Do jornal Mudar de Vida
O indivíduo contemporâneo encontra no dispositivo mediático um sistema de referências orientador da sua prática quotidiana, sendo precisamente aí que germinam as suas representações do mundo. Apesar desse dispositivo lhe revelar uma microscópica parcela do mundo em que vive – na medida em que os médias têm por missão dissimular o que não convém mostrar do real: as hierarquias, a miséria, a desumanidade –, o espectador julga sempre aceder à totalidade desse mundo. Por outro lado, a informação a que tem acesso inibe-o de confrontar o modelo de sociedade em curso.
O indivíduo contemporâneo encontra no dispositivo mediático um sistema de referências orientador da sua prática quotidiana, sendo precisamente aí que germinam as suas representações do mundo. Apesar desse dispositivo lhe revelar uma microscópica parcela do mundo em que vive – na medida em que os médias têm por missão dissimular o que não convém mostrar do real: as hierarquias, a miséria, a desumanidade –, o espectador julga sempre aceder à totalidade desse mundo. Por outro lado, a informação a que tem acesso inibe-o de confrontar o modelo de sociedade em curso.
Prova disso são as breves alusões que os noticiários televisivos diariamente fazem à barbaridade a que se encontra exposta uma parte colossal da humanidade, vítima da fome, da exploração, das guerras, das pandemias e dos genocídios, alusões essas que obedecem ao propósito de não provocar no espectador qualquer indignação, qualquer revolta, qualquer princípio de acção para ousar inverter o drama. Talvez possamos encontrar nesta apatia organizada, que inibe o espectador de se impressionar pela evidência do horror, um triste paralelo na Alemanha nazi, apática e indolente perante a loucura do III Reich.
Existem várias técnicas, empregues nos noticiários, para gerar no espectador um desprezo profundo pela miséria e o infortúnio a que está sujeita grande parte da humanidade. Vejamos apenas as mais evidentes:
1) Destacar, nas notícias, não quem padece da perversa organização da sociedade, mas quem sofre de vicissitudes fortuitas: vítimas de acidentes naturais ou rodoviários, de raptos, de roubos. Destaca-se o puro espectáculo do acidente para ocultar todo o sangue silenciosamente derramado por causa das injustiças sociais que anualmente dizimam milhões de humanos. Mantém-se assim inquestionável a sociedade concreta em que vivemos, iniquamente organizada para servir os interesses dos barões do planeta neoliberal – são aliás os mesmos que reinam despoticamente sobre o feudo mediático: eles determinam não apenas aquilo que se faz, mas também o que se deve escrever e pensar sobre o que foi feito; a figura sinistra do III Reich continua perfeitamente actual.
2) Tratar as vítimas dos dramas com distância e estranheza, num tom falsamente sério, de modo a que o espectador nunca se possa identificar com elas. Imigrantes em favelas degradadas, crianças famintas e doentes, deslocados de guerra, vítimas de bombardeamentos ou trabalhadores explorados são apresentados como casos curiosos mas distantes, com os quais o espectador jamais deverá identificar-se. A compreensão do outro torna-se para ele impossível. Exercitado pela publicidade hedonista a identificar-se com os modelos imaculados que, nas revistas, nos painéis das ruas ou na televisão, lhe sugerem o champô, o telemóvel e os jeans que usa no seu quotidiano, o espectador não pode ver naqueles seres indigentes senão criaturas em radical dissonância com o higienismo ambiente.
3) Irradiar sorrisos, para falar, elogiosamente, de trivialidades inofensivas (o golo vitorioso de Cristiano Ronaldo, o último concerto dos Roling Stones, a fortuna do rei Mourinho, mais um desfile de moda em Milão…), que deste modo aparecem ao espectador como o principal conteúdo a reter de todo o noticiário. Também abundante no discurso publicitário, o sorriso aprovador do apresentador do noticiário tem por missão dissolver a consciência dos dramas que se poderia ter constituído, na mente do espectador, a partir das brevíssimas referências que a eles foram feitas em notícias anteriores.
4) Terminar os noticiários em harmonia com o espectador, num tom ameno, com motivos de entretenimento quase circense (a colecção de óculos de Elton John, as bebedeiras de Britney Spears, futebol, humor, o novo bebé panda do Zoo de Pequim, o homem mais velho do mundo, a maior abóbora dos Amiais de Baixo), para mostrar ao espectador que o mundo tem muito mais para dar do que os dramas ‘aborrecidos e sem graça’ dos miseráveis deste mundo. E que o importante deste mundo, aquilo que se deve reter dele, não são esses dramas, que jamais, por questões estratégicas, são mencionados no final dos noticiários – isso poderia torná-los tema de reflexão e de conversa, deixando perigosamente no centro das atenções os barões do planeta neoliberal e as consequências socialmente irresponsáveis, mas altamente rentáveis, das suas negociatas.
5) Complementar as notícias com a propaganda publicitária, para recordar ao espectador os seus verdadeiros modelos de identificação (é esta a grande função social da publicidade): a loira elegante da L’Oreal, o macho sedutor do Baccardi, o gestor de sucesso da Mercedes, a dona de casa competente da Omo, o grande aventureiro da Camel, o homem eternamente jovem da Levis, a morena irresistível da Chanel, o adolescente pseudo-subversivo da Vodafone. Estes modelos, operando por contraste, consolidam a estranheza, a repulsa e por vezes até mesmo o nojo que deverão provocar no espectador os corpos famintos, repletos de moscas, de crianças africanas que não têm o que comer, os corajosos Sem Terra brasileiros, esgotados de lutar contra a crueldade do latifúndio, os cadáveres de senegaleses que deram à costa europeia enquanto tentavam escapar à patrulha marítima espanhola, os mineiros chineses depois de mais um desabamento numa mina, as crianças do Bangladesh exploradas em fábricas de biscoitos para o mercado europeu ou os outros duzentos milhões de crianças que a Organização Internacional do Trabalho estima serem vítimas de exploração laboral no mundo…
Componente vital do dispositivo mediático, os noticiários modelam a consciência do real: são o mundo que é permitido ver. Representando a humanidade de acordo com interesses específicos, eles legitimam as relações sociais vigentes. O espectador aprende assim a assimilar o mundo neoliberal, e não a confrontá-lo. Ele é convocado a não interferir no desenrolar ‘lógico e natural’ dos acontecimentos, devendo manter-se afastado das decisões que determinam o seu próprio quotidiano.
Crédito da foto: arquivo eletrônico do jornal Página 20
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