Verbetes da Enciclopédia Jurídica Leib Soibelman
Concepção marxista do direito
O marxismo não considera o direito como uma categoria ideal, objetiva, normativa ou metafísica, nem mesmo autônoma. Para o marxismo não existe filosofia ou ciência do direito, porque o jurídico não encontra explicação em si mesmo. O direito só pode ser compreendido através da análise da realidade econômico-social de uma coletividade em determinada época da história.
O que se chama "normatividade" do direito não passa de ser um reflexo das condições de vida material da sociedade, uma forma que recobre o conflito que existe em toda sociedade de classes, entre o modo de produção e as forças de produção. A luta de classes é o verdadeiro motor que impulsiona a formação do direito.
O direito não evolui nunca, o que evolui é o modo de produção social, não se podendo falar em evolução do direito romano, medieval ou moderno, mas tão-somente em sistemas diversos de propriedade: escravidão, servidão, capitalismo. As transformações sociais sempre foram seguidas servilmente pelas transformações do direito.
Todas as divergências doutrinárias entre juristas pouco adiantam à humanidade no caminho de uma justiça perfeita, porque esta só será conseguida numa sociedade sem classes, que o proletariado irá instaurar de futuro, e também porque essas discussões não afetam a infra-estrutura social, não passam de ser ideologia de um regime de produção. Não se pode descrever uma história do direito ou fazer direito comparado, porque o direito não é norma mas apenas relação entre forças de produção antagônicas. O conteúdo do direito nunca é "jurídico", mas econômico, político ou social.
O direito é sempre uma forma desse conteúdo e inexplicável sem ele. É uma forma de opressão socialmente organizada, que se revela com toda clareza nos choques entre classes que pretendem o poder. É a ideologia da classe dominante, sem nenhum valor transcendental. É a forma de impor a uma sociedade um determinado modo de produção. Não existe justiça que não seja de classe, porque a fonte de todo direito é a vontade da classe dominante.
Essa vontade também não é livre, mas submetida ao jogo dialético das forças sociais. Uma classe quando toma o poder, usa da violência para instituir o seu direito, mas esse uso não é arbitrário, mas condicionado e determinado por imposições da própria realidade social, e esse direito assim instituído não é obedecido pela maioria por ser mais "justo" que o interior, mas porque reflete uma nova e mais adiantada acomodação entre as classes sociais.
Só há um momento em que o direito representa os interesses de toda a sociedade: é quando a classe revolucionária toma o poder. Mas logo depois da tomada do poder, tanto pela burguesia como pelo proletariado, o direito retoma o seu caráter classista. Só na sociedade socialista do futuro é que desaparecerão tanto o Direito como o Estado, passando a haver apenas uma administração ou governo das coisas. Direito e Estado surgiram quando a sociedade se dividiu em classes e desaparecerão com a extinção delas.
A ditadura do proletariado, na revolução socialista, é apenas uma fase transitória que serve ao proletariado para fortalecer o seu domínio, mas como ele irá instituir a sociedade sem classes, não terá mais razão de ser a existência do Direito e do Estado, que sempre serviram de instrumento de exploração de uma classe contra outra, e sendo ele a maioria da nova sociedade, não irá explorar a si mesmo.
Não tem sentido a discussão sobre Estado de Polícia e Estado de Direito na sociedade burguesa, porque nesta todo estado é Estado de Polícia. Direito e Estado se identificam de forma absoluta, um não sobrevive ao outro, não há distinção cronológica entre eles.
Pode haver sociedade sem Estado, mas este só surge onde existe divisão de classes. Juízes, tribunais, corpos legislativos e métodos de interpretação da lei, não passam de instrumentos da classe dominante, estão a seu serviço, sendo ilusórias todas as chamadas "técnicas jurídicas" de aplicação do direito e todas as "garantias" de permanência no cargo para as pessoas encarregadas de aplicá-lo.
B. - K. Stoyanovitch, La pensée marxiste et le droit, Presses Universitaires de France. Paris, 1974.
Direito e economia
Duas grandes correntes doutrinárias opõem-se nesta matéria: a marxista e a de Stammler.
Segundo o marxismo, o direito não passa em última análise ou em seu elemento fundamental, de um reflexo, produto ou conseqüência das condições econômicas da sociedade, o que explicaria porque povos os mais distantes entre si mas de economia idêntica, resolvem da mesma forma jurídica os seus problemas de produção e divisão de bens.
A noção do justo não é inata, não há direitos naturais de espécie alguma, todo o justo não passa daquilo que as classes dominantes têm como justo.
O marxismo moderno, não interpretado sectariamente à maneira soviética, admite que o direito, uma vez originado de base econômica, passe a ter uma vida relativamente independente, podendo influir daí para diante na evolução social e enriquecer-se de conteúdo ético-social.
Stammler, partidário do direito natural, não podia evidentemente admitir essa concepção materialista do direito, e sustentou que o direito é a forma do querer jurídico, a economia a sua substância ou conteúdo. Mas restava um problema: como explicar então as variações históricas do direito?
Se há direitos naturais inatos, por que varia o direito de uma sociedade para outra através do tempo? Stammler concebeu então o "direito natural de conteúdo variável", formado pelas categorias puras que governam a priori a experiência histórica e que possibilitam esta variação do conteúdo jurídico de cada época. A forma do querer jurídico transcende a qualquer experiência histórica contingente do direito, de maneira a que se possa admitir formas de valor permanente encobrindo conteúdos de valor variável.
B. - Hermes Lima, Introdução à ciência do direito. Ed. Nacional. Rio, 1937;
Miguel Reale, Filosofia do direito, II. Saraiva ed. São Paulo, 1953.
Justiça de classe
Para os marxistas, toda justiça é justiça de classe, toda a maquinaria judicial existe em função de defender os interesses de uma classe, evidentemente a classe dominante, a que detém os instrumentos de produção. Segundo eles ainda, a classe dominante trata de generalizar para toda a sociedade o seu conceito do "justo", ocultando atrás desse conceito assim universalizado os seus interesses ideológicos.
Se considerarmos que o direito é normalmente acatado, razão pela qual o número de litígios levados aos tribunais é infinitamente pequeno em razão da proporção de negócios que se fazem diariamente numa nação, o que concluiremos? Simplesmente que o aparelho judiciário existe para funcionar a serviço da classe dominante, aquela que pode pagar o preço da máquina judiciária.
A grande maioria da população não tem como pagar esse preço e a justiça é para ela um objeto de luxo. Não são os litígios que são poucos, poucos são os que podem pagar para sustentá-los em juízo. Litígios existem aos milhares, mas por uma injunção econômica a maioria dos prejudicados é obrigada a subordinar o seu interesse ao interesse alheio.
Carnelutti talvez não tenha percebido o quanto foi feliz em definir uma realidade sócio-econômica quando definiu a pretensão como a subordinação de um interesse alheio ao nosso próprio interesse, e a lide processual como a reação ou resistência de alguém em não subordinar esse interesse próprio ao de outrem. Este, não conseguindo fazer predominar o seu interesse, recorre ao judiciário para fazê-lo.
Teoricamente esta construção é linda, mas Carnelutti parece ter pressuposto dois antagonistas da mesma situação social, como tendo as mesmas chances de usar dos serviços judiciários, o que não acontece na realidade que inconscientemente ele definiu de forma perfeita. A justiça não tem um conteúdo próprio, o seu conceito varia no tempo e no espaço, ela é e será sempre uma idéia a serviço de uma classe, razão pela qual o direito natural tenta pelo menos salvar alguns princípios fundamentais da vida humana com validade em qualquer tempo ou latitude, mesmo admitindo essa variação.
Como idéia, a justiça será sempre uma esperança humana, será sempre um objetivo do homem, talvez o aspecto mais dignificante da existência. Mas a sua prática constante será sempre deficiente e falha, e para não ter maiores ilusões, o melhor é reconhecer o fato e conduzir-se por ele do que ficar no mundo das nuvens procurando uma justiça que não tem nenhuma condição de realizar-se de forma perfeita enquanto esperarmos demais dos homens e das instituições.
Não tem nada a ver com a justiça a organização judiciária e policial, os grandes interesses que são defendidos em juízo, a classe dos advogados que ganha e vive desses interesses, não representando coisíssima nenhuma para o homem da rua vitórias e derrotas forenses.
Justiça verdadeira para o homem comum é tão-somente a justiça social, pouco lhe importando a justiça jurídica propriamente dita, e a grande verdade é que ele não acredita nos tribunais, o que qualquer um pode comprovar com uma simples conversa de esquina. É de se sorrir quando se diz que a razão da pletora do Supremo Tribunal Federal é porque o povo gosta do tribunal...
Quando fui levar de presente modesto livro a um grande mestre do direito, homem que lecionou cinqüenta anos e formou duas gerações de advogados e juízes, depois de folhear por alguns minutos, virou-se para mim e disse: "Olha, eu vou te confessar uma coisa, mas você não diz que eu disse porque eu vou te desmentir: Eu não acredito em justiça". E justificou a assertiva com o exame dos fatos diários de caráter deprimente da justiça de classe, mas foi ainda além, considerando que toda a ciência do processo não passa duma masturbação intelectual que abafa o verdadeiro senso de justiça.
Tão decepcionado no fim de uma longa vida estava o mestre, que negava até a existência da idéia da justiça, que para ele não passava de uma grande balela. Não endossamos a posição do grande professor, apenas separamos a idéia da justiça da sua realização prática, considerando que esta é e será sempre de classe, qualquer que seja o regime social, considerando que a verdadeira missão do jurista é trabalhar no sentido de, sempre que possível, servir à idéia mas sem grandes ilusões para não ter grandes decepções.
A grande e verdadeira justiça não é obra do jurista, o que o desculpa de muita coisa. Não é ao jurista que se deve pedir a reforma social, pois ele está diretamente ligado aos interesses que impedem ou não desejam esta reforma, ele é homem que trabalha bem em qualquer regime desde que não lhe exijam que seja algo mais que jurista, que abandone a dogmática jurídica pelo exame crítico da estrutura social. Nem o fato de haver grandes campanhas de juristas em prol das liberdades públicas infirma o que acima se disse, porque, embora altamente louváveis e honrosas, merecedoras de todo o apoio, ainda são, na essência, uma reivindicação estritamente baseada na noção de justiça da classe dominante.
Em suma, a justiça é uma idéia absoluta, de realização prática relativa. Não existe justa distribuição da prestação jurisdicional do Estado onde proliferam as grandes desigualdades sociais, e estas não são corrigidas pela assistência judiciária, pela defensoria pública ou pela justiça do trabalho ou ainda por tribunais de economia popular.
Todas estas instituições não passam de paliativos da fachada de um regime social que justamente delas necessita porque não funciona bem.
Jurista e sociedade
Qual é a função do jurista na sociedade? A resposta depende totalmente do ponto de vista político de quem formula a pergunta.
Se é um liberal, dirá que o jurista é o defensor do direito, da justiça, do fraco e do oprimido, do indivíduo contra o Estado.
Se é um marxista, dirá que ele é o ideólogo da propriedade privada, passando a vida a elaborar conceitos que dêem a entender que as idéias da classe dominante são e devem ser as idéias de toda a sociedade, que nelas se encontra a justiça ideal; defensor profissional das ilusões que a classe burguesa faz a respeito de si própria, ou de uma classe que aspira ao poder.
Para o marxista, não existe luta pelo direito, não existe senão luta entre classes, porque nunca se viu conceitos jurídicos lutarem entre si, abstraídos dos homens que os representam, e dizem ainda mais que não é a crítica intelectual que pode modificar qualquer situação mas tão somente a transformação da base material da sociedade, que é o fundamento das idéias jurídicas em vigor: só a revolução pode transformar o sistema jurídico de uma sociedade e nunca esta ou aquela doutrina.
A própria consciência jurídica depende das condições sociais existentes e só pode evoluir quando o jurista se convence de que a classe a que ele pertence já não consegue mais solucionar os conflitos sociais.
Curiosamente, a situação do jurista soviético parece confirmar integralmente a teoria marxista: não há conhecimento de nenhum grande jurista russo depois da implantação do comunismo, com a abolição da propriedade privada. Será que o jurista tipo ocidental está fadado a desaparecer no mundo futuro?
Os autores norte-americanos não hesitam um minuto em reconhecer que o jurista não passa de um defensor de interesses e nada mais. Abstraindo o campo do direito penal, parece que este ponto de vista é correto. Sobreviverá apenas o jurista criminal?
Juristas e tiranos
Não há talvez profissão cujos membros hajam escrito mais a respeito dela mesma ou deles próprios do que a advocacia. E isto se explica facilmente se considerarmos que o advogado sempre esteve ligado à vida política e tomou parte em grandes acontecimentos históricos em todas as épocas e países. Mas deduzir daí que ele sempre foi um defensor da liberdade ou da democracia, é completamente errado.
Esta concepção pertence a uma visão romântica da advocacia, que infelizmente hoje vai desaparecendo para dar lugar a uma conceituação do advogado como defensor de interesses. Historicamente, o advogado ou o jurista sempre foi defensor tanto da liberdade como da tirania. Tanto os regimes democráticos como as tiranias políticas sempre contaram com o jurista para emoldurar o regime.
Tocqueville em página magistral dos seus "Fragmentos históricos sobre a Revolução Francesa" já notara que o jurista dá ao déspota um sistema para a sua vontade arbitrária, um sabor de método e ciência para o governo, e que onde as duas forças se cruzam, aparece um irrespirável despotismo. Diz mais ainda que quem conhece o príncipe sem o jurista que está por trás só conhece uma parte da tirania.
Não há nada de surpreendente neste fato, se considerarmos que o jurista pertence a uma determinada classe cujos interesses defende consciente ou inconscientemente como qualquer outro membro desta classe, e que por formação é um elemento conservador, avesso a mudanças e com uma concepção legalista da vida social, uma concepção de caráter formal.
Mas, poder-se-á objetar, houve juristas que defenderam interesses contrários aos da classe a que pertenciam, que protestaram contra toda violência ou ilegalidade, que lutaram contra todos os regimes de tirania. Mas esses foram sempre minoria, exceção que confirma a regra, e por isto mesmo grandes democratas cujo nome a história guardou, porque a grande maioria adere ou se cala, conformando-se em reconhecer o poder por ser poder, partindo daí para diante.
De forma que continuar dizendo que o jurista é por definição um partidário da liberdade não passa de hipocrisia ou desconhecimento dos fatos. Nossa época não admite mais a mística do jurista sob a máscara do direito. O que vale é o homem, é ele que ilustra a profissão que escolheu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário