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RISCOS DE UMA APURAÇÃO APRESSADA

Em 17 de junho desse ano o jornal El Deber, de Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), publicou matéria especial sobre um documento atribuído ao Movimento al Socialismo (MAS), partido de Evo Morales. O documento denominava-se "Guía de Acción Política de Orinoca Para Los Compañeros Revolucionarios del MAS y Sus Aliados".

Na verdade o escrito, sem assinatura e sem nomes de responsáveis, vinha circulando há pelo menos um ano em fóruns e blogs da internet como o Forum Univision, E-Foro, Autonomía Ya! e outros. Ele também foi citado em matérias dos jornais La Razón e El Nuevo Día.

Mas foi no jornal El Deber que pela primeira vez o autor da matéria resolveu ouvir os representantes do MAS. Assim, a jornalista Carla Paz Vargas pôde escrever que o MAS atribui a autoria do documento aos Comitês Cívicos da chamada "Media Luna" (grupo de governadores bolivianos que fazem oposição a Evo Morales), que assim criaram factóides na imprensa para justificar "paros civicos" realizados desde 2007.

Portanto, um boliviano que chegasse ao Acre - da oposição ou da situação - e lesse o diário Página 20 não entenderia o conteúdo das matérias Exército boliviano emite mandado de prisão contra jornalista acreano e Bolívia se encontra à beira do abismo, publicadas ontem.

Primeiro porque, como vimos, o "plano" citado na matéria não é exclusivo há pelo menos um ano e meio...

Segundo porque é no mínimo um péssimo jornalismo validar o conteúdo de um documento cuja origem não se conhece ao certo, especialmente quando não é possível ouvir os "acusados" - na verdade é possível, basta entrar em contato com os dirigentes do MAS pelo e-mail fornecido no site oficial do partido.

Terceiro, e mais grave, porque o documento é falso. Para constatar isso você, leitor, precisará obtê-lo clicando aqui. Abra e observe: o suposto "carimbo" onde está escrito CONFIDENCIAL é na verdade uma imagem sobreposta ao texto, isto é, uma arte feita no computador. Não é um carimbo. Outra arte foi feita no símbolo do MAS, grafado na parte superior direita de cada página, e na foto esquisita do presidente Evo Morales. Observe que a foto está em preto-e-branco enquanto o resto do documento é colorido pelas imagens inseridas sobre o texto.

Todo o documento foi, portanto, editado.


Tem mais. Esse documento está hospedado em um jornal venezuelano, o Noticiero Digital. A imprensa acreana não deve lembrar, mas o Noticiero foi um dos jornais que recebeu dinheiro da Embaixada dos Estados Unidos na Venezuela durante a tentativa de golpe de Estado a Hugo Chávez. Confira aqui.

A pergunta que não quer calar, portanto, é: o que um documento "incriminador" do MAS estaria fazendo no site de um jornal de outro país? "É parte de uma notícia!", poderíamos pensar. Mas não é. O Noticiero jamais tocou no assunto.

Mas nada nas duas matérias do Página 20 poderia ser tão grave quanto o suposto "plano militar elaborado para dar sustentação aos aliados de Evo Morales" (foto). Além de não ter origem comprovada, o documento trai a si mesmo e dá várias pistas sobre sua real origem.

Clique na foto para ampliar e observe a primeira seta, da esquerda para a direita.

As expressões "Negociación IDH, Nueva CPE y Estatuto Autonómico" não são reivindicações dos partidários de Morales, mas do Consejo Nacional Democratico (Conalde), instituição formada pelos comitês cívicos dos Estados "autonomistas". Essas reivindicações, que o governo Morales considera golpistas, foram também condenadas pela União de Nações Sul-Americanas (Unasur) que foram tácitas em afirmar que não vão reconhecer "tentativas de golpes civis".

Veja o comunicado
aqui.

Outra curiosidade do suposto segundo "documento" é o uso das expressões "paros y bloqueos" para designar as ações terroristas, uma vez que ambas designam as ações dos próprios comitês. Em um desses "bloqueos" os autonomistas seqüestraram um avião do Exército boliviano com metralhadoras, granadas e outras armas de uso exclusivo das Forças Armadas. Essas armas, segundo os resultados dos primeiros laudos cadavéricos publicados nos jornais bolivianos, foram usadas no massacre de camponeses ocorrido no dia 11 - e não 12 - de setembro.

Todas essas ações aconteceram criteriosamente dentro dos prazos determinados no "plano militar", de forma minuciosamente sincronizada entre os departamentos "autonomistas". Parte desse cronograma terrorista é reconhecido inclusive pelo próprio jornalista Alexandre Lima, autor de uma das matérias e que se diz perseguido pelo governo boliviano. Confira:

"Os conflitos dos últimos meses na Bolívia ocorreram coincidentemente no mesmo período em que o governador de Pando, o autonomista Leopoldo Fernández, se reunia com a população local para aprovar o novo estatuto autonômico de Pando. Nessa mesma época, Fernández também negociava a liberação do IDH (impostos retirados pelo governo Evo Morales), Constituição Autonomista de Estado (CPE) e o Referendum Revocatório. A autonomia de Pando foi aprovada entre os meses de julho e agosto, mas não aceita pelo governo de Evo Morales. Os conflitos eclodiram novamente e pontes foram obstruídas, impedindo a ligação terrestre entre Cobija e Acre e fronteiras com a Argentina. Ao mesmo tempo, também pipocaram confrontos na parte central da Bolívia. Em Santa Cruz, por exemplo, ocorreram várias mortes e dezenas de pessoas foram presas." - Página 20, "Governo contra autonomistas", in Bolívia: à beira do abismo. 14.10.2008.

A matéria completa do Página 20 está disponível
aqui.

E a expressão "agitar occidente", usada no documento?

Quem conhece a geografia boliviana (confira nesse mapa) sabe que essa expressão jamais poderia se referir ao ocidente pandino: o Estado "termina" na fronteira com Assis Brasil. A oeste de Cobija só há pequenas cidades campesinas como Santa Cruz (não confundir com Santa Cruz de La Sierra), Floresta e Bolpebra, que devido à distância e imensa dificuldade de acesso por terra ou água dificilmente poderiam ser "agitadas" da forma citada no documento.

O "occidente" citado é uma alusão aos Estados (Departamentos) com maioria indígena, favoráveis a Evo Morales. Os Estados com maioria oposicionista ficam no "oriente", isto é, no leste boliviano. Assim, a expressão "agitar occidente" no documento significa provocar os camponeses para que se manifestem e assim iniciar uma sangrenta guerra civil que causaria (pelo cronograma do documento) um golpe de Estado ou o assassinato do presidente Morales.

Por que o assassinato de Morales? Porque o documento, como acabamos de ver, tem perspectiva nacional, e não departamental (estadual).

Para terminar essa excessiva postagem de hoje quero finalizar dizendo que Alexandre Lima, o jornalista entrevistado na primeira e autor da segunda matéria do Página 20, não teve prisão decretada.

Quem o Exército procura é um boliviano chamado Amín Alejandro Farah Ferreira. De acordo com Lima, Farah Ferreira teria sido o seu "procurador" em um contrato de publicidade firmado com o Governo pandino em 2007. A acusação é superfaturamento de dinheiro público. De acordo com o governo boliviano, O Alto Acre, na época um semanário, teria recebido o equivalente a R$ 9 mil em dois meses de serviço.

Para ver mais detalhes dessa transação clique aqui.

Seriam Alejandro e Alexandre a mesma pessoa? Por enquanto, não sei. E vocês?

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