso, a evolução tecnológica havia sido acompanhada por uma penetração brutal da grande empresa nos domínios da imprensa. Em toda parte, a mídia estava associada ao grande poder econômico – em particular, a grupos financeiros e em alguns casos (como o da França) da indústria... de armamentos.
Por ironia, exatamente no momento em que o universo da oligomídia parecia consolidado, ele foi sacudido por uma invenção surgida no mundo da guerra, e acelerada nos grandes de circuitos financeiros: a internet. A rede mundial de computadores nasceu como um sistema capaz de ativar o arsenal nuclear dos Estados Unidos a partir de qualquer ponto, caso um ataque atômico inimigo devastasse parte do país. Por isso, deveria ser obrigatoriamente horizontal e não-hierárquica. Mais tarde, ela viabilizou o surgimento de um mercado financeiro global e permanente, por onde circulam cerca de 5 trilhões de dólares ao dia, e por meio do qual se ampliam a concentração de riquezas e as desigualdades abissais que marcam nossa época.
A introdução da internet no reino das relações quotidianas, no início dos anos 1990, seguia uma lógica semelhante. Ao promover a automatização de inúmeras atividades que antes dependiam de trabalho humano, e ao atingir potencialmente os consumidores de todo o mundo, ela permitia vislumbrar uma nova onda de ampliação de lucros, pressões sobre os direitos sociais e oligopolização. Tudo isso também se daria nas comunicações. Numa primeira fase, os astros da net foram empresas como a Amazon, cuja vocação essencial é o comércio sem fronteiras.
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Em uma de suas peças mais geniais, Brecht recria um Galileu Galilei que alerta: ainda mais importante que as grandes descobertas científicas é permitir que sejam apropriadas pelas multidões. Sem que ninguém o previsse, a internet desencadeou uma revolução de alcance mundial e desdobramentos ainda imprevisíveis.
A velha comunicação de massa, inaugurada com a invenção dos tipos móveis, por Gutenberg, está sob ameaça. Porque ao invés de se limitarem a consumir o que o oligopólio oferecia em escala inédita, os seres humanos deram-se conta de que a nova ferramenta lhes auxiliava a produzir conteúdos e – mais importante – permitia que circulassem por todo o planeta, agora sem necessidade do capital como intermediário. Uma banda de rap de qualquer periferia já não depende da gravadora – com suas exigências, contratos leoninos e padrões estéticos – para expor seu trabalho. Já pode, inclusive, manter contato com grupos com motivações semelhantes, em qualquer parte do planeta, e produzir em sinergia com eles.
Um movimento social com interesse em difundir uma causa — e criatividade para torná-la sedutora — pode fazê-lo por meio de uma campanha de alcance global, difundida no YouTube. Grupos de cidadãos são capazes de se informar reciprocamente, e de debater temas políticos relevantes, por meio de redes de blogues que podem se tornar muito mais atraentes que os velhos jornais de papel.
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Em Caminhos para a Comunicação Democrática, o leitor percorrerá todos estes temas. Quatro textos fazem a denúncia do oligopólio. Em Os novos imperadores da mídia, Ignacio Ramonet traça um panorama da concentração empresarial na imprensa, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Ele chama atenção para o caso emblemático francês, onde dois grupos (Dassault e Lagardère), ambos com origem na indústria de armamentos, controlavam, já em 2002, algumas das principais revistas (L’Express, L’Expansion, Paris Match, Elle, Pariscope, Télé 7 jours ) e editoras (Hachette, Fayard, Larousse, Grasset, Robert Laffont, Bordas e Stock), além do segundo maior jornal nacional (Le Figaro) e da grande empresa de distribuição da mídia impressa (Relay).
Ramonet alfineta: “realiza-se a velha e temida profecia: alguns dos maiores veículos de comunicação estão nas maõs dos mercadores de canhões”.
O escritor britânico John Pilger comenta, em outro artigo, alguns dos efeitos da concentração. Ele cita Jorge Orwell, em A Revolução dos Bichos, para lembrar que “as idéias impopulares podem ser mantidas em silêncio e os fatos incômodos, permanecerem na sombra, sem necessidade de nenhuma proibição oficial”. Ao lamentar as pressões do então primeiro-ministro Tony Blair sobre a BBC, Pilger alerta para o risco de surgir, na Grã-Bretanha, um jornalismo tão dócil quanto se tornou o norte-americano.
Como blague, recorda o relato do também escritor Simon Louvish sobre o comentário de um grupo de soviéticos em viagem aos EUA. Ao repararem que todos os jornais publicavam notícias mais ou menos idênticas sobre todos os fatos mais relevantes, eles se admiraram: “Em nosso país, para obter tal resultado temos uma ditadura. Prendemos pessoas, arrancamos suas unhas. Vocês não têm nada disso. Qual o segredo? Como fazem?”
O francês François Brune recorre a uma análise que procura abarcar jornalismo e publicidade. Ele mostra que ansiosa em evitar “que o consumidor se desconecte”, a comunicação de massas mergulha, tanto quanto a propaganda, na tentativa de reduzir o presente aos “grandes acontecimentos”: a Copa do Mundo, o lançamento da última produção de Hollywood, Diana eternamente no túnel, algumas fomes e massacres.
Por fim, Serge Halimi propõe: Contra o jornalismo de mercado, incentivar a dissidência. No artigo, escrito em 1999, porém atual, ele sustenta: “como faziam os stalinistas, os apóstolos da globalização atribuem a seus críticos tamanha dose de irracionalidade que seria plenamente justificável um programa de reeducação”. Ele mesmo contra-propõe: “Se o fim dos regimes policiais na Europa Oriental (...) serviram para nos ensinar alguma coisa, não foi certamente a necessidade do totalitarismo dos mercados financeiros. Foi o valor da dúvida e a necessidade urgente da dissidência”.
Dois artigos fazem a transição entre denúncia e alternativa. O mesmo Ignacio Ramonet, um intelectuais mais ativos no debate contemporâneo sobre comunicações, propõe O Quinto Poder. Sua linha de raciocínio é clara. Vistos durante boa parte da modernidade como o “quarto poder” — aquele que defendia os cidadãos contra os abusos dos demais poderes — , os meios de comunicação desertaram deste papel, por tudo o que se viu até aqui. Em resposta, a própria cidadania deveria agir autonomamente, como “quinto poder”. Um meio prático de fazê-lo é criar um Observatório Internacional das Mídias, que funcionaria como um contra-poder, denunciando deformações e exigindo permanentemente que se efetive o direito à comunicação.
Em complemento, o professor Venício de Lima debate O que fazer para democratizar as comunicações no Brasil. Seu texto articula análise teórica com um plano concreto de trabalho, dividido em sete pontos. Eles contemplam da criação de uma mídia alternativa viável economicamente à criação de associações de ouvintes, telespectadores e leitores; de cursos de comunicação menos centrados nas mídias de mercado à revisão das concessões de emissoras de TV e transferência, aos municípios, da incumbência de legislar sobre rádios comunitárias.
A coletânea não estaria completa sem quatro artigos voltados especificamente ao surgimento do novo paradigma: o da comunicação compartilhada e participativa. Em Muito além de Gutenberg, Antonio Martins procura soluções para dois problemas. O primeiro é criar, em alternativa ao oligopólio, não apenas milhares de blogs, mas também espaços públicos horizontais, onde os cidadãos debatam os grandes problemas de seus países e do mundo – e as alternativas para eles. O segundo é encontrar formas não-mercantis de remunerar o trabalho dos comunicadores e produtores culturais em geral.
Conhecido por seus estudos sobre redes, Manuel Castells contribui com A era da intercomunicación. Para ele, o novo paradigma é portador de esperanças precisamente porque rompe a capacidade de ocultar – principal mecanismo pelo qual se exerce o poder de manipulação da mídia. São cada vez mais freqüentes os casos em que movimentos cidadãos servem-se da blogosfera, ou mesmo de telefones celulares, para difundir informações sonegadas pelos meios de mercado.
A tendência vai se aprofundar, porque “a comunicação compartilhada está sendo recuperada pelos movimentos sociais”. “Falta pouco para que estes, e os indivíduos em rebelião, comecem a agir sobre a grande mídia, a controlar as informações, a desmenti-las e até mesmo a produzi-las”.
Em Redes colaborativas e precariato produtivo, a brasileira Ivana Bentes foca sobre uma das conseqüências mais instigantes dos novos tempos: o surgimento de uma “cultura das favelas e periferias”, que “destitui os tradicionais mediadores da cultura e passa de ’objeto’ a sujeito do discurso”.
Ela se expressa por meio de formas como música, teatro, dança, literatura, cinema; circula graças à popularização dos equipamentos digitais e à facilidade de duplicação de CDs, livros e música; “é contraponto à visão estereotipada das favelas como fábricas de morte e violência”. Feita a constatação, Ivana lança-se a duas perguntas: como dar suporte a estas novas redes sócio-culturais? Como articulá-las com a reestruturação produtiva, que tem por centro o trabalho imaterial, a produção, fora das grandes corporações, de conhecimento, informação, comunicação e arte.
Finalmente, um pequeno texto destaca a contribuição de Le Monde Diplomatique para a nova comunicação. Planeta Diplô conta a história mais recente de uma publicação que, sendo talvez uma das mais críticas à globalização neoliberal tornou-se o jornal mais globalizado do planeta. Em novembro de 2006, quando foi escrito o artigo, já eram 60 edições internacionais (hoje, são 66...), em 34 países e 25 idiomas. O texto explica que tal contradição é apenas aparente: há cada vez mais espaço, entre todas as sociedades, para quem se atreve a denunciar o “pensamento único”, e sustentar que “outro mundo é possível”. Ótima leitura.
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